* Colaborou Karine Dalla Valle
Como já fica claro no nome, Malvados, a série de tiras criada há duas décadas pelo cartunista carioca André Dahmer, não é um elogio à bondade humana, mas uma sátira aos aspectos mais cínicos da humanidade. Hoje publicando na Folha de S.Paulo e em O Globo, Dahmer, 45 anos, foi um pioneiro da geração que abriu caminho fazendo tiras e charges para a internet no início deste século, antes de passar para os veículos impressos, uma geração que inclui também nomes como Arnaldo Branco e o gaúcho Alan Sieber.
– A internet, da maneira como a gente desbravou lá pelo ano 2002, não é mais a mesma. Mas continua sendo um espaço que dá voz a pessoas com talento. É realmente muito pulverizado. Tem muita gente fazendo muita coisa: desenhando, compondo música, escrevendo. Mas acho que tem espaço sim pro que bom. – analisa.
Ele agora está lançando pela Companhia das Letras uma coletânea de seu trabalho com 368 tiras de seus personagens mais conhecidos. Dahmer conversou com Zero Hora por telefone sobre sua carreira, sua visão do atual momento político e suas implicações para a prática do humor gráfico e sobre a atual situação do mercado brasileiro de quadrinhos.
Você já publicou uma coletânea dos Malvados pela Editora Gênesis, outra pela Desiderata. No que esta edição se diferencia dessas anteriores? É uma nova seleção ou uma edição ampliada dessas duas?
Meu primeiro livro foi pela Gênesis, uma editora pequena, já havia sido sobre os Malvados, meu primeiro trabalho em quadrinhos, antes de fazer qualquer outra coisa. Mas eu trabalho há oito anos com os Malvados em tiras diárias na Folha de S.Paulo, então eu tinha muito mais material. Se pensar que eu publico seis vezes na semana durante oito anos... A gente conseguiu reduzir o material para 368 tiras, o que ainda assim ficou um livro bem grande, concentrado no material produzido mais recentemente.
Você já publicou coletâneas de outras séries temáticas de seu trabalho, como A Cabeça é a Ilha ou Quadrinhos dos Anos 10, mas os Malvados foram seus primeiros personagens e os mais constantes até aqui. Como essa quantidade de material se refletiu na seleção para este livro?
Eu fiz uma pré-seleção com amigos de confiança, que conhecem meu trabalho há muito tempo. Depois isso passou pela Companhia das Letras. O livro demorou um ano e meio para ficar pronto, por questões de revisão de texto e pela crise do mercado editorial. E, para mim, foi surpreendente, porque eu não imaginava que esse livro fosse vender tanto mais do que os outros. Tivemos uma pré-venda grande, um terço da edição já saiu na pré-venda. Não dá para dizer que ele é um “Todo Malvados”, como se fez um Toda Mafalda, do Quino, porque isso é impossível, é um volume de quadrinhos enorme. Mas acho que esta edição representa muito bem o que é o trabalho. Fiz com cuidado, mas eu mesmo, como estou dentro do negócio, sou suspeito para falar.
Eu sou um otimista. Eu olho no atual momento do conservadorismo a chance do renascimento de uma juventude mais consciente politicamente, o renascimento das artes de uma maneira mais afirmativa, o teatro, o cinema. O setor progressista renasce mais forte em períodos como esse.
ANDRÉ DAHMER
Cartunista
Desde o início, sua abordagem foi ácida, cínica e crítica. Mas um olhar de conjunto do material de quase duas décadas reunido neste livro mostra que o tom tem se tornado mais melancólico. Por quê?
Ao mesmo tempo em que está muito difícil trabalhar com humor político no Brasil, também está muito fácil. A gente vive um momento único. Tenho 45 anos e não me lembro de um momento tão bom para ser cartunista. Há uma descrença muito grande, pelo menos nos setores mais progressistas, uma tristeza com o que está acontecendo. Eu acredito que tudo passa. A Montanha do Corcovado um dia vai passar. E isso que a gente está vivendo agora vai passar também. A gente está vivendo no meio de uma onda conservadora muito forte, mas acho que são oscilações e troca de poder, de maneiras de ver o mundo, que é natural. Eu já escrevi isso numa tira. A humanidade é um cachorro amarrado em um poste andando em círculos. E me parece que assuntos dos anos 30 do século passado voltam à pauta nos nossos anos 10.
Para além do trabalho em Malvados, você criou séries como os Quadrinhos dos Anos 10 ou O Encontro dos Donos do Mundo, satirizando o "lado B" das rápidas transformações que vivemos: a ascensão de uma renovada e ainda mais rígida cultura corporativa, o aumento da desigualdade, o cinismo das elites econômicas. Como vê este momento em que a maré política parece ter tornado real mesmo algumas de suas tiras mais absurdas?
Os temas que a gente cuidava há 10 anos, eu acho que já se sentia um caminhar para um momento político mais fechado. Quadrinhos dos Anos 10 fala muito das surpresas com o avanço da tecnologia e as mudanças provocadas na sociedade. Eu já falei várias vezes que a sociologia não acompanha a velocidade da tecnologia. São tiras que estabelecem um lugar de espanto. Mas a questão da política, eu fazia a série do ditador Rei Emir, ou dos Donos do Mundo, é porque essas coisas são cíclicas. As elites nunca abandonam o poder e a vontade do dinheiro. Então não é de se espantar. Não sou um vidente, não precisa ter bola de cristal.
Os Malvados têm várias tiras satirizando o otimismo. Você se considera otimista?
Eu sou um otimista. Eu olho no atual momento do conservadorismo a chance do renascimento de uma juventude mais consciente politicamente, o renascimento das artes de uma maneira mais afirmativa, o teatro, o cinema. O setor progressista renasce mais forte em períodos como esse. A esquerda passou muitos anos sem formar uma base. E as igrejas neopentecostais tomaram esse lugar. O conservadorismo veio formar essas bases dentro de igrejas. Por que a esquerda não está nas igrejas, ou está de modo precário? Você tem, por exemplo, gente dentro da Igreja Batista com um pensamento progressista, mas são minoria. Então, quando não se faz esse trabalho de base, mesmo com todas as universidades inauguradas, os cursos técnicos, o trabalho de base, crítico, foi muito abandonado. Os sindicatos foram sucateados. E quando isso acontece, alguém toma o lugar, e foi essa teologia da prosperidade, de que se você rezar e pagar o dízimo Deus vai te transformar em uma pessoa rica.
Uma geração de cartunistas como Ziraldo, Jaguar, Fortuna e, mais tarde, Laerte, Angeli e Glauco fizeram de sua arte resistência política na época da ditadura militar. Durante um período esse tipo de discussão sobre o papel político de um artista parecia ter sido deixado de lado, mas voltou a ser falado durante a recente onda de polarização. Qual sua opinião sobre isso?
Acredito que, na verdade, as pessoas que fazem humor político fazem um humor progressista e batem no governo. Eu não deixei de bater nos governos progressistas que se teve antes desde a abertura. Mas acredito que agora é até difícil trabalhar com leveza. Eu vejo meus colegas de profissão perdendo a mão pela tristeza, pela raiva. Acho que o humor precisa preservar essa questão do riso e de fazer pensar através do riso. Eu me perco também. Todo mundo se perde, está muito difícil.
Hoje, não apenas o humor, mas qualquer manifestação pública pode ser alvo de grupos de pressão organizada de modo digital. isso de alguma forma afeta como você faz seu trabalho?
Isso já me aconteceu várias vezes: ataques orquestrados. Alguém chamar uma arroba que tem 45 mil seguidores e vão todos juntos ao ataque. Mas quem tem medo dessas coisas não pode trabalhar com o que eu trabalho. Deveria ser dentista ou jardineiro.
Você, Alan Sieber, Arnaldo Branco, fazem parte da primeira geração a conseguir divulgar seu trabalho em larga escala no início dos anos 2000, à época ainda dentro do formato dos blogs e sites pessoais. De lá para cá, houve uma explosão desse modelo em sites, redes sociais variadas. Aumentaram as possibilidades ou hoje o cenário é mais pulverizado?
Os jornais talvez não vão acabar, mas vão virar outras coisas, não são só mais notícias, tem muita opinião, também. E a internet, da maneira como a gente desbravou lá pelo ano 2002, não é mais a mesma. Mas continua sendo um espaço que dá voz a pessoas com talento. É realmente muito pulverizado. Tem muita gente fazendo muita coisa: desenhando, compondo música, escrevendo. Mas acho que tem espaço sim pro que bom.
A gente não vai ter para sempre um Brasil que odeia a Fernanda Montenegro e o Chico Buarque O Chico e a Fernanda vão ficar na história como entraram: com honradez, como pessoas que contribuíram muito para o Brasil, politica e culturalmente. Eles não vão entrar para a história como comunistas, que nem são.
ANDRÉ DAHMER
Cartunista
Você passou da internet para o jornal impresso. Recentemente, com a queda de receitas e o cancelamento de edições impressas de vários veículos, muito se discute a sobrevivência do modelo. Você disse que o jornal diário não vai morrer, mas vai mudar. Como vê esse futuro?
O que eu vejo agora é os jornais tentando vender notícias pela rede. E há dezenas de ferramentas para você driblar esses paywalls, como eles chamam. Então acho que esse também não é o caminho. Não sou jornalista, exatamente, mas trabalho na imprensa e discuto sempre com amigos esse tema, é algo que me interessa. A imprensa hoje passa por uma crise muito grande de confiabilidade, não só a imprensa, as instituições de modo geral. Quando você vê um bando de fanáticos pedindo para fechar um dos três poderes, seja o Congresso seja o Supremo, e o ódio contra o jornalismo e artes... Veja, qual nosso patrimônio maior fora a natureza? Nós somos produtores de arte, os brasileiros são reconhecidos por isso. E a gente passa por um momento em que a arte e a cultura, nosso maior patrimônio não material, estão sendo destruídas. É estarrecedor chegar nesse ponto em que a imprensa é vista como o inimigo do povo. Como é que as pessoas pedem o fechamento do Supremo, que é a última linha de defesa contra a barbárie? Se tudo der errado, é função do Supremo falar "isso não, tá errado". Há uma crise generalizada de confiança provocada por um ódio contra tudo o que é democrático. Incluído aí a imprensa, a liberdade de expressão, o Congresso, o Supremo. Isso é assustador, porque a gente sabe que não é a maioria da população, mas é uma minoria muito ruidosa, amparada por uma rede muito forte de desinformação.
Com a eleição da classe artística como um inimigo declarado do atual governo, de algum modo a situação do Brasil ressuscitou a ideia do artista como um símbolo de resistência?
Por isso eu disse antes que sou um otimista. Porque acredito que muito do que vai ser produzido de agora em diante em termos de arte, cultura e literatura, será muito rico, muito bonito. A gente não vai ter para sempre um Brasil que odeia a Fernanda Montenegro e o Chico Buarque. O Chico e a Fernanda vão ficar na história como entraram: com honradez, como pessoas que contribuíram muito para o Brasil, política e culturalmente. Eles não vão entrar para a história como comunistas, que nem são. Com máquinas em rede, você pode confundir um pouco as pessoas, mas a história sempre ressurge. Não é possível esconder a verdade por cem anos. Não há na história da civilização moderna uma mentira que dure 50 anos.
. O meu primeiro emprego foi em jornal. Eu tinha 13º, carteira de trabalho, seguro saúde, seguro dentário, férias. Isso acabou. Não quer dizer que não se possa voltar, mas o emprego como a gente conhece acabou. Não há mais emprego, só existe trabalho.
ANDRÉ DAHMER
Cartunista
Sua carreira coincide com a impressão, talvez levada por otimismo excessivo, de que o Brasil estava finalmente formando um mercado sólido de quadrinhos, com novos artistas, selos e editoras voltadas para o gênero sendo criados. Como a recente crise econômica bateu nessas expectativas?
Foi terrível. Você tem agora uma mudança na maneira de fazer comércio que pode destruir tudo. Como é que uma sapataria vai poder sobreviver se você tem lojas online concorrendo e vendendo o mesmo produto por metade do preço, entrega em casa, frete grátis? Como uma adega cai sobreviver com todos os sites de vinho? E isso está acontecendo também com os quadrinhos. Se chegou ao ponto a Saraiva e a Cultura pedirem socorro, imagina o que a Amazon não está fazendo com os grupos menores? Isso é imprevisível, e envolve temas maiores, que é a precarização do trabalho. O meu primeiro emprego foi em jornal. Eu tinha 13º, carteira de trabalho, seguro saúde, seguro dentário, férias. Isso acabou. Não quer dizer que não se possa voltar, mas o emprego como a gente conhece acabou. Não há mais emprego, só existe trabalho. É uma lógica liberal que está entranhada também nos mais pobres e que é muito parecida com a teologia da prosperidade: se você trabalhar duro e se dedica, você consegue. O que é uma mentira. Eu nasci e já fui para as melhores escolas do Rio. Como é que um cara negro numa comunidade vai ter a mesma chance que eu? Eu já saí na frente.
Ao mesmo tempo, são cada vez mais frequentes os discursos que negam essa sua última afirmação, classificando-a de vitimismo ou acusando as cotas de racismo. Como vê a ascensão desse discurso?
Acho que tudo começou quando o primeiro idiota falou: "você está falando isso por causa do politicamente correto". Essa reação também tem a ver com os computadores em rede na internet. As pessoas dentro de suas casas falando as barbaridades que elas só falavam quando estavam presas em engarrafamento. E agora me parece que o monstro saiu do armário. As pessoas mostraram como são racistas, como são classistas, como odeiam os pobres. Me parece que esse comportamento no Brasil sempre existiu. Nada me tira da cabeça que a Dilma começou a cair quando se aprovou o e-social das empregadas domésticas. E as pessoas falaram: porra, não vou mais ter a empregada dormindo a semana inteira na minha casa? A pessoa agora não é mais sua escrava, você não vai pagar a mixaria que quiser para ela dormir num quartinho na sua casa a semana inteira e só ir para casa domingo. E para você fazer a classe média e a elite brasileira entender que não pode ser assim, gera ressentimento e raiva. Todo esse movimento, quando você dá mais espaço para as pessoas prosperarem realmente, não através de igreja, mas de estudo. Por exemplo, quando os negros começam a alcançar cargos na medicina, no judiciário, as pessoas não estão acostumadas a isso. É normal que surja também uma resposta dura.