O movimento Black Lives Matter (“vidas negras têm importância”), particularmente a partir do questionamento aos monumentos que consagram figuras escravocratas, trouxe ao debate público uma proposta de ressignificação de episódios e personagens históricos.
A convite de GaúchaZH, dois historiadores com livros sobre o tema transformaram um diálogo estabelecido via e-mail em uma reflexão sobre essa proposta e aquilo que classificam como uma disputa pela construção da memória – que se dá de Bristol, na Inglaterra, ao sul do Rio Grande do Sul.
Quem começa a conversa é Éder Silveira, doutor em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), pós-doutor pela Universidade de São Paulo (USP) e professor da Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre (UFCSPA). Quem responde a provocação de Silveira é Ana Lúcia Araujo, professora da Howard University, em Washington (EUA) e membro do comitê científico do projeto A Rota do Escravo, da Unesco. Confira a seguir.
Éder Silveira:
"No dia 25 de maio de 2020, as imagens brutais do assassinato de George Floyd Jr., morto sufocado pelo policial branco Derek Chauvin, em Mineápolis, ganharam o mundo. Elas se tornaram o estopim para uma nova onda de protestos em torno de uma antiga questão: o racismo. O movimento Black Lives Matter gerou uma onda de protestos em vários países, exigindo a reforma das polícias e medidas concretas de combate ao racismo.
Um ponto que me parece particularmente interessante é a disputa de narrativas sobre a memória da escravidão e do racismo, que são bastante próximas de nós e presentes nas ruas das grandes cidades europeias, americanas e mesmo brasileiras. Algumas dessas disputas se concretizaram na derrubada da estátua de Edward Colston, em Bristol (Inglaterra), nos ataques à estátua de Leopoldo II, na Antuérpia (Bélgica), e à do padre António Vieira, em Lisboa (Portugal), e já levaram a prefeitura de Londres a se manifestar, afirmando estar identificando os marcos históricos que façam referência ao passado colonial para posterior remoção.
De todo modo, o caso de Colston me parece bastante eloquente. Ele era um conhecido mercador de africanos escravizados, tendo neste comércio infame a origem de sua fortuna. Ainda assim, além da estátua, inaugurada somente em 1895, quase 200 anos depois de sua morte, há vários pontos que fazem referência à sua memória em Bristol. Há muitos anos, a comunidade local faz petições para a retirada dessa estátua e a mudança de nome desses pontos. Medidas como essas vêm sendo defendidas em várias partes do mundo, mostrando que a memória é um tema em disputa. Banksy chegou a sugerir um projeto de intervenção nesta estátua, adicionando cordas ao pescoço de Colston e a inserção de manifestantes a derrubando, transformando-a em uma homenagem àqueles que jogaram esta estatua no fundo do rio. Esta disputa pela memória dos escravizados é de um bom combate, não achas?"
Ana Lúcia Araujo:
"Trata-se de um combate que vem ocorrendo há várias décadas, mas que, desde o final da Guerra Fria, na década de 1980, ganhou mais visibilidade. Antigos portos escravagistas, como Bristol, Liverpool (Inglaterra), Nantes e Bordeaux (França), vêm travando batalhas pela memória pública da escravidão desde esse período. Elas estiveram sempre associadas à persistência do racismo, das desigualdades raciais e da supremacia branca, como estrutura que permeia em silêncio essas sociedades que se construíram sobre os pilares da escravidão e do comércio atlântico de escravos. No caso da Inglaterra e da França, o passado colonial, seja na África, seja nas Américas, influenciou o perfil dos grupos que passaram a lutar para que a memória da escravidão e do colonialismo se tornasse visível no espaço público. Em comum, esses grupos, de perfil diverso, tinham a experiência da discriminação racial.
A falácia da democracia racial e o longo período da ditadura civil-militar, entre 1964 e 1985, impediram que o debate sobre o racismo emergisse mais cedo no Brasil.
ANA LÚCIA ARAUJO
Na verdade, a violência policial já tinha gerado rebeliões entre as comunidades negras e descendentes de imigrantes, em Bristol e em Liverpool. Desde então, grupos de ativistas, a cada vez mais organizados e com o apoio de acadêmicos, começaram a investigar e a trazer para o espaço público o passado escravista desses antigos portos. No caso de Bristol, a cidade foi o segundo maior porto escravista britânico, de onde partiram mais de 2000 navios negreiros com direção ao continente africano e de lá transportaram para as Américas mais de meio milhão de africanos escravizados. Colston era natural de Bristol e considerado o patrono da cidade, que pertencia a uma família de mercadores. Quando adulto, em 1680, tornou-se membro da corte de assistentes da Royal African Company, encarregada do comércio com o continente africano. Documentos sobre sua participação em reuniões da companhia mostram que aprovaram a deportação de africanos escravizados para o Caribe. Em outras palavras, Colston fez fortuna com vários negócios associados ao comércio de escravizados e a economia açucareira no Caribe que utilizava trabalho escravo. Mas, como muitos desses mercadores, doava parte da sua fortuna para escolas e instituições de caridade.
Durante o século 20, a memória coletiva e a memória pública gradualmente apagaram essa participação do comércio infame para preservar a dimensão filantrópica da atuação de Colston. Mas durante os anos 1990, seu passado escravista volta à tona, junto com iniciativas que visavam dar visibilidade para o passado escravista de Bristol. Desde então, houve dezenas de tentativas de remover sua estátua e criar placas contextualizando a estátua. Em várias ocasiões, artistas e ativistas fizeram intervenções no monumento que, apesar de tudo, continuou em pé e intacto até o dia 7 passado."
Éder Silveira:
"Como seria de se esperar, este debate chegou ao Brasil com força total. Aqui, embalado pelos repetidos casos de violência policial contra as comunidades negras e de moradores das periferias das nossas grandes cidades, o racismo obriga a se trazer a baila o nosso passado colonial. Em poucos dias, tivemos o assassinato do adolescente João Pedro, de 14 anos, alvejado pelas costas em operação na comunidade do Salgueiro, em São Gonçalo/RJ, e a morte de Miguel Otávio de Santana, de cinco anos, deixado sozinho pela empregadora de sua mãe, o que o levou a cair do nono andar do prédio onde esta morava, em Recife/PE.
Ainda são tímidas as obras públicas que demarquem, de forma inequívoca, a presença africana e indígena em nossas cidades, dando protagonismo a personagens de resistência à escravidão. Persistem, por incrível que pareça, o patético culto ao bandeirismo em São Paulo ou aos Farroupilhas no Rio Grande do Sul.
ÉDER SILVEIRA
O racismo, ora velado, ora explícito, é a marca mais perversa deixada pelo passado colonial. Fomos o último país das Américas a abolir a escravidão. O comércio de africanos escravizados seguiu firme em território nacional, mesmo depois de sua proibição. Ainda que exista, há décadas, a pressão por parte do movimento negro e de intelectuais, que vêm se esforçando para deixar explícitas as marcas desse passado escravocrata, ainda são tímidas as medidas para apagar do espaço público as homenagens a notórios proprietários de africanos escravizados e a pessoas ligadas ao assassinato de comunidades indígenas. Em contrapartida, ainda são tímidas as obras públicas que demarquem, de forma inequívoca, a presença africana e indígena em nossas cidades, dando protagonismo a personagens de resistência à escravidão. Persistem, por incrível que pareça, o patético culto ao bandeirismo em São Paulo ou aos Farroupilhas no Rio Grande do Sul.
Falando em memória pública desse passado colonial, confesso que me causa espanto que a estátua de Borba Gato, em São Paulo, esteja reunindo defensores quando, há bastante tempo, é pedida a sua retirada. Temos, é sabido, um longo caminho a trilhar."
Ana Lúcia Araujo:
"Como na Europa e em outras regiões das Américas, o debate sobre a memória pública da escravidão no Brasil também é diretamente associado ao racismo e às desigualdades raciais. A diferença é que o Brasil importou em torno de 5 milhões de africanos escravizados e hoje mais de 50% da população brasileira é negra. A falácia da democracia racial e o longo período da ditadura civil-militar, entre 1964 e 1985, impediram que o debate sobre o racismo emergisse mais cedo.
Uma das principais lacunas que vemos no Brasil é que o patrimônio material da escravidão não é preservado ou, quando o é, tende a apagar qualquer referência à escravidão. Tomemos como exemplo as charqueadas no sul do Rio Grande do Sul. Muitas delas foram transformadas em pousadas, porém, ao visitá-las in loco ou mesmo nos websites, o que é ressaltado é a beleza desses lugares, raramente deixando escapar referências aos escravizados.
ANA LÚCIA ARAUJO
O Brasil está repleto de lugares de memória da escravidão. Monumentos em homenagem a traficantes e proprietários de escravos são mais raros que nos Estados Unidos, ainda assim, eu diria que uma das principais lacunas que vemos no Brasil é que o patrimônio material da escravidão não é preservado ou, quando o é, tende a apagar qualquer referência à escravidão. Tomemos como exemplo as charqueadas no sul do Rio Grande do Sul. Muitas delas foram transformadas em pousadas, porém, ao visitá-las in loco ou mesmo nos websites, o que é ressaltado é a beleza desses lugares, raramente deixando escapar referências aos escravizados. Ainda assim, cidades como Porto Alegre fizeram esforços nos últimos vinte anos para marcar os lugares de memória da escravidão. Penso aqui no Museu do Percurso do Negro, que inclui vários lugares no centro da cidade como a Igreja Nossa Senhora das Dores e o Mercado Público. O próprio Museu Júlio de Castilhos, que apesar de pequeno e muito abandonado, é um dos primeiros do Brasil a abordar o tema da escravidão.
Apesar disso, o culto aos Farroupilhas e o mito do gauchismo continuam muito fortes. A narrativa da dita “revolução” Farroupilha elimina a participação dos homens negros como carne de canhão durante a guerra. Os guardiães do patrimônio Farroupilha também continuam ativos em eliminar a presença negra nos centros de tradição gaúchas ao mesmo tempo em que negam seu profundo racismo. Em outras palavras, a guerra simbólica, seja ela em relação aos monumentos ou ao patrimônio material e imaterial, vai continuar viva enquanto o racismo brasileiro existir.