Doutor em Letras pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), o músico e poeta Richard Serraria é um dos mais profícuos pesquisadores da cultura afro-gaúcha. Nascido em Porto Alegre com o nome de Richard Belchior Klipp Burgdurff, resultado de uma insólita mistura de sangues guarani, negro, alemão e russo, ele adotou o nome artístico ao criar, em 1997, a banda Bataclã FC, em que os integrantes identificavam o nome com seus bairros ou vilas de origem – hoje ele não mora mais na Serraria, mas o sobrenome ficou. Nesses 23 anos, lançou três discos com a Bataclã FC, quatro solos e um CD/DVD com o grupo Alabê Ôni (que, em 2012-13, fez shows em 120 cidades de todos os Estados dentro do Projeto Sonora Brasil, do Sesc). Já levou sua música a Cuba, Espanha e Marrocos. Entre seus prêmios, estão oito troféus Açorianos. Nesta entrevista (feita dias antes do início das medidas de isolamento), cercado de livros sobre escravatura, batuque, etnias afro-brasileiras, índios, candombe, congadas, rap e poesia e do tambor sopapo, Richard fala do desenvolvimento de seu trabalho.
O show Poesia para Todo Sampler, que vinhas apresentando antes da pandemia atual, é uma espécie de resumo de teus questionamentos músico-literários?
É uma ideia que tenho há tempos de trabalhar a poesia vocal. Minha história é, sobretudo, poética - falo poética porque minha ferramenta é a poesia. É a poesia com a banda Bataclã FC no formato rap, por exemplo. Nesse show, que na verdade eu chamo de intervenção, de performance, tenho pesquisado muito as poéticas africanas, questões relacionadas à oralidade. O conceito de literatura é eurocêntrico, e a cultura dos povos originários do Brasil, assim como a cultura de parte dos africanos, é eminentemente oral. Isso tem me instigado a pensar nessa dimensão do rap, que já faço há bastante tempo; do slam, que é uma competição de poesia falada que surge em Chicago e que se dissemina no mundo todo nos últimos anos, explodindo no Brasil a partir de 2013-14; e, ao mesmo tempo, tenho pensado na relação de tudo isso com o sopapo, instrumento de percussão criado pelos negros escravizados nas charqueadas na zona sul do Estado. No meu caso já é uma relação de mais de 20 anos, comecei trabalhar com ele em 1999, depois de conhecer pessoalmente o músico Giba Giba (1940-2014), que na época trabalhava na Secretaria da Cultura do Estado e estava idealizando o Cabobu, encontro de percussão e cultura negra que se realizou em Pelotas no ano de 2000. E pensado ainda nessa dimensão da poesia que é feita também junto aos tambores no espaço ritualístico, o Batuque de Nação, as congadas, o candombe. Isso tudo carregou para essa intervenção chamada de Poesia para Todo Sampler, em que uso os elementos eletrônicos para trabalhar diferentes suportes para a poesia falada, declamada, cantada, melodiada, ritmada com tambor, ritmada com o violão, enfim, diferentes suportes em que a palavra é o elemento central.
Esse é um modelo que estás desenvolvendo agora. Como chegas hoje a ele através do trabalho com o Bataclã FC?
O Bataclã é um grupo musical que surge no final da década de 1990, na Faculdade de Letras da UFRGS. Ali, crio esse espaço de materialização da palavra poética no formato canção, que dialoga com o rap. É um direcionamento para pensar também esta antropofagia de mesclar a cultura de massa - o pop, o rock, a efervescência do rap e a percussão negro-gaúcha. Isso traz também a questão da negritude, que é algo com que me identifico muito politicamente; num Estado de folclore eurocêntrico, como o Rio Grande do Sul, pensar a presença negra forte na cultura popular. Isso, basicamente, é o Bataclã FC, com suas percussões de carnaval. A partir da primeira década, começo a adentrar naquilo que chamo do meu processo de "musicalização". Avanço um pouco mais em busca do canto melodiado, que é o disco Vila Brasil, de 2008, em que me afasto um pouco do rap para buscar outras dimensões da voz cantada. Depois, no disco Pampa Esquema Novo, de 2011, um disco de estrada, de road songs, que faço em Buenos Aires, em Montevidéu, Rio, São Paulo e Porto Alegre, penso Porto Alegre nessa relação cultural. Com músicos de todas essas cidades, Pablo Grinjot, Sebastián Jantos, Daniel Drexler, Zeca Baleiro, Marcelo Delacroix, Pirisca Grecco, Andréa Cavalheiro e muitos mais.
Fizeste recentemente shows na Argentina e no Uruguai. Como teu trabalho é recebido por lá?
Com certa curiosidade. Quando tu falas em Brasil, a associação é com a riqueza da MPB, o samba, a bossa. Mas, ao mesmo tempo, acho que traz também a questão do gaúcho levando essa informação de música negra. "Rio Grande do Sul", "negritude", "manifestações quilombolas", "congada", "sopapo": isso tudo surpreende, não há uma associação direta como quando chega um artista carioca ou baiano em que esses elementos dos tambores estão identificados com a cultura popular desses lugares. Aqui no Rio Grande do Sul, nós temos esse distanciamento. Eu arrisco pensar – com o referencial da história, da antropologia, da etnomusicologia, de livros de Dante de Laitano, da Luciana Prass, do pessoal que estuda o Batuque como Norton Figueiredo, Reginaldo Gil Braga, Ari Pedro Oro – de quanto isso foi afastado, digamos assim, desse folclore oficialesco do fim da década de 1940, dos CTGs.
No Rio Grande do Sul, o folclore ‘oficialesco’ exclui as presenças indígena e negra na formação do Estado. O negro ou o indígena que aparece ali é de uma forma romântica.
Tens uma visão crítica do tradicionalismo?
O tradicionalismo traz uma importante contribuição, sem dúvida, por fazer um levantamento de materiais que estavam vivos no Interior. Mas, ao mesmo tempo, deixa de lado a questão afro-indígena. Então, quando chego no Uruguai, na Argentina, sempre tem essa inquietação de parte da imprensa. O público recebe de uma maneira positiva, surpreendente até certo ponto porque vê e ouve um artista gaúcho trazendo essa informação negra. Para mim, isso é muito importante, pois considero um trabalho político de afirmação da presença negra, não só no Rio Grande do Sul, como de resto na Bacia do Prata, através do modelo econômico das charqueadas, de buscar essas referencias na música uruguaia, de pesquisar as origens do candombe, de pesquisar a matriz negra presente em Buenos Aires na gênese do tango argentino, da milonga e de outros gêneros que circulavam nessa zona portuária, onde havia também a confluência de imigrantes judeus, italianos, ingleses com negros escravizados. Pensar ainda como isso se mostra na música argentina, uruguaia, e na música praticada no Brasil. Até certo ponto, pela identidade nacional pós-Estado Novo construída no Brasil ao longo do século 20 parece uma obviedade, mas, para o Rio Grande do Sul, não é.
Por quê?
Não é obvia essa associação em função da questão do tradicionalismo a que me referi. Quando coloco esses elementos em um material como Poesia para Todo Sampler, acho que é trazer a palavra para a linha de frente e pensar como ela dialoga com os diferentes suportes, com a voz falada. Esse é um elemento que tem bastante a ver com a expressão dos povos de África, do Griô, o cara que é o contador de histórias, é a memória coletiva de uma determinada comunidade. Vai na direção também de pensar essa relação dos povos indígenas. O pajé, o xamã – esse cara que também é um guardião da memória e que utiliza a voz falada. E pensando também nesse referencial que já visito há algum tempo, que é o rap, o beat box – poesia acompanhada por uma batida feita vocalmente. Mais o violão, instrumento muito identificado com a música brasileira e, obviamente, a questão do tambor, do sopapo. Esses elementos, que nos povos originários e na cultura africana estão todos imbricados ritualisticamente, na cultura ocidental a gente separa. Uma coisa é a poesia, outra coisa é a música, outra a dança, outra a espiritualidade - ou a religiosidade. Nos povos originários essas coisas estão todas juntas com uma função cotidiana mais ampla e inseparável. Então, Poesia para Todo Sampler é uma confluência de diferentes momentos da minha carreira como músico e pesquisador.
O sopapo é originário da região das charqueadas de Pelotas, um tambor grande e de som grave. Fale um pouco sobre a importância desse instrumento e da importância de Giba Giba na transmissão do sopapo da escravatura para cá.
Giba Giba é uma figura fundamental na história da cultura negra do Rio Grande do Sul. Gosto sempre de mencionar aquilo que considero uma tríade elucidativa da maturidade cultural da expressão negra no século 20. Nisso coloco Oliveira Silveira, com a poesia – o também poeta e músico Ronald Augusto usa um termo bem bacana no prefácio da Obra Reunida do Oliveira Silveira, dizendo que "somos todos galhos dessa grande árvore chamada Oliveira". Coloco também o Mestre Borel, figura fundamental na questão da espiritualidade, da permanência do Batuque de Nação Oyó Idjexá que é uma matriz religiosa negra bastante específica do Rio Grande do Sul. E coloco Giba Giba para fechar essa tríade. Óbvio que tem uma série de outras figuras, mas centro nesses três porque me parece que, com eles, a gente pega essa literatura canônica de livro, a canção com sopapo e a ainda a riqueza cultural da espiritualidade ritualística do povo negro sul-rio-grandense.
Giba Giba era um cara do samba, do Carnaval, foi o fundador da Praiana, primeira escola de samba moderna de Porto Alegre. Ele também tem esse dado nacional, vamos dizer
O Giba traz um dado interessante para pensarmos a história do sopapo em um arco histórico mais amplo. O uso do sopapo nas charqueadas era ritualístico e o Giba é a ponte que traz para o futuro esse tambor através dos blocos burlescos de fins do século 19 e início do 20, pais das escolas de samba que surgem ali pelas décadas de 1930-40 no Rio Grande do Sul. Nos faz pensar nesse sopapo das charqueadas e na chegada do povo negro na Bacia do Prata e no Sul do Brasil – ou se quisermos pensar de forma mais ampla, na América, o processo do escravismo todo, aquilo que os estudiosos chamam de diáspora. A matança de gado nas charqueadas em Pelotas era feita com o pedido de permissão no sopapo, um toque feito pro Bará, o orixá que abre os caminhos.
No encarte do disco Pampa Esquema Novo, usas uma gravura do viajante alemão Hermann Wendroth (perfilado no caderno DOC da ZH de 7 e 8 de março) que mostra um negro "montado" em um sopapo.
Sim, Wendroth andou pelo Rio Grande do Sul ali por 1852, assim como seu contemporâneo Debret andou pelo sudeste do Brasil imperial. Mas no final do século 19, à medida em que o modelo da charqueada vai desaparecendo, aliado a chegada dos frigoríficos no início do século 20, o sopapo encontra seu espaço de sobrevivência nos blocos do carnaval de rua nas cidades de Pelotas e Rio Grande, e logo nas escolas de samba. No final do século 20 ele chega quase à extinção nas escolas em função da "carioquização" do samba, um processo que tem a ver com a mídia de massa, com as escolas trocando o couro animal pelo material sintético, e também pela aceleração do andamento do samba. O sopapo é um instrumento que timbristicamente apresenta um grave absoluto, fazendo papel do surdo de terceira, preenchendo os espaços entre os surdos de primeira e segunda, fazendo o molho, o suingue, o groove. Em um samba muito acelerado, perde esse espaço, porque acaba ocorrendo o que alguns carnavalescos chamam de "embolamento". Na verdade, não é que ele embole, mas que o andamento é muito rápido para a função dele. Então começa a sair das escolas de samba. Mas o Giba, sabiamente, traz o sopapo para a música popular porto-alegrense das décadas de 1960-70, nos grupos em que atua, como Canta Povo, Uma Mordida na Flor e outros. Ali começa uma terceira fase do sopapo, a da música popular. O festival Cabobu foi, de certo modo, a materialização disso, a passagem de bastão do Giba para uma nova geração. No século 21 ele ganha um espaço de permanência em outro habitat. Seu uso está em processo de crescimento. Em meus trabalhos solos, no Bataclã FC e no Alabê Ôni, usa-se sopapo o tempo todo, assim como outros artistas já vêm fazendo.
Geralmente, a historiografia relega à áfrica a contribuição na parte do ritmo, da dança, da sensualidade dos corpos. Há uma poética subterrânea.
Como foi tua formação?
Meu pai era eletricista e minha mãe trabalhava na Brigada Militar como costureira. Ele era filho de uma índia guarani de São Miguel das Missões, casada com meu avô de descendência russa. Já da parte da minha mãe, minha avó era negra, da região dos Quilombos de Três Forquilhas (litoral norte do Rio Grande do Sul), com um avô de origem alemã. Pelodurismo legítimo, com muito orgulho. Em minha casa não havia livros, mas meus tios tinham uma pequena biblioteca. E meu avô, que trabalhava vendendo balas, sempre chegava com um jornal, que eu sempre lia. Os jornais de meu avô, os livros e revistas de meus tios, me trouxeram o gosto pela expressão da palavra. Como em minha família não havia expectativas em relação a cursos superiores, sempre tive a liberdade de escolher o que quisesse fazer. Meu sonho era ser escritor, então presto vestibular para a UFRGS – única alternativa em termos de condições financeiras, trabalhava de office boy em uma imobiliária. Faço o curso de Letras e me encontro na literatura. As partes mais estruturais da linguagem, gramática, latim, grego, não me interessavam tanto. Mas ali achei um mundo fascinante de histórias, palavras, jogos verbais, arte de palavras.
Que tipo de livros gostavas de ler, na infância e depois?
O primeiro livro de que tenho lembrança é um para crianças do Erico Verissimo, O Urso com Música na Barriga, edição especial da RBS. Depois vieram outros. Eu ia conseguindo ler de uma forma muito espontânea e sem nenhum tipo de mediação. Quando fiz o segundo grau no Colégio Júlio de Castilhos, na década de 1980, tive um contato maior com a literatura. Eu tinha um professor, Willy Petersen, que trabalhava literatura de um modo fascinante. Entre tantas coisas, me mostrou um poeta francês chamado Arthur Rimbaud, que me impressionou muito. Um pouco eu entendia, um pouco não entendia. Levava pra casa, lia, voltava pra aula e perguntava. Willy estimulava, ia trocando ideias dentro desse âmbito da poesia, que se sobressaía entre meus interesses.
Interesses que levas para a faculdade...
No curso de Letras, tenho um encontro que julgo fundamental na minha vida poética, que é o contato com a poesia de Carlos Drummond de Andrade e João Cabral de Melo Neto, através da professora Maria do Carmo Campos. Ela tinha um grupo de estudos de drummondianos e cabralinos. Aquilo era fantástico porque eram dois autores fundamentais na lírica brasileira do século 20, até certo ponto aparentemente opostos, mas complementares. Entendendo os dois, entendendo a lírica "derramada" cotidiana do Drummond em oposição àquela "secura" toda do Cabral, aquilo ali dava um panorama bacana. Em 1999, tive a sorte de ser recebido por João Cabral em sua casa no Rio de Janeiro. Conversamos duas vezes, várias horas. Minha relação é basicamente com a poesia, a poesia de Drummond, mas sobretudo a de João Cabral. Encontro a poesia em minha adolescência, no Colégio Júlio de Castilhos, e a levo para meu objeto de expressão, que é a canção, que é o rap.
Quando virá o primeiro livro?
Planejo publicar em 2020 o livro Sopaporiki. Oriki é uma poética da Nigéria que tenho estudado, e no livro o sopapo assume a cosmogonia dos 12 orixás do Batuque. No primeiro capítulo o sopapo é o Bará, no segundo é o Ogum, no terceiro é Iansã, no quarto é Xangô, e assim ele vai até chegar a Oxum, Iemanjá e Oxalá, que é o décimo segundo.
Onde tem origem teu interesse pela questão da negritude? É uma consequência dos teus estudos?
Sim, uma consequência dos meus estudos. Na verdade, dentro da classificação do IBGE, em relação à cor, me autodeclaro pardo, portanto negro. Tanto para o movimento negro como para as políticas públicas, pretos e pardos são pessoas negras. Mas a autodeclaração de cor é mais do que mera classificação, penso na questão política, de trazer a tona esse elemento que está presente na minha trajetória familiar, e que, ao mesmo tempo, abarco ao longo da minha vida universitária e, sobretudo, na artística. Ética e estética, política e poesia.
E a África?
Busco, sobretudo, a referência de poesia africana, a questão dos orikis, por exemplo, uma tradição ainda viva na Nigéria. Ela tem esse elemento da oralidade. É a expressão da voz falada em praça pública, algo feito para aquele instante. A dimensão do texto, de colocar numa forma escrita, não é o elemento mais importante. Pensando nesse estudo que se faz da literatura brasileira, e também no estudo da canção brasileira, geralmente a historiografia relega a África à contribuição na parte do ritmo, da dança, da sensualidade dos corpos. Temos o lundu, que gerou o jongo, que gerou o samba, ou seja: os tambores. A canção brasileira seria a confluência desse ritmo com a harmonia europeia. Ou seja, não cabe ao negro a reflexão intelectual, a parte de letra, de poesia. E aí eu tenho pensado nessa poética subterrânea, a presença da poética negra que tem seu espaço de permanência e de sobrevivência em rituais como o Candomblé, o Batuque, o Xangô pernambucano, a Casa de Minas no Maranhão. Essa poética, que pela oralidade permanece viva nos rituais, que sempre transborda e encontramos elementos dela em uma canção de Caetano, uma canção de Gilberto Gil, de Sebastián Jantos, um ou outro elemento em canções do Giba Giba e por aí vai...
Existe boa bibliografia sobre o tema?
Alguma coisa. Entre os lançamentos recentes, é fundamental o Dicionário da Escravidão e Liberdade, organizado por Lilia Schwarcz e Flávio Gomes, com textos de 50 autores (Companhia das Letras, 2018). Tenho vários livros, de Nei Lopes, que fez o Dicionário Banto, de Mário Maestri, José Ramos Tinhorão, Luciana Prass, etc. Coisas do Uruguai também, toda a história do candombe via Lauro Ayestarán. Quer dizer, venho reunindo elementos para montar esse quebra-cabeça. E resolvi priorizar também textos de mulheres, porque se não acaba sendo uma história muitas vezes falocêntrica. O candombe, por exemplo, é um ritual matriarcal, a Mama Vieja é a figura central, como na nossa congada é a Rainha Ginga. Mas quase que exclusivamente são homens que se debruçam sobre isso.
A questão da negritude anda melhor atualmente ou ainda está muito lenta?
Nos últimos anos, a gente conseguiu um avanço grande com as políticas de ação afirmativa, sobretudo na dimensão educacional, com as cotas, que são de extrema relevância. No Rio Grande do Sul a discussão toda ganha um relevo especial ao longo da segunda metade do século 20, sobretudo a partir das décadas de 1970-80 com o Movimento Negro Unificado, tendo como figura central o próprio Oliveira Silveira. Porém o racismo estrutural está aí vivo e presente no cotidiano, exigindo vigilância constante e ações enérgicas em busca de sua erradicação.
O racismo estrutural está aí vivo e presente no cotidiano, exigindo vigilância constante e ações enérgicas em busca de sua erradicação.
Por que, entre tantos gêneros afro-americanos, como jazz, blues, o reggae, ritmos caribenhos, o samba, te interessaste mais pelo rap?
Acho todos os gêneros de raiz negra fantásticos, mas o rap é um elemento de expressão eminentemente oral, penso que tem uma ponte mais direta com a figura do Griô, o contador de histórias, que não necessita da escrita. O jazz vai para a gravação, o blues vai para a gravação, para o suporte físico. E o rap, pelo menos o das batalhas – não estou falando do rap fonográfico –, assim como o slam, que é a poesia de rua, acontece naquele lugar e naquele momento. É um improviso, como se fosse a nossa trova, nossa embolada. Alguns artífices dessas expressões acabam até fazendo trânsito para o mercado de cultura de massa, da expressão musical fonográfica, como queiram. O rap é uma pessoa, que com a voz e o corpo prende a atenção de uma audiência contando uma história – às vezes poética, às vezes laudatória, satírica, com crítica social. Tem elementos aí que me interessam muito: a voz falada, a intervocalidade, a gente pensar que o rapper é um prosseguidor do Griô, poesia no gogó...
O rap tem uma característica de urgência, quase sempre é um protesto, um livrar-se de algo que está trancado na garganta...
Ele tem uma urgência. A expressão do rap contemporâneo surge naquela efervescência dos bairros negros de Nova York na década de 1970, e se dissemina pelo mundo. Mas a prática da poesia falada e ritmada, de improviso, é ancestral dos povos originários africanos. Não desconheço, obviamente, a importância da música caribenha, do jazz, do blues, mas acho que aí já tem um elemento europeu muito maior e também não tem problema quanto a isso. O rap prescinde desse elemento harmônico, basta uma batida vocal, o beat box, para o rapper fazer poesia. Isso me encanta e, ao mesmo tempo, faz com que também possa pensar na dimensão da palavra falada, da palavra oral. Nas Antilhas surge o termo "oralitura", na Costa do Marfim falam de "griotismo literário". Eu tenho pensado um pouco sobre isso trazendo a ideia da "tamboralitura", em que o sopapo é um Griô – um contador de histórias. Um instrumento musical, mas também um artefato político, pois na medida em que falo do sopapo falo da presença negra no Rio Grande do Sul, na construção do Estado com a mão de obra escravizada negra. E lembro dos artistas negros que se expressaram com esse tambor.
Quem está junto contigo nessa?
Muita gente. Temos um ponto de cultura chamado Quilombo do Sopapo, na zona sul de Porto Alegre. O Afro Sul Odomodê está muito junto nisso. A mestre griô Sirley Amaro, de Pelotas, assim como Zé Batista, filho do Mestre Baptista. O Pingo Borel, filho do Mestre Borel. Temos também o Sopapo Poético, um grupo fundamental na valorização do tambor sopapo e da presença negra no Rio Grande do Sul através da palavra. O pessoal do teatro está fazendo coisas fundamentais: Grupo Pretagô, Thiago Pirajira, Celina Alcântara, Jessé Oliveira (atual diretor da Casa de Cultura Mario Quintana) e o Grupo Caixa Preta, Viviane Juguero, o poeta Ronald Augusto, Bruno Negrão no slam, Mimmo Ferreira e Lucas Kinoshita na percussão. A capoeira com o pessoal do Africanamente. Edu Nascimento com sopapos na bateria do Areal do Futuro. Academicamente Mário Maia e Zé Éverton na Universidade Federal de Pelotas (UFPel), Matheus Carvalho na Unipampa em Bagé, Liliam Ramos na Letras da UFRGS, Luciana Prass e Reginaldo Gil Braga na Música Popular da UFRGS. O Baba Diba no âmbito ritualístico.
No Rio Grande do Sul, se mostrarmos para as pessoas o sopapo e perguntarmos 'de onde vem esse tambor?', muitas vão associar a um tambor baiano ou carioca. Associar tal elemento negro com a gauchidade é uma construção, um processo. O sopapo é um tambor político. É considerado assim, porque ele traz também uma narrativa da presença negra. Tenho pensando muito nele como um guardião da memória do povo negro de África que veio habitar o Rio Grande do Sul.
Quem é Baba Diba?
É um babalorixá que possui um terreiro no Morro da Cruz, e que tem um trabalho bem significativo no âmbito ritualístico, mas também de reflexão sobre a questão da negritude, do Batuque e da permanência da cultura negra e de resistência através desses rituais. Tem também o NEAB (Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros, Indígenas e Africanos), da UFRGS, com um trabalho bem significativo. Temos diversos grupos de estudantes negros, sobretudo na UFRGS, em função de que é a universidade pública que começa a receber um fluxo grande estudantes negros a partir da política de cotas. Há sim uma série de pessoas que vem trabalhando nesse sentindo. O Observatório da Discriminação Racial no Futebol é outro dado importante nesse atual contexto. Eu acho que isso tudo diz respeito ao racismo estrutural, que ainda é muito forte no Brasil e que muitas vezes não nos damos conta nas nossas práticas cotidianas. Bem o caso do folclore "oficialesco" do Rio Grande do Sul. Faço questão de usar esse termo entre aspas, em função de que se pretende como um folclore oficial, mas que, deliberadamente, exclui as presenças indígena e negra na conformação étnica e cultural do Estado. O negro ou o indígena que aparecem ali é de uma forma romântica, como apareciam na literatura do século 19 de forte influência europeia em sua miscigenação conciliante.
Como o Negrinho do Pastoreio...
Sim, o negrinho do pastoreio está lá na condição de escravizado mas, ao mesmo tempo, a devoção dele é para um santa católica. Ok! Isso também faz parte do processo de sincretismo da cultura brasileira, mas acho que existem muito mais elementos e questões de expressão negra para pensarmos e construirmos a ideia de um país que reconheça a presença negra como fundamental para sua história em todos os sentidos. No Rio Grande do Sul, se mostrarmos para as pessoas o sopapo e perguntarmos "de onde vem esse tambor?", muitas vão associar a um tambor baiano ou carioca. Associar tal elemento negro com a gauchidade é uma construção, um processo. Cada vez mais estamos tentando "escurecer" esse assunto, para não dizer "clarear", trazendo toda a "pretividência" de um instrumento que fala da condição negra na construção histórica, econômica e, portanto, cultural do Estado. Não por acaso, o sopapo é um tambor político. É considerado assim, porque ele traz também uma narrativa da presença negra. Tenho pensando muito nele como um guardião da memória do povo negro de África que veio habitar o Rio Grande do Sul.