No segundo dos quatro episódios da minissérie Olhos que Condenam (2019), a mãe de um dos jovens negros presos injustamente no caso que ficou conhecido como “Os Cinco do Central Park” vê Donald Trump discursar, na televisão, a favor da pena de morte para os garotos. Era 1989, e o hoje presidente dos EUA ainda estava no início de sua escalada política. Trinta anos depois, uma produção de TV cobra o racismo latente de sua manifestação, recriando essa história do passado a partir de uma ponte com o presente. E Trump, mesmo consciente do desfecho do caso (o verdadeiro criminoso foi identificado em 2002, quando só então o quinteto pôde sair da cadeia), não cedeu: segue negando-se a pedir desculpas pela campanha difamatória que liderou à época.
Essa sequência emblemática, em um dos mais pungentes seriados dos últimos anos, ilustra a maneira com que o cinema e a TV têm respondido às tensões raciais dos EUA em tempos de levantes como o observado após a morte de George Floyd: com uma contundência raras vezes vista em Hollywood. Os comentários sociais já vinham caracterizando parte da melhor produção audiovisual norte-americana do século 21 (os filmes antibelicistas sobre o Iraque e o Afeganistão são uma prova), mas foi a partir da eleição de Trump, em 2016, que viu-se deflagrado uma espécie de movimento cuja marca é a reflexão sobre o racismo.
O prenúncio desse movimento deu-se ainda na primeira metade dos anos 2010, quando nem a consagração de 12 Anos de Escravidão (2013) no Oscar ocultou a disparidade do reconhecimento obtido por cineastas e intérpretes negros e brancos. Enquanto a Academia de Hollywood revia conceitos e diversificava seu corpo de integrantes buscando amenizar o problema, o próprio mercado mudava profundamente, a partir da evolução das séries de TV e da popularização das plataformas de streaming. Com a Netflix e a Amazon Prime, entre outras, documentários com potencial de mercado antes limitado ganharam mais espaço, o que acabou não apenas permitindo a realização, mas potencializando o alcance de filmes como A 13ª Emenda (2016) e Eu Não Sou Seu Negro (2016). Esses dois longas-metragens, que facilmente podem ser incluídos entre os melhores da década, são o ponto culminante de uma estética burilada ao longo dos anos anteriores, em títulos como Free Angela (2012), Freedom Summer (2014) e Os Panteras Negras (2015).
A figura de Ava DuVernay merece atenção especial. Diretora de Selma (2014), que foi indicado ao Oscar, e vencedora do Sundance Festival com Middle of Nowhere (2012), sem lançamento comercial no Brasil, ela transformou-se em um dos grandes nomes do movimento ao depurar seu discurso, tornando-o mais enfático a partir de filmes como A 13ª Emenda e séries como Olhos que Condenam – lançados justamente após a eleição de Trump.
Outro nome de destaque, Jordan Peele já tinha mais de 10 anos de carreira como ator quando dirigiu Corra! (2017), outra pequena obra-prima dessa safra, que mistura suspense com ficção científica, diversificando o movimento tanto do ponto de vista estético quanto discursivo. Peele ainda realizou Nós (2018), uma alegoria de alta potência sobre o terror da desigualdade em uma de suas facetas mais perversas: o controle social estabelecido pelas classes mais elevadas, que conta com a falta de conscientização de quem não tem as mesmas oportunidades dos brancos bem-nascidos.
Essa eloquência toda faz com que filmes agridoces como o oscarizado Green Book (2018) e séries com temáticas correlativas como The Get Down (2016), embora tenham representatividade e capacidade de tocar parte do público, pareçam de outra época. O que vai ficar da era Trump, no melhor cinema e na melhor TV norte-americanos, é a impressão de que, além de serem realizadas em maior número, as produções que abordam o racismo adotaram uma retórica mais veemente. Deixaram as meias palavras de lado para gritar.
O tom se mostra em sintonia com o dos protestos desencadeados pela morte de George Floyd e, também, com a forma como reagiu a mãe de um dos adolescentes que passaram 13 anos na cadeia pagando por um crime que não cometeram no caso narrado em Olhos que Condenam.
10 produções imperdíveis da Era Trump
Atlanta
Série da Fox criada e protagonizada pelo ator Donald Glover que narra a dura jornada de um jovem tentando a vida como agente de rap. Estreou em 2016, está na quarta temporada (as duas primeiras estão disponíveis na Netflix; na Fox Play a série está na íntegra). Ganhou três Emmys e dois Globos de Ouro.
Eu Não Sou Seu Negro
Inventivo documentário de 2016 no qual o produtor e diretor Raoul Peck usa o livro inacabado de James Baldwin (1924-1987) sobre o racismo nos EUA para examinar trajetórias como as dos grandes ativistas negros do século 20.
A 13ª Emenda
Outro documentário que, assim como Eu Não Sou Seu Negro, foi produzido pela Netflix e indicado ao Oscar de 2017. Com muitos dados e análise sociológica, a narrativa construída pela diretora Ava DuVernay associa o racismo ao combate às drogas e às prisões de negros nos EUA.
Moonlight
O drama de Barry Jenkins sobre a trajetória errática de um homem negro e gay comoveu plateias ao redor do mundo. Foi consagrado com três Oscar, incluindo melhor filme, em 2017. Disponível na Netflix.
Corra!
Indicado a quatro Oscar em 2018, vencedor da estatueta de melhor roteiro original, este suspense aterrorizante de Jordan Peele traz Daniel Kaluuya como protagonista de uma trama sobre a visita de seu personagem à casa dos pais da namorada – que se transforma em uma verdadeira viagem ao inferno. Disponível na Netflix.
Dear White People
Série que o diretor Justin Simien adaptou a partir de 2017 (a quarta temporada estava em filmagens antes da pandemia de coronavírus) de seu filme homônimo lançado em 2014. Trata do racismo em um registro cômico que usa o ambiente universitário como microcosmo da sociedade em geral.
Infiltrado na Klan
Um dos filmes mais premiados da carreira do veterano Spike Lee, narra a história de um policial negro que se infiltra na célula da Ku Klux Klan no Estado do Colorado. Indicado a seis Oscar em 2019, vencedor na categoria de roteiro adaptado.
Se a Rua Beale Falasse
O mais recente longa de Barry Jenkins narra a história de um jovem casal negro separado quando o homem é preso por um crime que não cometeu. No ano passado, venceu o Oscar de atriz coadjuvante (Regina King). Disponível na HBO Go.
Nós
Esquecido na mais recente edição do Oscar, o suspense de Jordan Peele estrelado por Lupita Nyong'o conta uma história intrincada sobre uma família atormentada por duplos idênticos aos personagens durante um fim de semana na praia.
Olhos que Condenam
Vencedor de dois Emmys, de melhor elenco e melhor ator (Jharrel Jerome), além de obter outras 12 indicações, a série de Ava DuVernay revê o célebre caso de condenação equivocada de cinco adolescentes por estupro na Nova York de 1989. Disponível na Netflix.