O ano de 2019 foi, para a literatura, um período de contínua resistência a mais de um desafio. Por um lado, a persistente crise econômica do setor, que levou ao pedido de recuperação judicial das duas principais redes de livrarias do país em 2018, tornou difícil a busca por apoios e patrocínios para a realização de vários eventos do calendário literário. A Feira do Livro de Porto Alegre foi realizada com todas as adaptações possíveis de orçamento para que a continuidade do evento não fosse interrompida. Já a Jornada Nacional de Literatura de Passo Fundo foi duas vezes adiada, uma em julho e outra no início de dezembro.
Outro elemento de resistência foi o embate entre criadores e políticos em diferentes esferas do governo, do presidente Jair Bolsonaro, descontente com o Prêmio Camões para Chico Buarque, ao prefeito do Rio Marcelo Crivella, que tentou recolher uma graphic novel da Bienal do Rio.
Os jovens salvaram a Feira do Livro
A Feira do Livro de Porto Alegre foi realizada na raça, com um orçamento enxuto, e seu balanço final trouxe boas e más notícias.
No total, as vendas de livros na Praça da Alfândega tiveram um tímido aumento geral de 1% em relação a 2018, graças principalmente à área infantojuvenil, já que as partes geral e internacional registraram queda no comércio de exemplares. O setor voltado para crianças e adolescentes teve um impulso de 46% nas compras em 2019.
— Tivemos muitas sessões de autógrafos das escolas particulares, que é um público com um poder aquisitivo melhor. São escolas que produzem livros junto com os alunos o ano todo e apresentam o resultado na Feira — explicou Sônia Zanchetta, coordenadora da área infantojuvenil do evento.
Confirmando o momento complicado para os eventos culturais do Estado, a Jornada Nacional de Literatura de Passo Fundo foi adiada pela segunda vez e só será realizada em 2021.
Chico e Camões
Chico Buarque recebeu em maio a mais importante distinção da Língua Portuguesa, o Prêmio Camões, concedido por Brasil e Portugal. Inconformado com a escolha, o presidente do Brasil, Jair Bolsonaro, que elegeu Chico como um de seus desafetos figadais, disse em outubro que talvez só assinasse o diploma do prêmio no fim de um possível segundo mandato. Chico respondeu que a não assinatura equivalia a um segundo prêmio. Portugal, responsável pela entrega, já confirmou o evento em 2020. Ah, Chico também lançou romance novo, Essa Gente.
Os 70 anos de um épico
2019 marcou os 70 anos do lançamento do primeiro volume de um dos monumentos incontestes da literatura brasileira. Erico Verissimo (1905-1975) publicou o primeiro tomo de O Continente em 1949. Idealizado por mais de 10 anos, inicialmente como um único romance, o ciclo O Tempo e o Vento se estendeu por outros seis volumes ao longo de mais de uma década (a série só seria finalizada com os três volumes de O Arquipélago lançados em 1961 e 1962), a ponto de o autor ter dúvidas de que conseguiria concluí-lo.
O Continente estabelece o tom épico e heroico que Erico vai desconstruir nos volumes seguintes. Mais afeitos ao mito do que à crítica, muitos leitores até hoje só leram mesmo a primeira parte do ciclo.
Fernanda, a bruxa
Numa referência às tentativas de censura durante a Bienal do Livro, a revista literária Quatro Cinco Um produziu um ensaio para sua edição de outubro com Fernanda Montenegro (que estava lançando sua autobiografia Prólogo, Ato e Epílogo) vestida de bruxa amarrada a um poste junto a uma pilha de livros. Em resposta, o à época diretor da Funarte (e hoje Secretário Nacional da Cultura) Roberto Alvim chamou, em suas redes sociais, Fernanda de “sórdida” e declarou que as relações do governo com a classe artística deveriam ser de “guerra irrevogável”. A repercussão tornou Fernanda um símbolo do que há de errado na classe artística, para um lado da polêmica, e da aversão do governo à Cultura, para o outro.
Ensaios de censura
No ano em que autoridades do país voltaram-se contra a produção cultural, não faltaram ameaças de censura. O caso mais notório foi o do prefeito do Rio, Marcelo Crivella, ligado à Igreja Universal, que em plena Bienal do Livro enviou fiscais ao evento para recolher o encadernado da Marvel A Cruzada das Crianças, por uma cena de beijo entre dois rapazes classificada por ele como “conteúdo sexual para menores”. O governador de São Paulo, João Dória, declarou que vai recolher material didático por defenderem “ideologia de gênero”. E no Rio Grande do Sul, Luisa Geisler, autora de Enfim, Capivaras, teve participação cancelada na Feira do Livro de Nova Hartz devido a palavrões nas falas das personagens.
Polêmica na Flip
A escolha da poeta americana Elizabeth Bishop (1911-1979) como a primeira homenageada estrangeira da Festa Literária Internacional de Paraty (Flip) despertou uma controvérsia na classe artística nacional. A escolha anunciada pela curadora Fernanda Diamant foi vista como uma deliberada provocação em um ano de embates acirrados entre o governo e os artistas. Bishop, que viveu no Brasil por 15 anos como companheira da urbanista Lota de Macedo Soares, amiga próxima de Carlos Lacerda, era arredia ao meio literário local, fez críticas ácidas a artistas e literatos brasileiros e manifestou, em sua correspondência, satisfação pela eclosão do golpe militar de 1964.
Um Nobel em dobro
Depois de um ano sem conceder o prêmio Nobel de Literatura, devido aos escândalos de tráfico de influências e assédio sexual envolvendo figuras-chave de seu conselho, a Academia Sueca, responsável pela premiação, tirou o atraso anunciando ao mesmo tempo os vencedores de 2018 e de 2019.
E a escolha recaiu em duas figuras praticamente opostas. A polonesa Olga Tokarczuk, a laureada de 2018, é uma autora de esquerda, ecologista, vegetariana e crítica do atual governo nacionalista de seu país. Depois do anúncio, ela teve seu livro Sobre os Ossos dos Mortos lançado no Brasil.
Já Peter Handke, autor premiado em 2019, é um austríaco conservador polêmico por suas reiteradas declarações de apoio ao líder sérvio Milosevic durante a guerra dos Bálcãs e sua negação do genocídio na Bósnia.
A cor de Machado de Assis
Debates sobre o gradual “embranquecimento” da imagem de Machado de Assis (1839-1908) ao longo dos anos em publicações e livros didáticos não são novos. A novidade na discussão foi a campanha lançada pela Faculdade Zumbi de Palmares, instituição comunitária de Ensino Superior em São Paulo. Em maio, a instituição colocou para download gratuito online versões em vários tamanhos da imagem mais famosa de Machado, colorida digitalmente para reafirmar sua pele negra.
“Machado de Assis foi embranquecido para ser reconhecido. Infelizmente. Um absurdo que mancha a história do país. Uma injustiça que fere a comunidade negra. Já passou da hora de esse erro ser corrigido”, afirmava o texto de apresentação do projeto.
Ausências
Entre outras perdas, o ano privou a literatura, em maio, de Flávio Moreira da Costa, autor gaúcho e grande compilador de antologias. Também morreu, em agosto, a irreverente e provocadora Fernanda Young, autora e roteirista que foi nomeada postumamente como vencedora do Prêmio Jabuti na categoria crônica, com seu livro Pós-F. Perdeu-se também uma das maiores autoras em atividade, Toni Morrison (em agosto) e o escritor Modesto Carone (em dezembro), nosso maior tradutor de Kafka.