Em um país com resultados precários nas avaliações internacionais de desempenho escolar, uma das principais discussões sobre educação no momento tem, no centro do debate, a posição ideológica dos professores. De um lado, estão os que querem controle sobre o que docentes apresentam em sala de aula, do outro, os que defendem a não interferência nas manifestações dos educadores.
O primeiro grupo se une em torno do movimento chamado Escola sem Partido, criado em 2004 pelo advogado Miguel Nagib para combater o que chama de "contaminação político-ideológica das escolas brasileiras".
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– O que o movimento defende é o respeito aos limites jurídicos da atividade docente, e esses limites não são definidos pelos teóricos da educação, mas, sim, pelas leis do país, a começar pela Constituição Federal – afirmou Nagib, ao ser questionado se as ideias do grupo estavam apoiadas em produção teórica de especialistas da área.
A discussão motivou a apresentação de projetos de lei que estão no Congresso, em assembleias legislativas e câmaras municipais. No Rio Grande do Sul, a ideia baseou o PL 190/2015, protocolado no ano passado pelo deputado Marcel van Hattem (PP). A proposta foi contestada durante as ocupações das escolas estaduais e a greve do magistério, ambas iniciadas em maio, tanto por alunos quanto por professores.
O primeiro dos 10 artigos do projeto traz como princípios a neutralidade política, ideológica e religiosa do Estado, o pluralismo de ideias e a liberdade de consciência e crença. Mas também determina como direito dos pais "que seus filhos menores recebam a educação moral que esteja de acordo com suas próprias convicções". No artigo seguinte, acrescenta que são vedadas quaisquer "condutas por parte do corpo docente ou da administração escolar que visem impor aos alunos opiniões político-partidárias".
A diretora da Federação Nacional das Escolas Particulares (Fenep), entidade que representa 75% das instituições particulares de ensino do país, Amábile Pacios, afirma que a organização não tem posição oficial sobre os projetos de lei, mas considera o debate colocado pelo Escola sem Partido benéfico para a educação.
– Ninguém pode retirar do professor a autonomia que ele tem em sala de aula, mas também ninguém pode tirar o direito do pai de que a linha ideológica seja dada por ele – relata.
Bruno Eizerik, presidente do Sindicato do Ensino Privado (Sinepe-RS), defende que a educação não pode ser utilizada como um "instrumento de dominação".
– A gente prega que os alunos possam receber dos seus professores, principalmente quando se fala em história, todas as versões de um fato e uma posição isenta para que ele possa formar a sua própria verdade. Acho que é essa questão que nós temos de trabalhar – diz Eizerik. – Todo projeto tem que ser discutido, mas acho que ele (PL 190/2015) aproxima-se muito daquilo que nós pensamos – acrescenta.
Para confederação, lei trará insegurança à categoria
Caso os professores descumpram o Programa Escola sem Partido, o PL 190/2015 prevê a criação de um canal de denúncias e, em relação aos servidores públicos, há a possibilidade de punições que vão da repreensão à demissão. Secretário-geral da Confederação Nacional dos Trabalhadores em
Estabelecimento de Ensino (Contee), Cássio Bessa diz que os professores estão apreensivos quanto à possibilidade de a lei ser aprovada, pois traria insegurança à categoria.
– Eles (apoiadores do Escola sem Partido) têm uma presunção de que todos os professores são agentes de esquerda que estão querendo fazer a cabeça dos alunos. A proposta deles é substituir essa pretensa posição pela sua posição conservadora. É uma grande bobagem conservadora e antidemocrática – critica Bessa, que também atua como diretor do Sindicato dos Professores do Ensino Privado do RS (Sinpro).
Presidente do Cpers/Sindicato, Helenir Aguiar Schürer concorda que não deve existir espaço para partidos dentro da escola, mas questiona a noção de neutralidade política do projeto:
– O deputado vai ter de entender o que é política. Tudo que a gente faz na vida é política. Não há neutralidade, sempre vai ter uma opinião.
No movimento estudantil, os projetos causaram indignação. Diretora de comunicação da União Brasileira dos Estudantes Secundaristas (Ubes), Fabíola Loguercio define as propostas como "um jeito de reprimir as diversas opiniões" dentro das instituições de ensino:
– A escola é para ser o espaço mais democrático da sociedade. Hoje, ela já não serve nesse sentido, e uma prova são as ocupações. O projeto tenta fazer com que ela seja ainda mais ultrapassada, reprimindo a organização estudantil e as opiniões. Será que, de fato, existe neutralidade na sociedade?
Será que a escola não é para formar seres críticos que possam questionar?
Professor da Faculdade de Educação da UFRGS e doutor em Psicologia Escolar e do Desenvolvimento Humano, Fernando Becker analisa que o projeto, assim como o movimento Escola sem Partido, é uma reação a alguns casos de abusos de professores em sala de aula, mas não pode ser admitido porque fere a liberdade de ensino e de pensamento. O pesquisador chama atenção para o trecho do texto que abre brechas para que os pais determinem o que pode e o que não pode ser dito pelos docentes, possibilitando uma "caça às bruxas".
– Alguém de fora da escola vai dizer o que o professor pode ou não debater? Isso é típico de ditadura. Quem tem idade para isso lembra o que foi ser professor no tempo da ditadura militar. Era uma desgraça, porque a gente não podia dizer certas coisas, citar certos autores. Imagina isso ter poder de lei? Seria um caos, inviabiliza a escola – afirma Becker, ressaltando que a instituição de ensino não pode fazer proselitismo político ou religioso.
Contraponto para ampliar o debate
Para contrapor a proposta de Van Hattem, o também deputado estadual Juliano Roso (PC do B) protocolou um projeto de lei chamado Escola sem Mordaça. Conforme o parlamentar, a ideia é ampliar o debate sobre o assunto.
Com estrutura semelhante ao PL 190/2015, o Escola sem Mordaça elenca como princípios a livre manifestação do pensamento, o pluralismo de ideias e de concepções pedagógicas, respeito à liberdade e apreço à tolerância, entre outros. O artigo 2º diz que são vedadas em sala de aula "a prática de qualquer tipo de censura de natureza política, ideológica, artística, religiosa e/ou cultural ao professor".
A iniciativa gerou reação do deputado do PP, que elabora emendas para modificar o texto do Escola sem Mordaça. Roso, por sua vez, pretende apensar a proposta à de Van Hattem – ou seja, fazer com que os PLs tramitem juntos.
Projetos no Congresso geram questionamentos jurídicos e mobilização
As ideias do movimento Escola sem Partido levaram à apresentação de projetos de lei nos âmbitos municipal, estadual e nacional. No Congresso, há propostas na Câmara dos Deputados e no Senado, que motivam questionamentos jurídicos e mobilização popular.
O PL 867/2015, do deputado federal Izalci Lucas Ferreira (PSDB-DF), foi rebatido por uma nota técnica da Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão (PFDC), do Ministério Público Federal (MPF). Nela, a procuradora federal Deborah Duprat afirma que a proposta "nasce eivada de inconstitucionalidade" por quatro motivos: confunde a educação escolar com a fornecida pelos pais; impede o pluralismo de ideias e de concepções pedagógicas; nega a liberdade de cátedra e a possibilidade ampla de aprendizagem; e contraria o princípio da laicidade do Estado.
Fundador do Escola sem Partido, Miguel Nagib salienta que o movimento está embasado justamente na Constituição:
– Especialmente nos princípios do pluralismo de ideias e da neutralidade política, ideológica e religiosa do Estado; na liberdade de consciência e de crença; e na liberdade de ensinar, que não se confunde com liberdade de expressão, e de aprender.
Em Alagoas, a Assembleia Legislativa promulgou o Programa Escola Livre, de autoria do deputado Ricardo Nezinho (PMDB). O governador Renan Filho (PMDB) havia vetado a lei, mas teve seu veto derrubado pelos parlamentares.
A Confederação Nacional dos Trabalhadores em Estabelecimentos de Ensino (Contee) ajuizou uma ação, e, em seu parecer, a Advocacia-Geral da União (AGU) defendeu a inconstitucionalidade da lei, afirmando que ela afronta o pacto federativo, pois a Constituição Federal diz, no artigo 22, que "compete privativamente à União legislar sobre", entre outros assuntos, "diretrizes e bases da educação nacional".
O relator da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) é o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Luís Roberto Barroso, e ainda não há uma decisão final.
O projeto que tramita no Senado é de autoria do senador Magno Malta (PR-ES). A mobilização faz da proposta a campeã de participações na consulta popular da Casa – aberta para todas as propostas.
O resultado parcial apertado reflete a polarização de opiniões diante do tema: o projeto recebeu 180 mil votos a favor e 191 mil contra.