Aos 83 anos, o escritor e crítico literário Silviano Santiago é um dos mais respeitados intelectuais do Brasil. Mineiro nascido no município de Formiga, Santiago é um comentarista agudo das imbricações entre arte e sociedade e autor de livros de ensaios hoje considerados clássicos nos estudos literários, como Uma Literatura nos Trópicos (1978), que ganhou recente reedição comemorativa, ou Vale Quanto Pesa (1982), em que discutia, entre outros temas, a mercantilização da literatura com a evolução da indústria do livro. Três vezes vencedor do Prêmio Jabuti, é também ficcionista, autor de romances ousados e que rompem com a delimitação estrita entre ensaio, romance e biografia, como Stella Manhattan (1985) e Mil Rosas Roubadas (2014).
Santiago doutorou-se em Paris no início dos anos 1960 e de lá tornou-se professor em universidades dos Estados Unidos e do Canadá. Voltou ao Brasil em 1974, e atuou na PUC-Rio e na Universidade Federal Fluminense, onde hoje é professor emérito. Durante passagem por Porto Alegre, Santiago conversou com GaúchaZH. Ao longo de uma hora de conversa, falou de literatura, de arte, do atual momento político contemporâneo e da antologia 35 Ensaios, uma coletânea de alguns de seus textos não ficcionais organizada pelo também professor Italo Moriconi e recém-lançada pela Companhia das Letras
O senhor teve lançado recentemente um livro compilando 35 ensaios de sua autoria, organizado por Italo Moriconi. A seleção dele de algum modo corresponde ao que seria a sua própria?
Não, tenho de ser sincero. Os ensaios têm a assinatura do Italo Moriconi, e eu fico feliz de ter essa assinatura, porque a escolha dele não foi arbitrária. O Italo tem feito antologias extremamente bem-feitas, as mais conhecidas são as de Melhores Contos e Melhores Poemas do Século 20, mas ele tem outras, sempre com uma escolha muito boa, uma visada muito inteligente e um sentido de momento, que eu acho importante para uma antologia. Se não há um sentido de momento numa antologia, é melhor ler os livros na sua ordem cronológica. Então eu diria que estou muito satisfeito, mas não seria a que eu faria.
O senhor é autor de ensaios considerados clássicos. É também ficcionista e poeta. considera que, como ficcionista, já alcançou um patamar semelhante à sua estatura de ensaísta?
Eu, como bom mineiro, uso pretensão e água-benta para acreditar que sim. Mas tenho que alertar para um fato: a recepção de um ensaio se dá, na maioria das vezes, quando ele é publicado. Ele tem uma recepção forte ou fraca, e, se for fraca, há uma boa chance de o livro estar acabado. Se for forte, bom sinal, o livro pode ter uma boa carreira, mas isso pode não acontecer. Com ficção e poesia é diferente: a recepção imediata não é tão importante, porque entre a ficção e a recepção, há, cada vez mais forte, o mercado, e o mercado, direta ou indiretamente, predetermina a recepção. Então, essa recepção do livro de arte, seja ficção ou poesia, sendo mediatizada, não tem valor tão absoluto quanto tinha nos anos 1930 aos 1940, quando surge o chamado romance do Nordeste. Ali a seleção é quase que natural, é feita pela recepção. Enquanto no Modernismo, por exemplo, Macunaíma, um clássico indiscutível, teve uma primeira edição de apenas 800 exemplares (em 1928), a segunda edição só sairia em 1937. Então, hoje, atravessamos um período semelhante ao que se sucedeu no Modernismo. Há, não diria um antagonismo, mas um deslizamento qualitativo na relação produção-recepção.
O senhor já havia declarado que essa interferência do mercado seria prejudicial em seu livro de ensaios Vale Quanto Pesa e conclamava a uma renúncia radical dela. Ainda pensa o mesmo?
Esse livro foi uma resposta ao Roberto Drummond (escritor, autor de Hilda Furacão). O título era o slogan de uma propaganda de sabonete, e o Drummond na época tinha dito que precisaríamos compreender o livro como um produto, como se fosse um sabonete. Eu diria que aquela minha atitude era por demais radical, extremada e elitista. Hoje eu tentaria ver um equilíbrio dessas forças. Porque, dada a situação do país, inclusive financeira, a situação das editoras e das livrarias, a questão do financiamento da produção literária se tornou extremamente delicada. A minha própria editora editou os 35 Ensaios sob demanda. Já é a nova realidade. E há vários livros agora cuja vendagem não é garantida. Falo da vendagem, não da qualidade, que sairão sob demanda. Há circunstâncias que me obrigam hoje a repensar a minha radicalidade.
Prefiro escrever ensaio do que artigos acadêmicos. Porque, no ensaio, como a expressão diz, você experimenta. Ele não é necessariamente vanguarda, mas ali você experimenta ideias para ver se vai dar certo.
Ao mesmo tempo, a realidade se estruturou de um modo muito semelhante ao previsto por Drummond: o livro tratado como um produto, a hegemonia do entretenimento, a ascensão de youtubers produzindo resenhas pagas.
Sim, daí talvez eu ter feito até sem querer aquela comparação que fiz antes com a época do Modernismo. Estamos em um momento em que certas categorias clássicas e que julgávamos definitivas estão sendo questionadas. Acho que esse questionamento veio um pouco antes, da parte dos escritores, quando se começa a discutir a questão dos gêneros. Os próprios produtores não estão mais satisfeitos com a divisão tradicional em gêneros, que eram a prosa de ficção, a poesia, o teatro e o ensaio. Você repara que a primeira intromissão nessa discussão, para mim muito importante, é a da biografia. Depois, a da autobiografia. E a questão finalmente teórica, que Michel Foucault apresenta de maneira definitiva, é a da subjetividade. A entrada da subjetividade nos anos 1980, 1990, obriga a uma redefinição do que seja "genre" ("gênero" em inglês, usado para categorizar trabalhos artísticos). Ao mesmo tempo em que ocorre uma redefinição de "gender" (“gênero” em inglês, usado para definir papéis de gênero, como masculino e feminino).
Mas a tecnologia contemporânea de algum modo teve a ver com essa explosão da subjetividade, não?
A combinação da subjetividade com a internet, no final do século, vai obrigar a gente a voltar a usar uma expressão que acreditávamos legada ao baú: belles lettres. Hoje você tem "belles lettres", que são os gêneros tradicionais, que continuam muito misturados. E você vai ter esse outro, que são manifestações culturais. Isso está evidente na crítica literária, que se divide, sem menosprezo a nenhuma das duas partes, em crítica estética – não é a melhor palavra, mas é a que me ocorre – e em estudos culturais, que, a meu ver, é onde teoricamente aparece isso que estamos falando. Há um momento que é deflagrador de novas categorias, de nova concepção de literatura, do que seja crítica. É um processo forte também de democratização das artes, cujo futuro está em aberto.
O que existe hoje são formas fortes ou veladas ou até, ainda, enigmáticas de censura. E o nome que temos dado a isso é “cancelamento”. Não é censura aind: é uma forma que ainda não conseguimos apreender. Esse cancelamento deveria ser analisado não sob o ponto de vista ideológico, mas sob o ponto de vista ético.
Ao mesmo tempo, há uma reação muito forte, politicamente, contra a arte contemporânea, vindo inclusive de figuras proeminentes do governo. Muitos também repetem um discurso puramente mercadológico de que não é o Estado que deve financiar arte, e sim apenas o público.
O que existe hoje são formas fortes ou veladas ou até, ainda, enigmáticas de censura. E o nome que temos dado a isso é “cancelamento”. Não é censura ainda. Nós tivemos censura nos anos 1970, eu escrevi sobre ela, e o que temos hoje não é ainda censura com "C" maiúsculo, como naquela época: é uma forma que ainda não conseguimos apreender. A gente apreende a origem, porque alguém tem que falar primeiro. Mas a gente não apreende ainda o que seria essa forma de cancelamento. Existem várias formas de cancelamento, e acho que deveria ser aberto um debate mais amplo sobre cancelamento do que sobre censura, porque esse cancelamento deveria ser analisado não sob o ponto de vista ideológico, mas sob o ponto de vista ético. Essa seria minha primeira sugestão de abordagem: deslocar a discussão do cancelamento das formas ideológicas, que pode ser tanto o excesso de conservadorismo quanto o excesso do radicalismo cultural, para a responsabilidade ética.
Há também, para voltar ao início da conversa, uma questão de mercado envolvida, porque uma das ferramentas do cancelamento é a pressão do poder dos consumidores com ameaças de boicote.
É uma forma também individual de cancelamento. A gente vai ter que pensar nisso e discutir se é censura mesmo ou não. Se for censura, vamos discutir censura. Se é uma nova categoria que merece ser discutida, veremos. Mas essa é uma questão nodal, ainda mais para o tipo de literatura que eu faço. Por exemplo, um romance como Stella Manhattan está traduzido para o inglês, e eu sei que em determinadas universidades norte-americanas o professor indicou e a leitura foi suspensa, porque é um romance que mexe muito com libido, com a sexualidade, com a homossexualidade. Então julgo que essas formas ainda estão dispersas. Seria bom juntarmos tudo e buscarmos uma categoria para isso.
Ao longo de sua carreira, o senhor produziu textos sobre questões que se tornaram mais prementes com o tempo. Em O Cosmopolitismo do Pobre, por exemplo, o senhor já falava do trânsito dos migrantes, uma das discussões centrais do século 21.
Sim, torna-se um dos grandes temas a partir de 2015. E era um texto de 2002. Eu estava mais preocupado, naquela época, em virtude de haver morado no estrangeiro, com questões concretas que eu via, em particular a do "pachuco", a do mexicano na Califórnia, que se tornou um estopim hoje em dia. Toda a política do presidente Donald Trump visa diretamente ao mexicano que foi morar nos Estados Unidos, e que era responsável durante muito tempo pela renda das famílias pobres do México. E, por ter morado na França por longos anos, vi de perto a questão argelina, que era bem complicada e que se complicou mais ainda com o retorno dos franceses argelinos, os pied-noir. Fui vendo essas coisas e percebendo. É um artigo que olha a questão econômica: como, nos centros urbanos, estava havendo a criação de guetos de nacionalidades específicas, de seres humanos que não eram passíveis de reconhecimento pela sociedade em virtude do preconceito racial. A gente vê isso até hoje no futebol, também, e todas essas questões explodiram de repente de maneira bastante escandalosa. Então, de fato, esse é meu texto que se tornou meio clássico por eu haver previsto tanto, ainda que sem querer, pela minha capacidade de, como escritor, ser também um observador da realidade, e não um especulador de ideias. Por isso prefiro o ensaio do que ficar escrevendo artigos acadêmicos. Porque, no ensaio, como a expressão diz, você experimenta. Ele não é necessariamente vanguarda, mas ali você experimenta ideias para ver se vai dar certo.
Como um acadêmico com passagem pelos Estados Unidos e pela França, como o senhor vê o quadro da educação no mundo hoje?
Nos Estados Unidos, está havendo um retrocesso. Vou lançar uma ideia bem audaciosa agora: o grande problema de uma presidência como a do Trump nem são tanto essas bobagens como fake news, essas coisas. O problema mais grave é que a qualidade da pesquisa e da produção americana de alto nível está caindo. Veja o caso da Boeing. Pela primeira vez, a Boeing produziu um avião de ponta com defeito de origem. Isso é gravíssimo, meu Deus do céu! As pessoas não se dão conta de que já é a fábrica que está em decadência. E eles não conseguem pôr esses aviões de volta, estão parados já faz seis meses. Por quê? porque tem um desenvolvimento tecnológico de ponta que não consegue ser domesticado pela produção. E essa produção hoje não consegue chegar às novidades, porque de repente se começa a jogar a culpa para todo lado. A última é culpar os pilotos, o que é fácil, mas aqueles dois aviões caíram por defeito técnico (dois Boeings modelo 737 Max caíram com poucos meses de diferença, um na Indonésia, em outubro de 2018, e um na Etiópia, em março de 2019). E outro caso que agora está explodindo é que a própria pesquisa informática americana está decadente. A China, com o 5G, está ultrapassando os norte-americanos. E aí tem essa coisa que é ridícula que é jogar com impostos e taxas. Em lugar de, como antigamente, trazer o know-how do automóvel para o Brasil, é o contrário: não vamos levar know-how para lá e a China está proibida de entrar. Isso é mais grave do que fake news. É o fato de que o país que ainda tem a melhor pesquisa tecnológica talvez não tenha mais a melhor produção tecnológica.
Em O Cosmopolitismo do Pobre, o senhor falava sobre o que seriam os governantes irascíveis, que tentam impor suas vontades sem passar pelos processos demorados e exasperantes da democracia. como vê a ascensão recente desse tipo de político?
É a democracia da manifestação por tuíte. Uma manifestação de beligerância sem resposta. Porque supostamente você está dialogando com milhões, então a resposta de um não vale. Ao mesmo tempo, ainda é uma questão muito mais nacional, porque se reduz à maneira como Trump conversa com os americanos, à maneira como a Presidência, no Brasil, se comunica com os eleitores. O que está acontecendo é que isso ainda não tem abrangência universal. Não há como discutir isso de um ponto cosmopolita, para retomar a palavra. Eu teria de discutir isso um por um, cada um na sua. O Trump nos EUA, o presidente aqui no Brasil e os demais nos seus respectivos países. É algo que está acontecendo na Espanha, na Alemanha, na França etc. É um retorno aos nacionalismos, e esses retornos aos nacionalismos são um atraso quando pensamos que, nos anos 1990, o ser humano criou a Comunidade Europeia ou, aqui na América Latina, o Mercosul.
Machado de assis é a nossa gramática. Assim como a inglesa é Shakespeare e a de Portugal, Camões. Machado é quem codifica a língua portuguesa no Brasil. Daí essa imensidão de seu papel.
O senhor já escreveu ensaios e um romance sobre Machado de Assis. E já mencionou que uma das coisas que tornam Machado fundamental é como ele conseguiu elaborar soluções e variações sofisticadas em um português com um léxico não muito distante do de seus leitores. Esse seria um caminho para a ficção em um país de não leitores?
Machado é a nossa gramática. Assim como a inglesa é Shakespeare e a de Portugal, Camões. Na época desses dois autores, nem tínhamos uma língua nacional estabelecida. Quando ela surge, o que teria de ser depois do Romantismo, Machado é quem codifica a língua portuguesa no Brasil. Daí essa imensidão de seu papel. O interessante é que essa codificação de Machado é muito menos antropofágica do que a gente acredita. Porque os livros dele... Ele fazia questão de que sua esposa, Carolina, que era de uma família de intelectuais do Porto, os lesse e fizesse correções de estilo. Ele assim esboça uma linguagem muito mais adequada a essa mistura fragmentada que é a nacionalidade brasileira. A atitude de Machado, portanto, é mais moderna do que a de Oswald de Andrade ou de Mario de Andrade. Mário sentiu isso na pele. Ele escreveu a Gramatiquinha da Fala Brasileira porque sentia que tinha de ser esse codificador. Mas, por mais genial que Mario de Andrade fosse, você o lê e dali não sai uma gramatiquinha. Isso porque, no fundo, o estilo em Mario é ainda muito importante. E em Machado, não, tanto que você vai ter dois ou três estilos machadianos. Você não pode ser uma pessoa de estilo único se tem um impulso codificador. Por exemplo, Guimarães Rosa, outro autor genial: você não pode fazer uma gramatiquinha a partir dele, apesar de seu talento extraordinário e de suas obras-primas.
Em uma entrevista em 2002, o senhor dizia que um caminho para a literatura nacional seria o autor fazer valer a diferença de seu estilo dentro de uma moldura mais básica do idioma. Ao mesmo tempo, dizia que não via muito disso na nova geração de autores, a maioria com mais acesso à literatura inglesa do que a autores de gerações anteriores. Ainda pensa assim?
Acho que essa geração padece. Inclusive de uma coisa bastante complicada. Porque o estilo que predominou nas últimas décas é um estilo machista. E é problemático, porque não é só uma questão de comportamento; é uma questão de linguagem. É uma linguagem muito dura, ríspida, agressiva e violenta. E não é com o objeto preciso. É a linguagem que é assim. Eu não seria contra a linguagem violenta se o objeto assim pede. Mas a linguagem violenta não dá acesso a certos objetos. Acho que não é gratuito, como reação a isso, o retorno de Clarice Lispector e Guimarães Rosa. Caio Fernando Abreu, ou João Gilberto Noll também. São pessoas que não adotaram esse estilo muito tributário do Rubem Fonseca. Nada contra ele nem contra suas obras, que são fantásticas, mas ele personifica um pouco esse estilo. Eu li há pouco um artigo interessante n’O Estado de S.Paulo sobre o adjetivo em Nelson Rodrigues e Jorge Luis Borges. E essa prosa de que falamos, a que se consolidou como modelo, não tem quase adjetivos, e você vê aí a necessidade do retorno do adjetivo, porque você precisa amaciar um pouco a linguagem. E o adjetivo amacia, e por isso é rejeitado totalmente. Não sei, acho que você tem de se valer de tudo. Se vai simplificar, tem de haver um motivo. E, naquele período, até havia, era uma literatura que espelhava a ditadura. Hoje, você poderia abrir o espaço para uma afetuosidade com o adjetivo e o advérbio. É uma linguagem menos comprometida com a mera agressividade, que é óbvia neste momento em que estamos.