Richard Serraria raramente é citado quando se fala na nova música gaúcha. Mas há um bom tempo vem mostrando um trabalho múltiplo, de grande significação e qualidade. Neste momento, estimulado pelo terceiro álbum da Bataclã FC, arrisco dizer que ele é das poucas novidades reais surgidas por estas plagas nos anos 2000. Doutorando em Literatura pela UFRGS, Serraria testa seus princípios e seus limites poético-musicais desde 2002, quando saiu o primeiro disco da Bataclã FC - criada, como diz, nos corredores da universidade, sob inspiração do rap (ritmo e poesia) internacional e da brasilidade de Chico Science. De lá para cá, produziu outro CD da banda (2006), dois CDs individuais (Vila Brasil, em 2009, e o histórico, mesmo que poucos conheçam, Pampa Esquema Novo, em 2011), mais o DVD do radical grupo afro Alabê Ôni (2015), que circulou com shows pelo país.
Vejamos como ele se divide (ou soma) nas três frentes de criação:
- Na Bataclã FC, experimento bastante a dicção do rap, e a mescla musical tem a guitarra do rock como elemento básico, junto com o DJ, personagem do hip hop. Uma canção dionisíaca, poderia dizer, com uma poesia porto-alegrense e a crítica social que é marca da banda. No trabalho solo, busco uma ampliação dos arranjos-base, priorizando as melodias em todo o tecido da canção. De certo modo, uma canção apolínea, alinhada à tradição da MPB, onde a poesia ganha contornos subjetivos. Em ambas as situações, assim como no Alabê Ôni, as percussões afro-gaúchas têm papel de destaque, uma posição política, afirmando que o Rio Grande do Sul também é afrodescendente.
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O novo álbum, Bataclã FC & Mastigadores de Poesia, de certa forma reúne as ideologias da banda e do trabalho solo - se bem que nunca é solo, pois sempre aglutina muitos convidados de personalidade. No sentido do ritmo e da poesia, também arrisco dizer que é uma música à frente do que vem sendo produzido atualmente no Brasil, pelo menos do que tenho ouvido. Um trabalho maduro, consistente, com letras bem construídas e de conteúdo marcante, sonoridade áspera nas guitarras distorcidas, intenso poder dos tambores e um baixo à toda brida, um groove perfeito com preenchimento de teclados e pinceladas de cuíca e cavaquinho. As 14 faixas trazem surpresas em sequência, músicas porrada em funk, rap, samba e rock, intercaladas por poemas declamados com trilha instrumental. Do batuque com heavy metal Crenças a Céu Aberto aos sambas Malandrotário e Samba da Aranha, ao jogral no poema Nós, é um disco fantástico.
OS POETAS, OS MÚSICOS E OS NUTRIENTES LÍRICOS
Os mastigadores de poesia são Mário Pirata, Nanda Barreto, Ronald Augusto, Flávio Alves, Demétrio Xavier e Diego Dourado. Recitando versos próprios cada um a seu jeito, estão perfeitamente integrados ao espírito avançado do álbum. Signos poético-literários espalham-se pelo disco, como citações de Shakespeare e José Hernandez (Martín Fierro), ou a capa de um livro de Leminski ao lado do tambor sopapo numa foto do encarte.
"Mastigar devagar para que os nutrientes líricos sejam plenamente absorvidos", ensina Serraria no poema que abre o CD. Ao lado dele (sopapo, percussões, vozes), estão Guilherme do Espírito Santo (guitarras, voz), Duke Jay (toca-discos, voz), Lucas Kinoshita (bateria, percussão), Felipe Narcizo (baixo, voz), Bódi do Belomé (teclados), Alessandro Brinco (percussão) e Marcelo da Redenção (cavaquinho, voz). Mais os convidados Chico Ferretti, Thieza Oliveira e Rodrigo Trujillo. Todos estão de parabéns. Em março e abril, o disco terá shows de lançamento em Porto Alegre.
BATACLÃ FC & MASTIGADORES DE POESIA
De Bataclã FC Sete Sóis/Tratore, R$ 30 e R$ 20 (nos shows).
TRATAK
De Tratak
Quatro dos mais preparados e experientes músicos portoalegrenses formam o Tratak, que estreou em dezembro com o show de lançamento deste disco: o mestre Fábio Mentz (piano, fagote, harmônio), Guenther Andreas (cravina), Jorge Matte (bateria), todos integrantes da Ospa, e Vasco Piva (sax alto). São parceiros de muito tempo, Mentz já com dois álbuns individuais e Andreas com um. A sofisticada música do grupo tem como eixo os princípios do free jazz, investindo em polirritmias e improvisos, com válvulas que aqui e ali identificam um samba (Ainda Não Sei), um ritmo latino (Habana), uma vertente oriental (Tem Banchá no Meu Falafel). Na verdade é música de altas esferas e espírito global; não tenho nenhuma dúvida de que o Tratak faria sucesso nos melhores festivais de jazz ao redor do mundo. Acho que deveria investir nisso. Independente, R$ 20, à venda na Bamboletras e na página do Facebook
CONCLUSÕES ABSURDAS
De Sulimar Rass
"O tempo só fez amadurecer o que já estava pronto", anota Kleiton Ramil no texto de apresentação do primeiro álbum do compositor, cantor e violonista reconhecido na zona sul do Estado. Nascido em Dom Pedrito e radicado desde 1993 em Pelotas, onde tem uma escola de música e uma produtora musical, Sulimar Rass é um cancionista formado na MPB clássica, mas com sotaque gaúcho. São canções feitas ao longo do tempo - uma das mais fortes, O Fio da Rosa, ele compôs aos 18 anos (hoje tem 40). Já era um melodista inspirado. Tem samba, milonga e até rock, com letras de temas ao mesmo tempo particulares e universais (no encarte, ele comenta cada uma), expressivas, valorizadas por sua interpretação precisa e arranjos bem desenvolvidos, destacando músicos como Gilberto Oliveira, Thiago Colombo e o uruguaio Jorge Schellemberg. Independente, R$ 25, à venda na página da NotaAzul Produções no Facebook.
ALLEY CAT
De Ale Ravanello Blus Combo
Porto Alegre é a capital brasileira do blues, e cada vez mais comprova isso. Depois do ótimo disco de estreia de Luciano Leães, chegou quase junto este terceiro do gaitista e cantor Ale Ravanello, na estrada desde 1998 e liderando a Blues Combo a partir de 2008. A harmônica de boca marca grande parte da história do blues e por isso é de difícil personalização. Pois Ravanello consegue distinguir-se com um toque único, elogiado por blueseiros de todos os calibres e latitudes. Em Alley Cat, inova ao fazer a captação da harmônica de maneira natural, sem a característica amplificação vintage. Todas as músicas, com letras em inglês, foram construídas pelo combo, onde brilham a guitarra de Nicola Spolidoro (ele é mesmo sensacional), o baixo de Clark Carballo e a bateria de Sérgio Selbach, todos nomes de ponta do blues-jazz-rock produzido no Rio Grande do Sul. Mississippi Delta Blues Records, R$ 20, na Palavraria, Toca do Disco e site aleravanello.com.
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