Projetos, eventos e lugares que querem promover a inclusão e debater assuntos ainda pouco discutidos em grandes grupos estão espalhados por Porto Alegre. Confira quatro iniciativas que contribuem para uma cidade mais plural.
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Música e dança para se aproximar da cultura afro
A distância entre Brasil e África se encerra ao cruzar o portão grafitado à altura do número 3.850 da Avenida Ipiranga. Desde a década de 1980, o local é sede do Instituto Cultural Afro-Sul Odomodê (nome adotado em 1998). Lá, a música e a dança são mais do que entretenimento: representam uma forma de conectar as pessoas com as culturas africana e afrobrasileira.
– Trabalhamos pela valorização e pela divulgação da cultura afro. Sempre foi essa a nossa ideia. A gente precisa que as pessoas conheçam e entendam que é uma cultura rica. Que existe e, como tal, deve ser respeitada – conta a coordenadora Iara Deodoro.
Surgido como Garotos da Orgia no começo da década de 1980, o Odomodê nasceu com o intuito de desfilar a cultura afro na avenida. Mas os altos custos e o baixo retorno para a comunidade fizeram o grupo repensar o projeto.
Financiado por verbas de leis de incentivo, o instituto seguiu por anos com oficinas de música e dança abertas. Os recursos mais esporádicos, porém, o transformaram. Hoje, o local trabalha no projeto piloto de uma escola, com cursos pagos e bolsas de estudos para alunos carentes.
As atividades passam por cursos de dança, percussão, folclore e maracatu. O contato com africanos que vivem em Porto Alegre permite ensinamentos ainda mais específicos, como arte tradicional da Costa do Marfim. Há aulas de musicalização para crianças a partir de um ano e meio.
Com pouco mais de cem alunos, o Odomodê faz a manutenção de suas atividades com eventos realizados no local. O primeiro domingo do mês é embalado pelo maracatu e por samba de raiz. No terceiro, convidados sobem ao palco.
Todos são bem-vindos, independentemente de etnia. A política de receptividade irrestrita dá resultado: segundo a direção, boa parte dos frequentadores não têm relação direta com a cultura afro.
– Hoje, a maioria é de alunos brancos. Existe uma coisa que não podemos negar: somos brasileiros e, dentro dessa brasilidade, existe a miscigenação da cultura. Como negros, brasileiros e afrodescendentes, entendemos que não há necessidade de nos fecharmos entre nós. Pelo contrário: pelo nosso bem-viver, temos de abrir as portas – explica a coordenadora.
Economia criativa e arte acessível na rua
Moda alternativa, artistas locais, gastronomia da boa e cervejas especiais são a receita de um dos eventos de rua mais bem-sucedidos de Porto Alegre. Criada em 2014, a Feira Me Gusta, que percorre praças da região central da cidade, promove um dos cenários mais diversificados da Capital, fazendo a ponte entre um público de diferentes faixas etárias e a economia criativa. Mas vai além disso: atrações musicais e debates sobre diversos temas integram a programação do evento, com acesso gratuito.
– Não queria fazer uma feira que as pessoas fossem para comprar. Queria que as pessoas pudessem passar o dia lá. No início, o público majoritário eram jovens mais alternativos. Mas hoje vemos gente mais velha, idosos, gente com criança, cachorros. Ficou um evento plural: todo mundo se sente à vontade compartilhando o mesmo espaço – reflete a criadora da Me Gusta, Pamela Morrison.
Inspirada em feiras e eventos que conheceu fora do Brasil, a publicitária tinha uma ideia bem menos abrangente quando o concebeu o evento. Pensava em combinar a proposta de ocupação dos espaços públicos, mais vinculada a eventos noturnos, com as feiras de moda alternativa, arte e cultura, até então pouco vistas na rua.
Com a aceitação do público (há edições que reúnem milhares), no entanto, o leque se abriu. Os expositores começaram a se multiplicar – em geral passam dos 100, mas já chegaram a 160 –, e os próprios frequentadores passaram a dar ideias e alternativas para tornar a experiência ainda mais diversificada.
A sustentabilidade também começou a dar as caras: hoje há uma parceria com uma empresa que produz copos reutilizáveis, e a próxima edição, na semana que vem, contará com uma feira de produtos orgânicos. Embora qualquer um possa se inscrever para vender seu trabalho na Me Gusta, a maior parte dos expositores é de Porto Alegre, o que ajuda a fomentar a economia local.
– Deixamos livre: as pessoas vão com vinis, objetos de decoração, brechó, sex shop. Nunca sabemos ao certo quem vai estar na feira. Mas tem essa questão da economia criativa, de surgir gente que faz trabalhos autorais. Quero que a Me Gusta seja um espaço de oportunidade para quem precisa – conta.
Empoderamento feminino sobre duas rodas
Desde janeiro do ano passado, a Rótula das Cuias é ponto de encontro delas. O destino é decidido na hora, mas a orientação não muda: o Pedal das Gurias é um evento feminino, destinado a mulheres que compartilham da vontade de pedalar à noite sem se sentirem intimidadas, seja pelo trânsito inseguro ou por abordagens abusivas.
– Nós também somos trânsito, também temos o direito de pedalar. Queremos discutir sobre bicicleta. É o que nos une – conta Tássia Furtado, que participa da pedalada.
Semanais, os encontros que começaram com um evento criado no Facebook reúnem, em média, de 20 a 30 mulheres. A concentração ocorre às 20h, quando, durante cerca de meia hora, as participantes decidem o itinerário, tiram dúvidas e trocam ideias sobre a manutenção das bicicletas. O pedal termina sempre com uma confraternização, em algum bar da cidade.
Mais do que reunir mulheres em um passeio, a confraria tem como objetivo ajudar mulheres a se sentirem mais confiantes para usar a bicicleta como meio de transporte. Além de discutir questões relacionadas ao dia a dia das mulheres que andam de bike, algumas delas promovem, de tempos em tempos, oficinas para ensinar as outras a fazerem a manutenção das magrelas.
– O pedal só com mulheres é importante para que aconteça o empoderamento. Já pedalei em muitos grupos mistos. Às vezes, o pneu fura e um menino diz logo "deixa que eu troco" como se a menina não soubesse fazer isso. Quando uma menina vê a outra fazendo, é diferente: ela percebe que também pode – diz Tássia.
A pedalada semanal é também uma rede de contatos entre mulheres que usam a bicicleta como meio de transporte. Em grupos de Whatsapp e Telegram, elas combinam outras saídas, tiram dúvidas e "pedem socorro" quando se veem em uma situação complicada com a bike.
Os eventos são abertos a quem quiser chegar – durante as pedaladas, é comum as participantes convidarem meninas a se juntarem ao grupo. Para preservar o espírito da iniciativa, meninos que querem participar são orientados a buscarem grupos mistos.
– Queremos nos sentir confortáveis e seguras para trocar ideias sobre temas femininos, sobre como é pedalar quando se está com cólica, ou por que atravessar a Redenção sozinha ao meio-dia é perigoso. São detalhes que podemos discutir melhor entre nós. Se não fosse necessário um pedal só de meninas, ele não existiria.
Coletivo aproxima empresas de comunidade LGBT
Quem circula pela região central de Porto Alegre já pode ter deparado com o recado: este lugar respeita a diversidade sexual e de gênero. Mais do que a manifestação espontânea da postura de alguns estabelecimentos em relação à população LGBT, o recado é a certificação de uma movimentação concreta desses locais para proporcionar um atendimento adequado a todos os públicos.
A ideia por trás do selo tem nome: o coletivo Freeda é o responsável por preparar e, posteriormente, identificar os lugares que estão prontos para lidar com as diferentes orientações sexuais sem nenhum tipo de preconceito.
– O selo é um posicionamento político: a gente acha que publicizar o bom atendimento à diversidade é político. Mostra que isso é uma prioridade do local, que ele se importa em atender bem, que está disposto a aprender e se qualificar. Não é nenhum tipo de garantia, porque nenhum lugar está livre de violência ou discriminação. Mas esses vão estar mais bem preparados para lidar com essas questões – explica Barbara Arena, 30 anos, uma das idealizadoras do projeto.
A Freeda nasceu em 2014, em Brasília, durante um encontro para pensar aplicativos que utilizassem bases de dados públicas para tratar questões de gênero e combater a violência contra a mulher. O projeto do grupo formado por Barbara, Gabriel Galli, Guilherme Ferreira e Patrícia Becker previa a criação de um app que mapeasse locais seguros para a população LGBT frequentar.
Não demorou para que a iniciativa se transformasse em algo maior. Diante da dificuldade de estabelecer critério para realizar o mapeamento, a ideia foi adaptada: em vez de simplesmente apontar estabelecimentos, a Freeda colocou-se à disposição de empresas e profissionais liberais que querem se qualificar para atender a todos os tipos de público, mas não sabem como proceder. Os integrantes passaram a prestar consultorias e ministrar cursos sobre o tema. Durante as aulas, são abordados pontos que vão desde como se reportar a pessoas trans até questões jurídicas envolvendo casos de violência. Ao final do processo, aí sim, vem o selo.
Cerca de 30 estabelecimentos de Porto Alegre, entre bares, restaurantes, escolas e a Cinemateca Capitólio já foram "certificados" pelo coletivo. Dono de um bar que recebeu o selo na Cidade Baixa, César Marroni acredita que a certificação foi importante para firmar a posição de democratização de seu estabelecimento.
– A gente sempre atendeu a pessoas de todas as orientações, mas queríamos buscar melhores condições e mostrar um posição. Para os funcionários, o treinamento foi superimportante – avalia.