Pintava quadros e escrevia catálogos de artes visuais. Era uma figura agregadora e promovia o diálogo entre escritores latino-americanos. Considerava-se tímida, mas participava de diferentes grupos literários e trocava cartas com João Cabral de Melo Neto e Rubem Braga. Essas são facetas pouco conhecidas de Clarice Lispector (1920-1977) – e que, no próximo ano, devem se revelar ao público a partir de uma onda de reedições da escritora.
Em 9 de dezembro de 2020, serão completados cem anos de nascimento da autora de A Hora da Estrela. Para comemorar, a editora Rocco, que detém os direitos de publicação de seus livros, já começou a colocar no mercado a obra completa da escritora em 18 edições. Há outras novidades. O Instituto Moreira Salles de São Paulo prepara uma exposição sobre Clarice, com curadoria de Eucanaã Ferraz e Veronica Stigger, prevista para o segundo semestre. Além disso, duas adaptações cinematográficas de seus livros estão a caminho: A Paixão Segundo G.H., por Luiz Fernando Carvalho, com estreia confirmada para 2020, e Uma Aprendizagem ou Livro dos Prazeres, de Marcela Lordy, sem previsão de lançamento.
O trabalho da Rocco já começou a chegar às livrarias. As primeiras três reedições circulam desde o início de dezembro, com os romances Perto do Coração Selvagem (1943), O Lustre (1946) e A Cidade Sitiada (1949). As capas são inéditas e expõem um aspecto pouco conhecido da vida da autora: sua dedicação às artes visuais. Todas as imagens foram pintadas por ela, que produziu 22 telas em meados dos anos 1970.
– Além de se relacionar com diferentes grupos literários, Clarice também dialogou com artistas de outros setores. Escreveu para catálogos de pintores, como Darel (Valença Lins) e esteve em contato com Solange Magalhães. Teve um diálogo intenso com a Maria Bonomi. E ela não ficou restrita ao campo literário. Não é que quisesse se tornar uma pintora, mas ela lia, acompanhava, conversava e se relacionava com esse meio. E esse diálogo também emergia na literatura – analisa a biógrafa Teresa Montero.
Além das novas capas, as reedições contam com textos complementares. Cada livro terá um posfácio de um pesquisador da obra de Clarice. Teresa Montero deve tratar de Água Viva, abordando como a amizade entre a escritora e a artista Maria Bonomi foi importante para que a protagonista do romance fosse definida como pintora.
Perto do Coração Selvagem, O Lustre e A Cidade Sitiada, reedições já publicadas pela Rocco, são os três primeiros romances escritos pela autora. O editor Pedro Vasquez, no entanto, esclarece que os relançamentos não devem seguir uma ordem cronológica:
– Dependemos dos posfácios de cada um dos convidados. Conforme recebemos os textos, estamos preparando e organizando as novas edições.
Apesar da ordem de lançamento ainda não estar definida, a coleção será encerrada com A Hora da Estrela, último romance publicado em vida pela autora, que chegará às livrarias com posfácio de Paulo Gurgel Valente, filho de Clarice.
– É a primeira vez que Paulo escreve sobre a mãe. Vai encerrar nossa coleção com chave de ouro – afirma Pedro Vasquez.
Uma geração de pioneiras
A Rocco também planeja relançar Eu Sou uma Pergunta, biografia escrita por Teresa Montero lançada originalmente em 1999. Apesar de ter sido publicado há mais de duas décadas, está cotado para ser o livro que trará mais novidades relacionadas a Clarice em 2020. Isso porque voltará ao mercado editorial em uma versão revista e ampliada – aliás, bastante ampliada. O volume deve ganhar pelo menos um terço a mais de conteúdo inédito em relação à edição original, que continha aproximadamente 300 páginas.
– Na época do em que escrevi Eu Sou uma Pergunta, recolhi 88 depoimentos de pessoas ligadas à Clarice. É claro que não foi possível usar tudo no livro. O trabalho do biógrafo é realizar uma seleção desse material. Vou trazer para a nova edição vários trechos que ficaram de fora. Tenho uma grande entrevista com o Otto Lara Resende, por exemplo, que foi muito pouco usada. E há depoimentos que recolhi depois, como o do professor Eduardo Cortella – explica Teresa.
Hoje se fala muito sobre a mulher empoderada, mas o que está acontecendo atualmente é resultado do trabalho das mulheres no passado. Clarice e outras mulheres de sua geração foram pioneiras, abriram caminhos.
TERESA MONTERO
Parte dos novos trechos da biografia, que será relançada em outubro, refletem a respeito de qual era o contexto que possibilitou que Clarice se formasse e se afirmasse como escritora.
– Meu olhar está voltado para o questionamento do que significa comemorar o centenário de uma mulher escritora no Brasil. É uma questão que tem a ver com o nosso tempo. Hoje se fala muito sobre a mulher empoderada, mas o que está acontecendo atualmente é resultado do trabalho das mulheres no passado. Clarice e outras mulheres de sua geração foram pioneiras, abriram caminhos – avalia Teresa.
Para a Pedro Vasquez, os debates atuais envolvendo o feminismo encontram eco não apenas na biografia da autora, mas também nos romances, contos e crônicas que publicou:
– Clarice está mais atual do que nunca. Sempre esteve à frente de seu tempo. Era muito arrojada, por isso muitas vezes não era compreendida.
Retratada frequentemente com ar misterioso, Clarice Lispector parecia pouco à vontade – ou até mesmo arredia – ao falar de si própria em entrevistas. Mas Teresa Montero aponta que a escritora, ao contrário do que poderia parecer, tinha uma personalidade agregadora e solidária. Para a biógrafa, há muito a avançar a respeito da relação da autora com outros escritores em pesquisas futuras:
– O senso comum encara Clarice como aquela mulher que ficava solitária, escrevendo em seu apartamento. Mas não é bem assim. Ela participou dos movimentos de seu tempo, porém, sempre com seu modo discreto. Ela não fazia nada para aparecer, para virar manchete de jornal, mas os amigos sabiam do apoio dela a diferentes causas. Era uma mulher profundamente solidária.
Entre as ações que Clarice participou em apoio aos colegas do campo literário, esteve uma reunião de escritores, em meados nos anos 1970, em Porto Alegre. O encontro buscava discutir maneiras de qualificar o ofício dos autores brasileiros, contando também com personalidades como Nélida Piñon, João Antônio e Carlos Eduardo Novaes. O episódio, pouco discutido em outras publicações sobre a autora, deve ganhar relevo na nova versão de Eu Sou uma Pergunta, assim como as viagens da biografada para Cali, na Colômbia, em 1975, e para a capital argentina, em 1976, para participar de eventos literários.
– Clarice dialogou com escritores da América Latina, tanto é que foi traduzida ainda em vida na Argentina e na Venezuela. Por que ninguém fala sobre isso? As pessoas tocam nesse assunto de raspão. Esse é um campo que merece mais estudo, até porque havia um contexto muito particular naquela época. O Brasil vivia sob uma ditadura militar, havia uma dificuldade de circulação dos escritores. É preciso entender como ela chega a Buenos Aires, como ela viaja à Colômbia – diz a biógrafa.
Cartas inéditas em breve
A relação de Clarice Lispector com alguns escritores ficou documentada em cartas. Boa parte delas é conhecida do público, por meio dos livros Cartas Perto do Coração (2001), Correspondências (2002) e Minhas Queridas (2007). Todas essas missivas, bem como algumas inéditas, devem compor o novo livro Todas as Cartas, previsto também pela Rocco para 2020.
A busca dela é pelo entendimento das coisas. Ela sempre se definiu como uma escritora amadora, no sentido de não ter a obrigação de escrever, não ser um trabalho.
PEDRO VASQUEZ
– Pelas cartas, é possível perceber como Clarice se insere no meio literário. Ela não tem uma pose de escritora. É aquela mulher que se encontrou nesse ofício que tem o nome de literatura. Mas a busca dela é pelo entendimento das coisas. Ela sempre se definiu como uma escritora amadora, no sentido de não ter a obrigação de escrever, não ser um trabalho – aponta Teresa.
Todas as Cartas terá organização de Vasquez e notas de Teresa Montero. Além da Rocco, nenhuma outra editora divulgou títulos relacionados à escritora. A Companhia das Letras, que detém os direitos de Clarice, biografia escrita pelo americano Benjamin Moser, é vaga a respeito de uma nova edição – segundo assessoria, “há ideias, mas tudo ainda em fase de discussão”. O público, no entanto, parece sempre ávido por novidades da autora, como observa Vasquez:
– Quem lê um livro de Clarice acaba lendo pelo menos mais meia dúzia. É uma experiência de vida transformadora. Além disso, ela se tornou uma figura pop, mais ou menos como Frida Kahlo. Vira e mexe você vê alguém com uma bolsa ou uma camiseta estampada com o rosto de Clarice. São figuras que ganham vida além de suas obras.
Para Teresa, trata-se de uma obra que se renova a cada leitura:
– Quando você lê um texto de Clarice, tem a sensação de que ela está junto de você.
As novidades previstas
- Obra completa – A editora Rocco preparou uma série com 18 reedições da escritora para lançar até dezembro de 2020. Os primeiros três volumes já estão nas livrarias: Perto do Coração Selvagem (1943), O Lustre (1946) e A Cidade Sitiada (1949). As capas usam pela primeira vez pinturas da própria escritora, que se dedicou às artes visuais em meados da década de 1970, mas que jamais teve seu trabalho pictórico exibido para o público. Além de contar com nova identidade visual, cada livro possui um posfácio inédito de especialistas na obra de Clarice.
- “Eu Sou uma Pergunta” – A Rocco também está trabalhando em uma reedição de Eu Sou uma Pergunta, biografia escrita por Teresa Montero e lançada originalmente em 1999. O novo volume contará com farto material inédito, com trechos de depoimentos de escritores e amigos que ficaram de fora da primeira edição. O volume está previsto para chegar às livrarias em outubro.
- Exposição no Instituto Moreira Salles – Está em desenvolvimento uma mostra sobre a vida e a obra de Clarice Lispector, para ser exibida no Instituto Moreira Salles (IMS) de São Paulo. A curadoria será assinada pelos escritores Eucanaã Ferraz e Veronica Stigger. A estreia está prevista para o segundo semestre de 2020.
- “A Paixão Segundo G.H.” no cinema – O diretor Luiz Fernando Carvalho, com mais de 30 anos de experiência na TV e responsável pelo longa-metragem Lavoura Arcaica (2001), está trabalhando em uma adaptação de A Paixão Segundo G.H. (1964) para as telas. Segunda a assessoria de Carvalho, o filme deve estrear em 2020, embora não haja uma data anunciada. A atriz Maria Fernanda Cândido foi a escolhida para protagonizar a trama.
- “Livro dos Prazeres” adaptado – O romance Uma Aprendizagem ou Livro dos Prazeres também está em processo de adaptação. O longa deve se chamar apenas O Livro dos Prazeres e conta com a direção de Marcela Lordy. O roteiro traz para os dias de hoje a narrativa lançada em 1969. Trata-se de uma coprodução entre Brasil e Argentina, com participação do ator Javier Drolas, de Medianeras (2011).