Alguns romances já foram escritos tentando dar sentido à convulsão política que o país vive desde 2013 e o atual momento de ascensão da ultradireita nacional e do pensamento que ela representa. Nenhum deles foi muito feliz na apreensão do tema porque, escritos por autores perceptivos e com uma bagagem intelectual respeitável, entregavam-se ao exercício da análise aprofundada – que terminava, muitas vezes, com a recusa final da análise, classificando o Brasil do presente com um fenômeno por ora inapreensível. Pois Chico Buarque, em seu sexto romance, Essa Gente, consegue ser mais agudo escolhendo uma forma que dialoga de modo certeiro com o Brasil de hoje: uma narrativa fragmentada com um protagonista que assiste impassível à desagregação do Rio ao seu redor. (“Há manhãs em que desço a persiana para não ver a cidade, tal como outrora recusava encarar minha mãe doente”, escreve ele a certa altura).
Essa Gente é o primeiro romance publicado por Chico Buarque após receber o Prêmio Camões, a maior honraria concedida a um escritor em Língua Portuguesa. Apoiador irrestrito do PT, Chico é visto pelo bolsonarismo hoje no poder como inimigo direto: já foi acossado por transeuntes ao andar na rua e o presidente Jair Bolsonaro até hoje não confirmou se vai ou não assinar o diploma do Camões, concedido em conjunto pelos governos do Brasil e de Portugal.
Nada disso está diretamente no livro, mas, organizado na forma de um diário com inserções de várias outras fontes, como mensagens pessoais, diálogos telefônicos, notícias de jornal e sonhos confusos, Essa Gente é uma sátira não apenas à direita que fez de Chico um símbolo do que despreza, mas à elite financeira e intelectual do país como um todo, inclusive à classe artística mais à esquerda da qual o próprio autor faz parte.
A trama acompanha o escritor Manuel Duarte ao longo, principalmente, de nove meses deste ano de 2019 (algumas entradas, no início do livro, são mais antigas, mas o fato de Chico estar publicando em novembro um livro cujo último acontecimento é datado de 29 de setembro é uma amostra da urgência epidérmica com que o compositor/escritor decidiu abordar o atual momento). Duarte registra como em um diário seus dias enquanto patina em um momento de estagnação pessoal e profissional. Autor de um best-seller histórico chamado O Eunuco do Paço Real, publicado em 2000, Duarte agora amarga um melancólico fim de carreira, sem inspiração, sem dinheiro e duas vezes divorciado.
É uma vida naufragada da qual Duarte não consegue se libertar. Volta e meia ele engana a si mesmo de que está trabalhando em um novo grande romance. Enganando a si mesmo, tenta enganar também a seu editor, a quem acossa com pedidos de adiantamentos para não ser despejado enquanto prevê a conclusão do novo livro “para daqui a três meses”, prazo que nunca se abrevia.
Duarte também está encalhado no plano sentimental, já que gravita ao redor das duas ex-mulheres, a tradutora Maria Clara e a artista Rosane. A primeira cria sozinha o filho de 12 anos com o qual Duarte teve pouco contato e com quem não consegue trocar nenhuma palavra. A segunda, embora tenha largado o escritor para estabelecer um caso com um milionário barão do agronegócio, vez por outra aceita Duarte em seu apartamento para uma sessão de recaída.
O romance é sobre isso, mas não só. Outras linhas narrativas se desdobram a partir de outros fragmentos: Duarte quase se afoga na praia e é resgatado por um salva-vidas bonachão com quem faz amizade. Não demora para o incauto escritor espichar o olho também para a mulher do homem, uma holandesa que vive com o sargento em Vigário Geral, para onde Duarte se vê levado algumas vezes para encontrar um Brasil que para ele é só abstração.
Sátira
“Essa gente” é o bordão preconceituoso da classe burguesa destinado aos pobres com quem é forçada a conviver em raras ocasiões, na maioria das vezes com os segundos na condição de subalternos. O que há de inteligente no uso da expressão por Chico é que o romance é e ao mesmo tempo não é sobre “essa gente”. À primeira vista, a “gente” é a fauna pernóstica e afetada à volta de Duarte, ele incluso. Mas nas frestas da narrativa se insinua, como na vida, essa outra gente largamente ignorada e muitas vezes brutalizada em episódios a que o narrador assiste impassível: um amigo do escritor, após uns goles, espanca brutalmente um mendigo que dormia encostado no muro de seu clube para grã-finos. Durante um assalto com refém, o criminoso é fuzilado pela polícia com 80 tiros. Os policiais são aplaudidos pelo público ávido por selfies.
O acúmulo desses absurdos bastante plausíveis se combina a fatos reais do noticiário recente para que a sátira tenha um efeito demolidor: Duarte e seus livros e suas mulheres parecem não o centro de um drama, mas um teatro afetado e vazio, inclusive na linguagem que o autor maneja com maestria.
Essa Gente
- De Chico Buarque
- Romance. Companhia das Letras,
- 200 páginas, R$ 49,90 (papel) e R$ 34,90 (e-book)