Nascido na zona sul de São Paulo, Eduardo Kobra é um dos artistas urbanos mais famosos do mundo. Por duas vezes entrou para o Guinness, o livro dos recordes, com o maior mural do planeta: em 2016, com Etnias, no centro do Rio de Janeiro (3 mil metros quadrados), e em 2017, com um mural de 5,728 metros quadrados feito sob encomenda para a Cacau Show em Itapevi (SP).
Hoje já são mais de 500 trabalhos espalhados por mais de 30 países. Em 2018, foi eleito pela revista Time Out uma das personalidades do ano em Nova York, onde tem 20 trabalhos.
Conhecido por retratar personalidades como David Bowie, Nelson Mandela e Anne Frank, também tem séries de pinturas engajadas com a preservação do patrimônio histórico e do meio ambiente. Frequentemente imensos, os murais viram pontos turísticos.
No Rio Grande do Sul, já são três: um panorama de Santa Maria, na própria cidade, um retrato de Mario Quintana, na Capital, e, em janeiro, o artista finalizou Olhares da Educação, um mural com 14 metros de altura por 26 de comprimento, na fachada do prédio 1 da Universidade do Vale do Taquari (Univates), em Lajeado.
Você levou duas semanas para pintar o mural em lajeado, com a ajuda de dois auxiliares. Como foi todo esse processo?
Primeiro, a parede estava branca. Preparamos um fundo nela. Depois, aplicamos uma textura quadriculada, fazendo linhas guias que são numeradas para saber exatamente onde pega o olho, a boca, o nariz, mantendo as proporções e deixando as imagens mais realistas. Só então é feito o rascunho em preto e branco na parede – mas, obviamente, eu já tinha um desenho prévio no papel. Pintamos com luz e sombra e em seguida aplicamos as cores.
E os preparativos levam ainda mais tempo?
Pintar leva em torno de 10 a 15 dias, mas é a parte rápida do trabalho. Tem a criação e tem muita coisa burocrática envolvida, como aluguel de máquinas, pedidos de permissão para usar as imagens. A coisa toda pode levar seis meses. Para realizar este, especificamente, não fiz um desenho só, mas uns 10, todos diferentes. Eu tinha a medida da parede e uma foto do local. Repito esse processo porque trabalho no mundo todo e nem sempre dá para visitar o lugar antes de pintar. A ideia era que fosse um tema voltado à educação. Para cada retratado, fiz um mergulho no que existia de imagem dessas pessoas. Queria que fossem imagens frontais para criar essa estética com a Clarice Lispector no meio. Como não havia uma imagem assim dela, fui fazendo ajustes para chegar a esse resultado.
O mural tem 400 metros quadrados. Quanta tinta foi usada?
Acredito que umas 150 latas de spray, mais ou menos, e uns 20 ou 30 galões de esmalte sintético colorido.
Obviamente acaba sendo simbólico. É a mensagem de quem lutou pela educação no Brasil e influenciou muitas gerações. Todos os murais que realizo não são apenas pinturas, são portais para que as novas gerações busquem conhecer mais da história do que está em cada painel.
Considerando que muitos murais são feitos em locais públicos, há muita negociação envolvida?
No Japão, só podia trabalhar da meia-noite às 6h da manhã. Eles tinham uma preocupação extrema com a segurança. Achavam que o cheiro da tinta podia causar algum problema nas pessoas que estavam andando na rua. Nos Emirados Árabes, houve toda uma negociação com o governo, aí tem as regras do Islã, não é toda a imagem que pode ser usada. Sempre há negociação. Mesmo com isso tudo, procuro manter a coerência, a minha identidade. Quando sai fora disso, prefiro não fazer. No ano passado, tive convites em mais de 40 países, sendo uns 10 bons e o restante meio aleatórios. Fui para os 10. Trabalho muito, e é assim desde os 12, 13 anos, mas nunca imaginei que pudesse alcançar esse aspecto global. Imaginava que poderia pintar nos Estados Unidos, porque lá é o berço da arte de rua, mas não no Japão, nos Emirados Árabes. Pintei em Viena (Áustria), onde é tudo clássico, o que proporcionou uma quebra de muita coisa. Cada local tem a sua particularidade, o patrimônio histórico controlando, por exemplo. Em São Paulo, tem a lei chamada Cidade Limpa.
O que o levou a juntar as imagens de Paulo Freire, Clarice Lispector e Darcy Ribeiro?
Obviamente que o mural acaba sendo simbólico. Outras pessoas poderiam ser retratadas. De alguma forma, é a mensagem de quem lutou pela educação no Brasil e influenciou muitas gerações. Todos os murais que realizo não são apenas pinturas, são portais para que as novas gerações busquem conhecer mais da história do que está em cada painel. Tenho outra série, chamada Recortes da História, na qual faço releituras de momentos históricos importantes em grandes murais. Tem um em que usei uma imagem do Martin Luther King no dia do discurso “I have a dream”. Há muitos jovens que se interessam por arte de rua, mas não sabem o que foi, não têm acesso. Gosto de que os murais tenham essa questão não só estética, mas passem uma mensagem. Isso, hoje, para mim, é o maior desafio. Está à frente da pintura em si. Há lugares do mundo sobre os quais não sei nada. Então vou a bibliotecas, museus, faço pesquisas para criar um painel que seja representativo do lugar.
Você pinta figuras locais.
Sim, mas meu trabalho não é só focado em personalidades. Tenho também, por exemplo, o projeto Green Pincel, em que falo da proteção ao meio ambiente. É um projeto com imagens que nem cor têm. E há o projeto Muro das Memórias, que apliquei em Santa Maria, mostrando a cidade nas décadas de 1920 e 30. Crio esses portais também mostrando a importância da preservação do patrimônio histórico das cidades.
Paulo Freire, que está no mural de Lajeado, foi chamado de “energúmeno” pelo presidente Jair Bolsonaro. Seu mural ganhou um significado a mais em função disso e da dimensão que Paulo Freire adquiriu?
Paulo Freire teve um trabalho importantíssimo para a educação brasileira, com métodos para combater o anafalbetismo, para ajudar as pessoas carentes que não têm acesso à educação. Esse trabalho fez com que milhões de pessoas humildes deixassem o analfabetismo. Isso é um fato e nada pode apagá-lo. Por isso o escolhi.
Você tem alguma posição com relação à maneira como o governo tem lidado com os artistas?
Posso dizer que mudou pouca coisa desde quando comecei, há 30 anos, até hoje. A história se repete desde então: os artistas passam por todo tipo de dificuldades, com pouco apoio e muitas críticas. Na minha área, que é a arte de rua, muitos artistas só querem continuar com o sonho de seguir fazendo o seu trabalho. E a gente vê que isso a cada dia se torna mais difícil. Venho da periferia, e a arte me salvou, me tirou do crime, ou da droga, ou de muita coisa com o que eu poderia estar envolvido. A arte poderia ajudar muitas outras pessoas. Por isso, o posicionamento com relação às artes teria de ser de apoio, de incentivo. O crescimento do país tem a ver com as artes, a arte muda a vida das cidades, faz as pessoas conhecerem um universo muito maior de informações.
Um usuário do Instagram comentou no seu perfil que acordava todos os dias e via seu mural do David Bowie em Nova York. você entrou na vida dessa pessoa, na rotina dela. Como é isso para você?
É incrível. Esse mural do Bowie fica na entrada de um túnel, de Jersey City para Nova York, então, sim, ele muda o cenário urbano. Tem de haver um diálogo, funcionar com a arquitetura. Tenho uma preocupação com isso. Claro que não dá para agradar a todo mundo, mas o que faço é uma intervenção na rua. Vejo que as ruas hoje estão cada vez mais ocupadas pela arte, com instalações, esculturas, arte pública.
Quantos murais você já pintou?
Não tenho o número exato porque a arte de rua é efêmera. Sem dúvida muito mais de 500. No Brasil, a maior quantidade está em São Paulo, são cerca de 30 painéis só nessa cidade. Tem painel meu em mais de 30 países. Nos Estados Unidos são mais de 40, 20 deles em Nova York.
Em geral, os artistas de rua começam como pichadores, depois fazem grafite. Pode contar como foi essa trajetória? você Chegou a ser detido pela polícia, certo?
Sim, mas vale comentar que não é uma questão de evolução. O universo da arte de rua é muito amplo, há várias formas de fazer intervenções nas ruas. Comecei de forma ilegal, mas, aos oito ou nove anos, eu já desenhava em cadernos. Aos 13, em 1987, tive contato com os grafites de Nova York por meio de uma fotógrafa chamada Martha Cooper. Os livros dela eram as minhas bíblias. Não tive referências no Brasil, apesar de que faço parte da segunda geração de artistas de rua de São Paulo. Minhas referências eram de fora, da cultura hip hop, do underground, do break – eu até fazia parte de um grupo de break chamado Jabaquara Breakers. Então, justamente por transitar nesse universo, acabei começando a desenhar nos muros. Fui detido três vezes, grafitando e também pichando. Obviamente fazia as duas coisas de forma ilegal. Esse início foi bastante difícil, porque as pessoas me chamavam de vagabundo, falavam para eu ir trabalhar. Não tinha apoio. Ninguém via possibilidade de o meu trabalho evoluir. Havia um total desprezo por tudo o que eu fazia. Morando na periferia, sem dinheiro para comprar sequer uma lata de tinta, isso dificultava ainda mais. Tinha poucas esperanças de continuar pintando nas ruas, quanto mais da possibilidade de viver disso. Pintava simplesmente pelo prazer.
Hoje você faz muitos trabalhos sob encomenda, mas Como bancava as obras antes?
Tive de criar um método, por isso não tenho preconceito com nenhum tipo de artista que está nas ruas. Cada um tem a sua trajetória. Aprendi trabalhando como office boy e em uma agência da Caixa Econômica Federal. Foi quando comecei a pintar trabalhos encomendados. Oferecia meu trabalho, batia nas portas. Pintava oficina mecânica, escolinha, residência, capô de carro, capacete, reproduzia obras de artistas famosos. As pessoas que me contratavam exigiam muito de mim, então, como autodidata, tive de aprender com essa exigência. Acabei aprendendo a trabalhar nos mais variados suportes. Eu pegava ônibus circular, entrava com caixa de tinta e até com escada no ônibus, era bem difícil. Na primeira vez em que ganhei um valor bom em dinheiro, fiquei num dilema: compraria roupa ou carro, como todo o menino da periferia quer? Investi tudo em um gerador de energia, porque aí eu podia sair pela cidade, escolher um muro qualquer num terreno abandonado e trabalhar com tempo e condições, fazendo muros para divulgação.
Como foi comemorar 30 anos de carreira em 2019?
Comemorei com uma exposição itinerante dentro de um ônibus chamada Galeria Circular. Consegui expor mais de 20 trabalhos, passando por 15 lugares diferentes de São Paulo, em comunidades bem carentes, para levar o meu trabalho até pessoas que não entram em galerias. Foi bem legal.
Você usa bastante as redes sociais para divulgar seu trabalho. Essa disseminação da arte urbana nas redes é sempre positiva ou também traz problemas?
Utilizo muito o Instagram. Ao mesmo tempo em que eu estava pintando em Lajeado, outros milhares estavam pintando em várias partes do mundo. Consigo acompanhar tudo isso online. Quando comecei, não existia essa possibilidade de aprendizado. Nas redes, adquire-se conhecimento de técnicas, possibilidades de aplicação da arte, os artistas em evidência. Obviamente isso tornou a arte mais globalizada. Só em 2019 recebi convites para pintar da China à casa do Bob Marley, na Jamaica. As redes sociais abrem diálogos inusitados com as pessoas que admiram a arte urbana, meninos que me pedem dicas de como pintar um prédio, que tipo de material pode ser usado... Hoje não mais é necessário sair do Brasil para ter seu trabalho reconhecido mundialmente. O artista pode pintar a rua da casa dele. Se tiver um trabalho bom e divulgar nas redes, tem chance de uma pessoa ver, marcar outra, isso virar uma bola de neve e ele receber convites dos mais variados lugares.
A arte me salvou. A arte poderia ajudar muitas outras pessoas. Por isso, a posição com relação às artes teria de ser de incentivo. O crescimento do país tem a ver com as artes.
Alguns dos seus retratos são de pessoas que já morreram. Como é pintar quem está vivo, como Malala e Bob Dylan? Recebeu algum retorno interessante deles?
Não especificamente. Tenho trabalhos dentro de temas, como por exemplo as bailarinas do Balé Paraisópolis, um projeto social de São Paulo. Fiz umas quatro ou cinco delas, além de outra bailarina de São Paulo que teve uma perna amputada. Fiz outro com o Condicionado (obra Raimundo, o Condicionado, dentro do projeto São Paulo: uma Realidade Aumentada), um morador de rua que ficou 20 anos morando em uma praça e depois acabou sendo localizado (pela família). Fiz outro painel com uma família de moradores de rua em uma cama em 3D chamando a atenção para essa situação. Todos os painéis precisam da autorização dos retratados ou de suas famílias. O mural do Bob Dylan foi apresentado para ele, e depois a família dele visitou a pintura.
Qual o trabalho mais difícil que você já fez?
Nunca busquei muros gigantes, mas também faço pouquíssimos desenhos pequenos. O muro de Itapevi (SP), que entrou para o Guinness, com quase 6 mil metros quadrados, eu não busquei, aconteceu naturalmente. Sou movido não pelo tamanho, mas pelo desafio, que não é necessariamente a dificuldade. Se me especializei em murais grandes, foi espontaneamente.
Em 2018, um mural de Rafael Augustaitiz e Amaro Abreu, na fachada do Instituto Goethe, em Porto Alegre, foi coberto com tinta preta durante a madrugada. Ele trazia imagem de uma figura religiosa. Você já teve uma obra apagada por causa da mensagem que trazia? já foi censurado?
Há alguns anos, fui convidado a pintar em Atenas (Grécia), o berço da democracia. Eu estava engajado na proteção do meio ambiente. Criei um painel que era uma sátira e coloquei o nome de Evolução Desumana. Era o homem partindo do macaco, baseado em uma imagem clássica que mostra a evolução da espécie, até ele destruir o planeta, pegar em armas, jogar bomba atômica. Porém, o desenho foi confundido com um painel religioso. A região era cercada por templos ortodoxos. Fomos ameaçados por vários dias, e destruíram o painel inteiro. Sendo que não tinha nada a ver com o que as pessoas que o destruíram imaginavam que ele mostrava.
Por trabalhar na rua, você está acostumado a ouvir as opiniões das pessoas enquanto pinta ou depois. Como são essas experiências?
Pintar na rua te deixa sujeito a isso, sim. Além de ser influenciado por condições climáticas, calor, frio, chuva. Você está sujeito a todo tipo de interação com as pessoas. Na série que fiz criticando as touradas (dentro do projeto Green Pincel), muitas pessoas me atacaram dizendo que é uma coisa cultural. Não concordo. Acho que colocar os animais sob tortura para entretenimento é algo que tem de ser abolido. Dependendo do tema do mural, gera bastante controvérsia. Acontece também de eu pedir autorização para o proprietário do local e não dizer o que vou pintar. Já teve caso de a pessoa ver que era um tema desses e querer que fosse removido. Gosto sempre de usar os muros não só pela estética, mas para passar uma mensagem. O princípio é respeitar o lugar onde estou e, a partir disso, tento achar uma coerência entre o que quero dizer e o lugar onde estou aplicando essa obra.
Qual o seu próximo passo?
Sigo entusiasmado e aberto a possibilidades e lugares. Nessas minhas andanças pelo mundo, descobri muita coisa – por exemplo, que voltar para casa é sempre um prazer. Não sei exatamente qual caminho meu trabalho vai tomar. Já fui convidado a morar em outros países, mas voltar ao meu país é sempre recompensador. Dou preferência para estar em lugares onde nunca estive antes. Em 2020, farei um mural enorme em frente ao World Trade Center, em Nova York. Além de outras coisas que ainda estão sendo definidas...