Por Ana Costa
Membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre (Appoa), autora de “Tatuagem e Marcas Corporais (Ed. Casa do Psicólogo, 2013) e “Luz e Tempo. Ato e Repetição” (Escuta, 2019)
Numa edição de 2018 da revista Piauí, Flora Thomson-Deveaux escreve um artigo em que se detém numa pesquisa sobre a palavra “calabouço”, indagação surgida na tradução que fez para o inglês do livro de Machado de Assis Memórias Póstumas de Brás Cubas. A palavra chama sua atenção no trecho em que Machado coloca na boca de Brás Cubas uma crítica mordaz a respeito de Cotrim, seu cunhado, quando descreve seu caráter. Seus inimigos o acusavam de bárbaro por mandar com frequência escravos ao calabouço.
Como se sabe, a ficção de Machado é também uma representação de época: o Rio de Janeiro do século 19. Por essa razão, a autora se perguntou que calabouço seria esse a que Machado se referia, até descobrir que, em 1693, um alvará régio determinou sua construção como uma “casa pública para castigo dos escravos” na cidade do Rio de Janeiro. Ou seja, os senhores de escravos delegavam o castigo de seus cativos ao Estado.
Numa ironia ácida, a tortura doméstica era ilegal não somente por razões de “humanidade”, mas porque os gritos perturbavam os vizinhos. Assim, o calabouço era um substituto do castigo ilegal, castigo este paradoxalmente delegado ao Estado.
Sublinho a seguinte passagem do artigo de Thomson-Deveaux: “É estranho pensar que o nome Calabouço continue entre nós, dissociado de sua história. Mais estranho ainda é perceber que o sistema penitenciário contemporâneo mantém algumas das suas piores características, ainda que com outros nomes e estruturas”. A estranheza em relação ao nome que “continua entre nós” diz respeito ao fato de que, no início de sua pesquisa sobre o termo, em referências contemporâneas no Google, encontrou-o como nome de um bar de heavy metal na Tijuca e como o restaurante Calabouço, cenário do assassinato do estudante Edson Luís por policiais militares.
Pode-se dizer que o citado artigo não traz informações muito novas em relação àquilo que muitos analistas sociais já examinaram, tal como a sobrevivência insidiosa e velada das relações entre poder econômico e instituições legais do Estado, herança perversa nunca transposta de um Brasil colonial. No entanto, como psicanalista, esse trabalho me interessa particularmente, porque revela o que fazemos com a História e como isso nos afeta hoje.
A psicanálise reconhece que existem mecanismos diferentes de apagamento da história e seus efeitos não são iguais. Primeiramente, o mecanismo de recalcamento, que resulta em formações sintomáticas substitutivas, em que o que foi recalcado o sujeito não reconhece como próprio. Freud situou esse mecanismo como responsável por uma espécie de covardia moral do neurótico, que atribui ao outro a responsabilidade de algo que o implica. O segundo mecanismo opera como uma foraclusão, ou seja, algo que não tem nome, que fica do lado de fora das trocas simbólicas nas relações sociais, mas que as afeta violentamente. É um dentro que fica fora (como numa periferia), excluído da circulação dos valores, no qual um acontecimento que não tem nome próprio reconhecido retorna na forma de injúria e atos violentos. Assim funciona socialmente a segregação.
A recusa perversa – ao mesmo tempo afirmando e negando o acontecido – mantém a violência de uma injúria que se transmite de uma geração a outra, ou seja, mantém o calabouço como uma violação que se repete, sem possibilidade de superação.
O terceiro mecanismo é a recusa, responsável por funcionamentos perversos, em que alguém pode afirmar e negar, ao mesmo tempo, a existência de algo. Em termos enunciativos, funciona como um “eu sei, mas mesmo assim eu nego”. Ou seja, algo que está explícito e diz respeito a posições cínicas.
Retomo a frase de Thomson-Deveaux em que “Calabouço continua entre nós” dissociado de sua história para indicar que todos os mecanismos citados acima se retroalimentam. O termo apagado nomeia a particularidade da estrutura de um racismo que se estabeleceu entre nós e que permanece vigente em nossas representações e atos. Calabouço nomeia a cena de um gozo perverso em que o corpo escravo era marcado pelo açoite como coisa-mercadoria na “casa pública para castigo dos escravos”. Dissocia a responsabilidade dos donos do poder, delegando-a às legislações do Estado, que no mesmo ato legisla e comete transgressão das próprias leis que estabelece. Situa os donos do poder na cena, gozando da posição de voyeur, sem implicação naquilo que promovem. Calabouço – e seus derivativos nos porões – esconde e “limpa” a cena pública, permitindo a concessão neurótica ao poder, concessão daqueles que não querem ver.
Por último, a recusa perversa – ao mesmo tempo afirmando e negando o acontecido – mantém a violência de uma injúria que se transmite de uma geração a outra, ou seja, mantém o calabouço como uma violação que se repete, sem possibilidade de superação.