Uma apertada cela do presídio Bangu 8, na calorenta zona norte do Rio, serve hoje de lar para um dos homens que até poucos anos era um dos mais importantes líderes do país. Ele, Eduardo Cunha, ex-presidente da Câmara Federal, é dos poucos políticos de renome que permanecem presos pela Lava-Jato, a operação que mais prendeu figurões do mundo parlamentar e empresarial na história do país.
Ainda circulam em vídeos por aí a imagem de Eduardo Cunha, então deputado federal do MDB-RJ, alçado ao ponto mais alto da carreira, a presidência da Câmara. Foi em fevereiro de 2015, braços para o alto e erguido por apoiadores. Nada mal para um garoto do subúrbio do Rio. No novo posto, o terceiro na linha de sucessão da Presidência da República, o parlamentar definia a velocidade de andamento dos projetos, o que é um poder e tanto num país movido a emendas e remendos de leis. Mais do que isso: cabia a Cunha definir se seria aberto processo de impeachment contra a presidente Dilma Rousseff, sua desafeta. Ele a rifou. E o resto é conhecido: Dilma foi afastada do cargo em 31 de agosto de 2016.
O sabor da vitória durou pouco para Cunha. Menos de dois meses após o impeachment presidencial, ele foi preso, em 19 de outubro de 2016. Nunca mais saiu, até porque foi condenado duas vezes desde então: a 14 anos e seis meses de reclusão, por fraude na compra de campo de petróleo pela Petrobras em Benin, na África, e a 24 anos e 10 meses de prisão, por crimes envolvendo fundos de investimentos controlados pela Caixa Econômica Federal.
Como um homem com articulação política capaz de afastar uma presidente da República foi dos píncaros à cadeia, em tão poucos meses? A resposta pode ser procurada em Deus Tenha Misericórdia Dessa Nação – A Biografia Não Autorizada de Eduardo Cunha, a mais detalhada biografia já feita sobre o ex-deputado, a quem os petistas chamavam de “Meu Malvado Favorito”. A trajetória dele é eviscerada em 364 páginas pelos experientes jornalistas Chico Otavio e Aloy Jupiara.
Cariocas como Cunha, Chico e Jupiara têm história juntos. Atuaram como colegas em O Globo (Chico continua na redação do jornal, como repórter especial) e traçaram um monumental panorama das relações entre o jogo do bicho e a ditadura militar no livro Os Porões da Contravenção (Record, 2015). Os dois repórteres se uniram agora mais uma vez para perfilar o homem que foi um dos mais bem-sucedidos na fórmula que mistura apelo religioso, pragmatismo político e negociatas.
Como toda boa biografia, essa começa muito antes de Cunha nascer. Os autores mergulham na história do pai do biografado, poucas vezes mencionado pelo deputado. Talvez por uma razão: Elcy Cunha, gaúcho de nascimento, também esteve preso, como o filho, o deputado Eduardo. E também por fraude: foi detido por se passar falsamente por agente do Serviço Nacional de Informações (SNI), que atuava na ditadura militar.
O livro mostra que fraudes marcam a vida de Cunha. Começam na adolescência, quando dirigia um clube de futebol no subúrbio do Rio. Passam pela juventude, quando foi iniciado nos mistérios e benesses da política fluminense, primeiro como carregador de pasta e burocrata de segundo escalão de estatais. Depois, como parlamentar. Cunha comandava uma bancada própria, mais de 80 parlamentares fiéis. Todos lhe deviam favores como pagamento de contas de campanha – dinheiro que, segundo a Procuradoria-Geral da República (PGR), seria fruto de achaques feitos pelo deputado.
Marcam também sua conversão ao cristianismo neopentecostal, com a montagem de uma rede de empresas chamada Jesus.Com, que gerenciava desde sites evangélicos até uma frota de oito veículos de luxo pertencentes ao deputado (incluindo dois Porsche Cayenne). E culminam com participação suspeita em compras de áreas para exploração de petróleo na África.
Milionário, Cunha amarga hoje o calabouço. É vizinho de cela do ex-correligionário do MDB e atual inimigo político Sérgio Cabral, o ex-governador do Rio condenado a 267 anos de prisão.
Impossibilitado de concorrer, desde a cadeia Cunha tentou eleger uma filha. Não conseguiu, mas ela já se alinhou ao poder, apoiando a coligação que conquistou a Presidência da República na atual gestão. Com penas acumuladas, Cunha alega estar doente. Terá ele possibilidade de sair da cela ou, ainda mais difícil, de retomar a carreira? Os autores do livro não respondem, mas sentenciam: na história não são raros casos de políticos que ressuscitam.
"Fiquei fora da guerra ideológica"
Leia a entrevista com Chico Otavio, coautor de "Deus Tenha Misericórdia Dessa Nação – A Biografia Não Autorizada de Eduardo Cunha"
Por que Eduardo Cunha? Por que não Cabral, que também é carioca, político e presidiário?
Há quase duas décadas acompanho como jornalista a trajetória de Eduardo Cunha, escrevendo reportagens com denúncias sobre sua atuação no mundo político. Temos que lembrar que ele chegou à presidência da Câmara dos Deputados, um dos postos mais poderosos da República, e teve papel fundamental no impeachment da presidente Dilma, e, portanto, em tudo que aconteceu de 2016 para cá. Sérgio Cabral também é um personagem interessantíssimo para um livro.
Eduardo Cunha é um dos expoentes de uma nova e bem-sucedida forma de fazer política, que mistura apelo religioso, pragmatismo político e negociatas. Um tipo de ativismo que ajudou, aliás, a eleger o atual presidente. É uma fórmula desgastada ou dará ainda muitos frutos? A fórmula não parece ter se esgotado. O fenômeno do voto neopentecostal está relacionado com o crescimento do número de fiéis, algo que é objeto de estudos. Cunha não se ergueu apenas sustentado por esses votos, obtidos a partir de sua atuação como radialista, mas das articulações dos bastidores políticos, no denunciado envolvimento no financiamento de campanhas eleitorais de deputados, que criou sua base de ação e pressão no Congresso.
O livro não é um libelo acusatório. É um retrato imparcial de um personagem que esteve no centro do poder.
CHICO OTAVIO
Petistas dizem que a Lava-Jato é uma farsa, desencadeada sobretudo para desacreditar e desalojar a esquerda do poder. Mas a Lava-Jato prendeu Cunha – desafeto histórico do PT – inclusive antes de prender Lula, maior liderança petista. A Lava-Jato foi boa ou ruim para o país? Equilibrada ou tendenciosa?
Como repórter do Rio, cobri essencialmente a investigação sobre a organização criminosa ligada ao ex-governador Sergio Cabral. Nesse caso, percebi uma certa unanimidade de opiniões. E fiquei fora dessa guerra ideológica que cercou a operação no Panará. Só posso dizer que acredito no sistema de freios e contrapesos, com a sua capacidade de segurar eventuais abusos.
Qual o maior erro cometido por Cunha? Ter contas no Exterior com seu nome e o da mulher? Ou alguma estratégia política mal calculada?
Cunha se beneficiou de esquemas de corrupção montados no setor público, como apontou a Procuradoria-Geral da República (PGR), já tendo sido condenado pela Justiça em processos que foram abertos. São crimes. O dinheiro na Suíça é uma ponta. Não chamaria de erros, mas de crimes. Se cometeu um erro, foi o de acreditar que não seria pego.
Eduardo Cunha já moveu 240 processos criminais e cíveis contra pessoas que falaram mal dele, a maioria jornalistas. Que cuidados foram tomados para não perder uma eventual ação que ele venha a mover?
Os cuidados são os mesmos de tudo o que escrevi até hoje sobre o personagem: cuidado redobrado no trabalho de apuração, com a coleta dos dados necessários à linha a ser sustentada, e respeito ao outro lado. Embora não tenhamos entrevistado Cunha, fizemos questão de trazer para o livro as defesas e posicionamentos tomados por ele ao longo da carreira. Nada ficou sem defesa. Com isso, não há o que recear. Além do mais, o livro não é um libelo acusatório. É um retrato imparcial de um personagem que esteve no centro do poder.