Em um país onde cerca de 30% das empresas morre nos dois primeiros anos de vida, Mario Viezzer trilhou nos últimos 35 anos um caminho que lembra uma jornada épica. Enfrentou inflação que chegou a 84% ao mês, viu as prateleiras da loja ficarem vazias, quase quebrou, mas conseguiu sobreviver a quatro planos fracassados. Com a chegada do Plano Real, em julho de 1994, permitiu o controle do dragão, conseguiu consolidar a transformação a padaria em uma rede de supermercados.
"Poderíamos ter sido mais ambiciosos nas reformas", diz Gustavo Franco
A saga do comerciante, nascido em Caxias do Sul e estabelecido em Canoas, é semelhante à de muitos brasileiros que faziam o rancho do mês antes que o cupim da inflação corroesse o salário.
Bem-sucedido em sua principal missão - domar a inflação -, o Plano Real ficou devendo em pontos complementares, admite até um de seus idealizadores, Gustavo Franco, que aponta falta de "ambição" para encaminhar reformas estruturais. Especialistas também reclamam de mecanismos que realimentam a inflação, como reajustes de preços de serviços, como os de energia e telefonia, vinculados a índices de preços.
Uma moeda mais estável abriu possibilidades de negócio e mudou hábitos. Tatiana Gonçalves Weingartner, 37 anos, não era responsável pelas compras de casa duas décadas atrás, mas lembra dos estoques que mãe fazia. Hoje, com a filha Ana Clara, 8 anos, conta que faz diferente. Vai ao mercado quase todos os dias e compra pequenas quantidades.
- Os valores não mudam tão rápido. Vindo mais vezes consigo aproveitar as promoções - resume.
Tiro de festim contra o dragão, o congelamento de preços impedia as ofertas.
- O preço mudava tão rápido que eu tinha medo de congelarem e ser obrigado a ficar vendendo mais barato do que havia comprado - relata Viezzer.
A padaria de Viezzer que funcionava no Plano Cruzado se transformou em um mercadinho. Com a estabilidade da moeda, relata o empresário, foi possível planejar e crescer. Prestes a inaugurar o quinto supermercado, todos na região metropolitana de Porto Alegre, Viezzer comemora a decisão de ter apostado mesmo no período mais difícil:
- Quase quebramos no Plano Bresser, em 1987.
Sentimento de saudade
Reajustes maiores, desde 2010, são sentidos de maneira diferente. Luiz Antônio Cruz reclama do custo de erva-mate, feijão, arroz e tomate. Responsável pelas compras da casa, o contador aposentado afirma que a inflação está mais alta do que o "governo diz". A dona de casa Elizabeth Barcelos, 42 anos, concorda, mas pondera que o aumento de hoje não é nada comparado com aqueles meses que antecederam a entrada do real. Recém-casada na época, lembra que os remarcadores conviviam com os consumidores nos corredores dos supermercados.
Mas não são todos que reclamam da altura do voo do dragão. Para Viezzer, depois de aprender como funcionam os reajustes, uma "inflação saudável é boa para o comerciante".
- Quem pagava à vista conseguia descontos com a indústria. Além disso, o juro era mais alto, e quando conseguia aplicar, o retorno era garantido - diz.
Essa é uma das questões que nem o bem-sucedido Plano Real resolveu: a dependência de alguns negócios do juro alto. A tentativa de alcançar "juro civilizado", que começou em 2011 e concluiu com a menor taxa da história em 2012, de 7,5%, foi seguida de uma alta inquietante da inflação. Samy Dana, professor de economia da Fundação Getulio Vargas (FGV), explica que a "saudade" que algumas pessoas têm da inflação é bastante comum, porque aplicações com correção diária e o juro alto proporcionavam um "dinheiro fácil" se comparado a tradicionais aplicações financeiras. O plano lançado em 1º de julho de 1994 exigiu correções, como ocorreu no câmbio, que flertou perigosamente com o dólar, e o controle das contas públicas, mas os brasileiros ainda esperam a receita do crescimento com estabilidade.
As estrelas da largada
A nova cara do dinheiro
A cédula de R$ 1, que dá "cara" ao Real, deixou de ser produzida, mas foi símbolo do sucesso e alvo de colecionadores que pagam até R$ 100 por notas em bom estado de conservação.
Pãozinho por unidade
O pão francês se tornou um dos símbolos da nova moeda. Com R$ 1, era possível levar 10 unidades para casa. Hoje, é vendido por peso e, com o mesmo valor, o cliente compra em média duas unidades.
O garoto-propaganda
O frango era uma das imagens da estabilidade do plano. Com R$ 1, era possível comprar um quilo da carne. A mesma quantidade custava, em maio, R$ 6,16.
A volta do porta-moedas
Com o dinheiro valendo mais, houve aumento na venda de porta-moedas no país. Antes, com a inflação em alta, as moedas eram desprezadas porque valiam muito pouco. Com a chegada do real, voltaram a ter o seu valor.
O fim do rancho
Prática comum nos anos de hiperinflação, a compra em grande quantidade foi se tornando cada vez menos popular. O hábito de abarrotar os carrinhos mudou, e as compras passaram a ser feitas em menor quantidade.
Tudo por R$ 1,99
O dólar baixo invadiu o país de importados, fazendo surgir esse tipo de loja. Ao longo dos anos, transformaram-se em lojas "a partir de" R$ 1,99.