Com o crescimento de protestos contra o racismo nos Estados Unidos e na Europa, instados pelo assassinato do negro George Floyd por Derek Chauvin, policial norte-americano branco, heróis de pedra, metal e em placas nas esquinas aos poucos têm seu lugar no panteão questionado.
O debate chegou, nas últimas semanas, também ao Rio Grande do Sul, com um manifesto chamado “Porto Alegre Contra o Racismo na Rua” assinado por 1.080 pessoas de 33 entidades. O documento pede a troca do nome da Rua Barão de Cotegipe, pequena via de cinco quarteirões no bairro de classe alta São João, nomeada assim desde 1916 em homenagem a um importante político que, na segunda metade do século 19, defendia a escravidão.
Segundo o abaixo-assinado, a cidade que homenageia Zumbi dos Palmares com um largo no bairro Cidade Baixa não merece celebrar o Barão – um dos poucos senadores a votarem contra a libertação de escravos durante o processo que culminou com a promulgação da Lei Áurea (1888) e que, após ser derrotado, buscou articular uma legislação para que senhores fossem ressarcidos pelo governo – o que não ocorreu.
“É uma violência silenciosa que se perpetua no cotidiano da cidade. E um desrespeito à condição humana e aos valores que a constituem”, diz o texto, que não sugere novo nome à via.
Porto-alegrenses agora se veem diante de uma intrincada pergunta ligada à memória, à identidade nacional e, portanto, sobre como encaramos o passado e a formação da nossa sociedade: devemos homenagear com logradouros públicos personagens históricos ligados à escravidão, ao massacre de indígenas e à colonização?
Monumentos e nomes de rua buscam eternizar personagens que, na época da celebração, foram importantes para alguém. De certa forma, ensinam às futuras gerações um valor a ser admirado – ou, pelo contrário, destacam uma ideologia a ser repudiada, como, entre outros exemplos, o Memorial aos Judeus mortos na Europa, em Berlim (Alemanha).
O problema é que, com a passagem do tempo, as noções de certo e errado mudam – e o que era inspirador para uma maioria pode se tornar cruel e criminoso. Historiadores – inclusive os críticos – destacam que os protestos que tomam o mundo não querem alterar a história em si, tampouco os relatos nos livros didáticos, mas buscam moldar a memória, que é a forma como determinados grupos relembram o passado, algo sempre em disputa.
– Não queremos revisar a história, mas discuti-la: quais são os valores que a nossa sociedade de 2020 considera importantes? – afirma Jorge Terra, um dos idealizadores do movimento.
Terra é procurador do Estado e presidente da Comissão da Verdade Sobre a Escravidão Negra da Ordem dos Advogados gaúcha (OAB-RS). Ele prossegue:
– Se, lá atrás, homenagearam uma pessoa, cabe a nós verificarmos se ela ainda enaltece a vida de nossa sociedade. Ao optarmos por não mais manter homenagens ligadas a períodos nos quais pessoas foram sujeitas à violação de direitos, apontamos para um novo tempo. Não estamos preocupados com o passado, que não tem como ser reconstituído, mas com o presente e com um futuro nos quais valores republicanos, solidários e fraternos, sejam enaltecidos.
Ele também cita outros endereços que o grupo questiona internamente, como a Rua General Canabarro, no Centro Histórico (homenagem a David Canabarro, que, durante a Guerra dos Farrapos, entregou lanceiros negros aos inimigos), e a Avenida Getúlio Vargas, no Menino Deus (o ex-presidente e ditador do Estado Novo promulgou uma Constituição com artigo que defendia “educação eugenista”).
– A gente tem rua com o nome Hitler ou Auschwitz? Não, porque isso não é considerado moral. Mas a sociedade brasileira considera moral manter homenagens a ícones da escravidão. Óbvio que Cotegipe foi mais do que isso, pode inclusive ter sido um familiar atencioso, mas entrou para a história como um político proeminente que defendeu a escravidão – argumenta Fernanda Oliveira, professora na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), pesquisadora da história da pós-abolição nas Américas e uma das signatárias do abaixo-assinado.
O debate sobre a derrubada de estátuas e a troca de nome de ruas pode parecer novo, mas, para historiadores, é apenas mais um dia de trabalho. O fenômeno ocorreu na Alemanha pós-nazismo, na Espanha após a morte do ditador Francisco Franco, no Leste Europeu pós-União Soviética e também em países colonizadores.
Não há receita que valha para todos os exemplos ao longo da história, e cada sociedade precisa debater uma solução própria a ser adotada, mas normalmente duas saídas são escolhidas, explica Caroline Bauer, professora de História na UFRGS e ex-coordenadora do Laboratório de Usos Políticos do Passado.
Em geral, as barbaridades históricas foram cometidas havendo movimentos que as criticavam, mas que não foram considerados na história oficial.
THIAGO AMPARO
Professor da FGV
Uma é banir os símbolos do espaço público, como fez a Espanha, que debateu por anos como lidar com as estátuas de Franco, que comandou o país entre 1936 e 1975. Em 2007, o Estado espanhol aprovou a Lei da Memória Histórica, que retirou das ruas todos os símbolos de homenagem à ditadura franquista, fossem monumentos ou nomenclaturas de vias.
A outra saída é ressignificar elogios caducos com uma placa que explique o contexto ou então uma intervenção artística. Em Bordeaux, grande porto do tráfico de escravos na França, nomes de vias com referência a traficantes foram mantidos, mas avisos ensinam o que ocorria na região e prestam outra homenagem: “A cidade de Bordeaux honra a memória dos escravos africanos que foram desumanamente deportados para as Américas”, diz uma placa.
As pessoas podem achar que são ouvidas hoje, mas isso tem chance de mudar amanhã. O secretário de Educação de Rondônia recolheu obras de Machado de Assis porque ‘ofendiam’ a moral local.
GUNTER AXT
Historiador
Já o Paraguai optou por esmagar com um bloco de pedra a estátua do ditador Alfredo Stroessner em Assunção – no caso do país sul-americano, a arte simboliza o desprezo à ditadura.
– Muitas pessoas acham que o debate é tirar estátua de ditador para colocar de guerrilheiro, mas não. É questionar quem é homenageado, por que e por quem, e se queremos manter a homenagem. A escrita da história é sempre feita no presente, e a memória está em disputa. O debate assusta porque parece tirar a estabilidade, mas essa sensação é falsa, porque a sociedade sempre está ressignificando a memória de seus antepassados – afirma a professora, que questiona também a necessidade de culto. – Por que a gente precisa de heróis? Isso podia ter tido sentido no passado, mas faz sentido hoje? Será que não tem a ver com uma cultura na qual se espera muita resolução de um único sujeito enquanto, coletivamente, abdica-se de iniciativas?
Um passado pela frente
Em Porto Alegre, o debate também não é novo: um dos primeiros atos da cidade após a proclamação da República (1889) foi mudar o nome da Praça do Império para Praça XV, onde fica o Mercado Público. Mais tarde, certa Rua 10 de Novembro, nomeada para celebrar a ditadura do Estado Novo, tornou-se a Avenida Salgado Filho. Mais recentemente, a Avenida Castello Branco, que homenageia um dos presidentes da ditadura cívico-militar pós-1964, virou Avenida de Legalidade – o novo nome vingou após anos de discussões, mas, posteriormente, a via voltou a celebrar o ditador.
Intelectuais ligados ao movimento negro destacam que personagens homenageados já eram criticados em vida ou à época de sua imortalização, mas vozes de oposição costumavam ser sistematicamente silenciadas. Ou seja: a contrariedade não vem de agora; já estava estabelecida no passado.
Thiago Amparo, advogado e professor de direitos humanos e de políticas de diversidade na Fundação Getúlio Vargas (FGV), em São Paulo, defende que retirar estátuas não é apagar a história, mas discutir quem merece pedestal e elogio público. Ele afirma que o Brasil escolheu homenagear homens considerados “vencedores” em vez indígenas e negros massacrados e ressalta o grande número de monumentos para homens, em vez de mulheres.
– O que está por trás do debate é quem nós, enquanto sociedade e cidade, honramos no espaço público. As pessoas têm direito de contestar o lugar das figuras. Nenhum personagem histórico está acima de críticas, inclusive entendendo que, no momento em que atrocidades ocorreram, havia pessoas criticando tais atitudes. Em geral, as barbaridades históricas foram cometidas havendo movimentos que as criticavam, mas que não foram considerados na história oficial – pontua.
Por outro lado, há intelectuais que trazem ressalvas e pedem que as alterações sejam debatidas com calma, e não à força. Todos os personagens da história terão alguma mancha em sua biografia, lembra o historiador Gunter Axt, doutor em História Social pela Universidade de São Paulo (USP).
Autor do livro As Guerras dos Gaúchos, Axt celebra a existência do debate, mas alerta que a discussão pode enveredar para caminhos autoritários: na sua visão, a retirada de figuras históricas, em vez da sua manutenção com contextualização, é uma forma de reescrever o passado.
– Se você abraçar esse argumento, terá de mudar o nome de todas as ruas e tirar todas as estátuas das cidades. Como faremos a cada vez em que um novo grupo chegar ao poder ou que um mais um grupo de moradores fizer uma petição? As pessoas podem achar que são ouvidas hoje, mas isso tem chance de mudar amanhã. O secretário de Educação de Rondônia mandou recolher obras de Machado de Assis porque “ofendiam” a moral local. Da mesma forma que há queixas pelo Barão de Cotegipe, um reacionário pode mandar recolher Machado ou pedir uma “arte imperativa”. Se o monumento é ofensivo, vamos contextualizar isso em museus ou placas para mostras às próximas gerações o que as pessoas já pensaram – questiona Axt.
O historiador ainda discorda da alegação de que o Barão de Cotegipe era uma figura atrasada no seu tempo, argumento usado pelo manifesto que pede a troca de nome da rua do bairro São João, em Porto Alegre.
– Ele tinha uma ideia tipicamente conservadora de que proprietários de escravos deveriam ser indenizados, assim como ocorreu na Inglaterra. Isso não era posição de uma minoria naquela época – afirma Axt.
"Para inglês ver"
Um dos nomes mais importantes na política do Brasil imperial, na segunda metade dos anos 1800, o baiano João Maurício Wanderley, o Barão de Cotegipe (1815-1889), ocupou uma série de grandes cargos – foi deputado, senador, ministro das Relações Exteriores e braço-direito do imperador D. Pedro II, entre outras atribuições. Como senador pelo Partido Conservador, foi chamado pelo Partido Liberal a articular na aprovação da Lei dos Sexagenários, que libertava escravos com mais de 60 anos. Morreu meses antes de o Brasil virar uma República.
Segundo a historiadora Fernanda Oliveira, professora de História do Brasil na UFRGS, na prática a lei só impôs um verniz de conquista, uma vez que quase nenhuma pessoa escravizada sobrevivia até essa idade. Daí é que surge a expressão “para inglês ver”, uma forma de agradar aos ingleses que pressionavam pela abolição da escravatura.
A crise será medonha. A verdade é que haverá uma perturbação enorme no país durante muitos anos. Daqui a pouco se pedirá a divisão dos latifúndios, a expropriação, por preço mínimo ou de graça.
BARÃO DE COTEGIPE
Em discurso no Senado contra a abolição da escravatura
“Tenho conhecimento da nossa lavoura, especialmente das províncias de São Paulo, Minas Gerais, Rio de Janeiro e Bahia, e afianço que a crise será medonha. A verdade é que haverá uma perturbação enorme no país durante muitos anos”, discursou o Barão de Cotegipe, na bancada do Senado, ao votar contra a liberação dos escravos. “Daqui a pouco se pedirá a divisão dos latifúndios, a expropriação, por preço mínimo ou de graça. Esperem.”
Após sua morte, ele inspirou nome de vias e marcas comerciais e até de um município – como também ocorreu com David Canabarro e Getúlio Vargas.
Mudança de cultura
A derrubada de símbolos é, também, simbólica, lembra o doutor em História da Arte pela UFRGS e especialista em patrimônio histórico José Francisco Alves, pesquisador há mais de 25 anos em esculturas. Ele concorda com a retirada de monumentos do espaço público após debate intenso entre a sociedade, mas também afirma que há risco de exageros.
– As pessoas não se dão conta de que a vontade de destruir estátuas não é só “nossa”, mas de todos. Se aderirmos a essa causa de maneira violenta e furiosa, “nossos” símbolos também podem ser derrubados. Jair Bolsonaro teve quase 58 milhões de votos, imagina se ele propõe derrubar monumentos a mortos e desaparecidos ou se a Fundação Palmares, sob seu governo, propõe a derrubada de monumentos ao Almirante Negro (João Cândido) dizendo que ele cometeu assassinatos na Revolta da Chibata? Entendo a postura de militantes e que, quando o sangue ferve, uma estátua caia sem discussão. Mas, após o sangue esfriar, deve-se discutir – diz Alves.
Uma coisa é ressignificar a história, pegando símbolos e colocando em um museu a céu aberto para contar o que acontecia, outra é apagar a história. A cidade é expressão de seu tempo e de sua história.
RAFAEL PASSOS
Presidente do IAB-RS
Longe dos debates teóricos, quem vive na Rua Barão de Cotegipe não se entusiasma com a ideia. Após estacionar o carro na garagem tomada por pinturas da casa onde mora há 48 anos, o industriário aposentado e decorador Dupuy Doria Ferreira, 84 anos, inteirou-se sobre a discussão a partir do questionamento de GaúchaZH na fria tarde de quarta-feira (1º/7), quando a reportagem esteve na via.
– Que que tem o Barão de Cotegipe?
– Foi um político importante do Brasil Império que defendia a escravidão – responde o repórter.
– E só ele? Trocar o nome por causa disso é um absurdo. Há assuntos mais prioritários para os vereadores se preocuparem, como a invasão de certas áreas aqui perto por bandidos ou o entupimento dos canos de esgoto da rua – responde o morador.
O dentista Roberto Kopper, sócio de uma clínica odontológica na Barão de Cotegipe, alerta para um detalhe: caso a via troque de nome, seria preciso alterar as escrituras:
– O pessoal conhece há décadas a rua assim. É uma burocracia a mais, um transtorno a mais...
Já o presidente do Instituto de Arquitetos do Brasil no Rio Grande do Sul (IAB-RS), Rafael Passos, não vê problemas em um “efeito dominó” de mudanças de nomes. Passos lembra que o fenômeno não é novidade na capital gaúcha – que passou por mudanças em outros períodos.
– Nas primeiras décadas do século 20, houve troca massiva no nome das ruas no Centro Histórico. A Rua da Graça virou a Rua dos Andradas e a Rua do Arvoredo, Fernando Machado, por exemplo. Uma coisa é ressignificar a história, pegando símbolos e colocando em um museu a céu aberto para contar o que acontecia, outra é apagar a história. A cidade é expressão de seu tempo e de sua história – defende o arquiteto.
A questão ao redor do mundo
- Estados Unidos – Estátuas em homenagem a militares que lutaram na Guerra Civil norte-americana pelo lado dos confederados (defensores da escravidão) são constantemente criticadas nos EUA. O debate já levou movimentos negros e de supremacistas brancos às ruas mais de uma vez. O presidente Donald Trump defende a manutenção dos monumentos: “Aqueles que negam sua história estão fadados a repeti-la”, tuitou sobre o assunto. Uma estátua de Cristóvão Colombo foi destruída por manifestantes em Richmond (Virgínia), no mês passado, em meio à nova onda de questionamentos à presença dos monumentos.
- Reino Unido – Foi na Inglaterra que teve lugar o episódio mais icônico do levante questionando os nomes homenageados em espaços públicos. A população local derrubou a estátua do traficante de escravos do século 17 Edward Colston, posteriormente atirada no rio que corta a cidade de Bristol, importante porto escravagista do país em séculos passados. Questionamentos se estenderam também ao primeiro-ministro Winston Churchill, responsável por liderar a Inglaterra na vitória contra a Alemanha nazista durante a Segunda Guerra Mundial – agora, ele é criticado por falas racistas sobre indianos.
- Bélgica – Na Antuérpia, o monumento ao rei Leopoldo II, responsável por colonizar e massacrar a população do Congo, um dos mais sangrentos genocídios dos últimos séculos, foi vandalizado e depois retirado pelas autoridades. Deve ir para o Museu de Escultura ao Ar Livre de Middelheim.
- Portugal – Outro episódio de repercussão se deu em Lisboa, capital portuguesa, onde um monumento ao padre António Vieira, apontado como alguém que defendeu indígenas mas foi condescendente com a escravidão de negros, recebeu um banho de tinta vermelha e um grafite com a palavra “descoloniza”.
- França – Após o debate sobre vias que celebravam traficantes de escravos, habitantes de Bordeaux, cidade portuária do sudoeste francês, decidiram colocar, nas esquinas, placas explicando episódios ocorridos na região ligados à escravização e homenageando a população negra.
- Brasil – Em São Paulo, manifestantes pediram retirada da estátua do bandeirante Manuel de Borba Gato (1649 – 1718), desbravador de sertões de trajetória controversa que está ligado ao massacre de indígenas brasileiros nos séculos 17 e 18. Também há monumentos do bandeirante em Minas Gerais, onde ele viveu.