Criticar Paulo Freire tornou-se esporte favorito de muitos nas redes sociais. Chamado de doutrinador por alguns, até o título de Patrono da Educação Brasileira tem sido questionado, após uma petição no site do Senado receber mais de 20 mil assinaturas favoráveis à revogação da lei de 2012. Para preservar a trajetória do pensador, Ana Maria Araújo Freire, a Nita, relançou em agosto a biografia Paulo Freire: Uma História de Vida.
Aos 83 anos, a pedagoga segue divulgando a obra do marido, que conheceu aos quatro anos quando o jovem de família humilde recebeu uma bolsa para estudar na escola do seu pai, no Recife. Foi aluna dele no antigo Ginásio e, mais de 50 anos depois, casou-se com o professor. Viveram 10 anos juntos, até a morte do pensador em 1997. Nesta entrevista, Nita fala sobre a situação atual da educação, critica o projeto Escola Sem Partido e responde aos detratores de Paulo Freire.
– Quanto mais se bate em Paulo, mais ele cresce, mais livros dele são lidos – afirma.
Confira a entrevista:
A educação no Brasil evoluiu de fato desde a época em que a senhora conheceu Paulo Freire?
Acho que evoluiu muito em termos de inclusão. Hoje, todas as crianças estão na escola, há empenho da política pública em garantir isso. Na parte qualitativa é que a gente vê o problema. Embora antes fosse, como o Paulo denunciava, uma aula bancária, na qual o professor falava e o aluno pouca chance tinha de perguntar, a autoridade do professor era tão grande que o aluno geralmente estudava. No princípio do século passado, a escola era melhor em termos qualitativos. O problema é que poucos conseguiam ter acesso a ela. O próprio Paulo não conseguiu. A escola pública não o recebeu porque só servia a militares e a pessoas influentes da sociedade do Recife. Ele só estudou com ajuda do meu pai, que recebia alunos de forma gratuita na escola dele.
O problema hoje é a indisciplina? O professor perdeu a autoridade?
Com o golpe de 1964, a educação foi ficando mais rápida. Língua Portuguesa, por exemplo, tinha aula todo dia, com redação, ditado e leitura em voz alta. Tudo isso foi retirado. As classes foram aumentando, e a qualidade do ensino foi baixando. Mais de 50 anos depois, não se consegue mais ter uma escola de qualidade.
A educação vive um processo de desmonte?
Sim. Muita coisa que poderia ser feita não o é porque contraria interesses ideológicos do grupo que está no poder.
O que precisa ser feito?
Muita coisa. Precisa que se mude a mentalidade das pessoas, que se mude o sistema político brasileiro, o sistema econômico. Uma revolução para chegar a uma escola que seja sadia, que ensine realmente o saber.
Paulo Freire falava da necessidade de uma revolução...
Sim, ele dizia que precisávamos de uma educação menos bancária, uma educação dialética, na qual professor e alunos sejam polos de uma relação de aprendizado, na qual o professor, ao ensinar, aprenda com o aluno. E o aluno, ao aprender, ensine o professor.
A senhora acaba de relançar a biografia de Paulo Freire. Qual a importância de resgatar a trajetória dele neste momento?
Em uma homenagem a Paulo na USP, um professor me disse: "Dos educadores que foram importantes nas décadas de 1970, 80 e 90, o único que perdura com grande número de leitores é o Paulo Freire". É isso. Paulo tinha uma intuição incrível de, estando no presente, prever o futuro. Se você ler um livro como Ação Cultural para a Liberdade, que ele escreveu em 1967, vai perceber que continua atual. As obras dele são até hoje muito lidas. A Pedagogia do Oprimido, que foi publicada pela primeira vez nos EUA em 1968, porque no governo Médici não foi possível, até hoje está entre os livros mais indicados em todas as universidades de língua inglesa.
Esse embate (entre direita e esquerda) sempre se reverteu a favor dele. Quanto mais se bate em Paulo Freire, mais ele cresce, mais livros dele são lidos
Nita Freire
Doutora em Educação
O trabalho de Paulo Freire é mais reconhecido no exterior do que no Brasil?
Sim, porque na Europa, nos EUA, no México e na Argentina Paulo é tido como grande filósofo da educação. Aqui, acho que há uma guerra da ciumeira: raramente um professor o reconhece como um pensador extraordinário.
A rejeição de algumas pessoas a Paulo Freire no Brasil tem relação com o embate entre direita e esquerda?
Esse embate, no qual Paulo nunca entrou e, se vivo estivesse, não entraria, sempre se reverteu a favor dele. Quanto mais se bate em Paulo, mais ele cresce, mais livros dele são lidos. Cada dia mais a literatura de Paulo é procurada. Esses dias, assinei contrato para a publicação da obra em sérvio. Já são mais de 27 idiomas em que os livros dele foram traduzidos. E aqui, no Brasil, os livros dele têm número maior de exemplares publicados por ano do que na data em que ele morreu. Hoje se lê mais Paulo do que em 1997, então ele só cresce.
No ano passado, uma mensagem incluída no perfil de Paulo Freire na Wikipedia responsabilizou-o pelo ensino "atrasado, doutrinário e fraco no Brasil. A que fatores a senhora atribui essas críticas?
Essa alteração se deve a um clima que foi gerado no Brasil quando Aécio Neves perdeu as eleições para Dilma Rousseff. Esse clima não existia anteriormente. Começou com Aécio esperneando como um menino que tinha sido roubado. Ele criou uma onda perversa, jogando a classe média e a elite contra as classes populares e intelectuais que haviam votado na Dilma. Isso criou uma atmosfera nefasta, ruim para a democracia, e que no fundo permitiu a destituição de Dilma. As coisas foram se ampliando para a hostilidade. E chegamos a um ponto de barbárie entre os que são de direita e de esquerda. E o grupo da direita começou a insultar, não só Dilma, Lula e outros políticos, mas também alguns intelectuais, com Paulo Freire sendo o mais atingido. Aí, um dia, abro meu computador, vejo um retratinho de Paulo e uma mensagem dizendo que o Serpro (Serviço Federal de Processamento de Dados, órgão do governo federal) alterou a biografia dele na Wikipédia.
Nessa ocasião, a senhora chegou a encaminhar uma carta ao presidente Temer pedindo providências. Ela respondeu?
Ele não. Só a Casa Civil, que respondeu por carta.
Como a senhora avalia a petição apresentada no Senado para revogar a lei de 2012 que declarou Paulo Freire Patrono da Educação Brasileira?
Com muita tristeza. Primeiro porque Paulo merece esse título. Foi o maior educador do Brasil e um dos maiores, senão o maior, dos séculos 20 e 21 no mundo inteiro. Pesquisas mostram Paulo como um dos homens mais estudados no mundo (levantamento feito pela London School of Economics em 2016 apontou o brasileiro como um dos três pensadores mais citados em pesquisas acadêmicas). Segundo: isso empobrece o Brasil. É uma tentativa a mais de esvaziamento do Estado brasileiro. A direita que está no poder está minando todas as experiências positivas, todos os feitos importantes para o nosso país.
Paulo Freire dizia que não existe educação neutra. Como a senhora acha que ele reagiria ao projeto Escola sem Partido?
Paulo reagiria como sempre, sem fúria e ira, porque esse pessoal do Escola Sem Partido é que age com fúria. Mas responderia com indignação, sim. Refutaria esse projeto, demonstrando que, como nenhum comportamento humano é neutro, a educação também não pode ser. Que nós, como adultos, nos definimos como isto ou aquilo. Você, como jornalista, não é neutra, mas trata com respeito pessoas de esquerda e de direita. Com o professor é assim também. Só que ele precisa ter a liberdade de escolher o que vai ensinar em sala de aula. E isso é um ato político.
Há vários projetos ligados ao Escola sem Partido tramitando no Parlamento...
Há um movimento ideológico das pessoas que são incapazes de mudanças, de aceitação de um mundo novo, e que são presas a passados já desfeitos, que não têm mais por que serem conservados. Se caminhamos já numa interpretação do que é a educação, de que ela não é neutra, não precisamos ficar agarrados a essas concepções que são nocivas.
Recentemente, houve polêmica em função da retirada de termos como identidade de gênero e sexualidade da Base Comum Curricular. A senhora acha que caminhamos para o retorno da Moral e Cívica?
Temer está fazendo mudanças sem critério de justiça na política e na economia, atingindo quem precisa dos bens públicos e do trabalho para sobreviver. Coerentemente, não poderia fazer uma reforma progressista na educação.
Qual a sua opinião sobre a reforma do Ensino Médio?
Não é uma boa reforma. Como se o aluno pudesse escolher o que quer fazer e a escola tivesse condições de oferecer isso. A escola pública vai contratar novos professores para esse currículo flexível? Não vai. É estapafúrdio pensar que arte é uma coisa desprezível (a proposta original do governo excluiu a disciplina de Artes), sendo que arte é o que nos dá identidade, é o que marca as nossas diferenças na unidade.
Mas não é preciso mudar o Ensino Médio? Os dados apontam para alta evasão nessa etapa.
Não pode ser um remendo, como está sendo feito, e sim uma nova concepção de educação, que venha desde a Educação Infantil e que vá se adequando às necessidades do país e de cada um de nós. Não podemos estudar a vida inteira o que interessa ao governo, mas que não nos interessa em nada. Precisa ser algo que dê prazer.
Paulo Freire falava que o professor precisa unir o amor pela educação com a formação rigorosa. O que falta aos educadores?
Paulo dizia: educar é um ato de amor. Ele compreendia que amar é realmente gostar, mas também respeitar os limites de cada um, perceber as dificuldades de quem vem com uma educação deficitária. O professor tem que perceber de onde veio o aluno e não o castigá-lo com frases como: "você fez pergunta boba". Isso é a primeira coisa que um professor deve ter. Segundo: ele precisa ter amor pela disciplina que está ensinando. Só é um bom professor quem sabe o conteúdo profundamente. Por último, é preciso saber ensinar. Às vezes o professor tem boa vontade, mas não tem uma metodologia adequada para uma classe noturna ou de adolescentes.
Não receber salário, ou receber de pouquinho em pouquinho, e atrasado, repercute diretamente no ensino.
Nita Freire
Doutora em Educação
No Rio Grade do Sul, os professores estão em greve em função do parcelamento dos salários. Há críticas de que não estão pensando nos alunos. A senhora acredita que os professores têm uma missão com os estudantes?
Paulo sempre dizia que ensinar não é missão. Quem tem missão é padre e freira. Nós somos profissionais como quaisquer outros. Temos a necessidade de receber o salário em dia para nos mantermos. Não receber salário, ou receber de pouquinho em pouquinho, e atrasado, repercute diretamente no ensino. Por mais que a professora diga que os alunos não são culpados, esse fato mobiliza uma pessoa e tem, sim, consequências na educação. Aliás, o professor já ganha muito mal no Brasil. O professor primário deveria ter o mesmo salário do professor da universidade, todos estão ensinando e deveriam ter tratamento igual.
O Plano de Educação fala em uma remuneração mais adequada, mas a lei não é cumprida. O piso do magistério também não...
É uma ficção. Mas acho que é melhor que exista essa ficção, porque há margem para cobrar. Os professores podem dizer: "Queremos receber o que está na lei". Agora, o professor receber tão pouco é uma injustiça. A gente vê tantos desvios cometidos por autoridades, e aí falta dinheiro para o básico. É uma lástima, mas há cientistas saindo do Brasil porque não há nem sabão para lavar as mãos no laboratório. O país desenvolveu a cultura da pesquisa em um bom nível, e de repente a gente vê tudo estourando pelo ar. A educação como um todo está passando por isso. A educação que se faz hoje é aquela que se sabe que não vai dar certo.
A senhora organizou um livro intitulado Pedagogia da Tolerância. Precisamos ser mais tolerantes?
Sim, precisamos ser mais tolerantes com o vizinho, com o irmão, com o colega de aula, com o professor. Tolerância é respeitar quem pensa diferente, é amar com mais facilidade.
Que mensagem a senhora deixa aos educadores brasileiros que no último domingo comemoraram o Dia do Professor?
O professor precisa ter coragem. Não é uma profissão que você vai apenas com a alegria de praticar o ato. Na educação, além da alegria, é preciso ter coragem de entrar num lugar tão deficiente, tão adverso. O professor quer fazer, mas existe uma avalanche contra ele. O professor também precisa estudar mais. Alguns dizem que ganham pouco, então não precisam se aperfeiçoar. Mas o educador deve saber sempre mais e mais. Somos uma profissão belíssima.
Como era a sua relação com Paulo Freire? Vocês se conheceram ainda criança, mas ficaram juntos só depois.
Quando Paulo entrou para estudar, tinha 17 anos, e eu, quatro. Lembro bem dele naquela época. Foi um dos alunos para os quais meu pai deu bolsa. Depois foi meu professor no ginásio, de Língua Portuguesa.
Foi seu orientador no mestrado também.
Após a anistia (Paulo Freire foi exilado durante a ditadura), ele veio para São Paulo, porque não tinha como voltar ao Recife, havia muita perseguição política. Nessa época, meu marido faleceu, eu trabalhava como professora na PUCSP e fui fazer mestrado. Paulo acabou sendo meu orientador. Foi no tempo em que Elza (a primeira esposa de Paulo Freire) também faleceu. No meio dessa orientação, ele se declarou a mim. Eu pensei: "Puxa vida, conheço Paulo desde criança. Tenho uma admiração absurda, é um ser especial que veio à Terra, mas vou querer ou não?". Na terceira vez que ele perguntou, eu respondi que sim. Começamos essa história de amor e, infelizmente, vivemos somente 10 anos juntos. É difícil imaginar ele morto, embora já faça 20 anos que ele morreu.
Qual foi o maior legado de Paulo Freire?
Para mim, é o amor. Um amor cheio de encantamento, de cumplicidade, de amizade. Esse foi o patrimônio que ele deixou e que me guia. A integridade, a coerência, a delicadeza com que ele tratava as pessoas, sempre ouvindo a todos... É um exemplo.
A senhora teria algo a dizer àqueles que chamam Paulo Freire de doutrinador?
Acho que eu teria terminado bem a entrevista na pergunta anterior. Esses aí só precisam ler Paulo Freire para ver que estão enganados.