Esqueça o Japão. China? Não, não é por aí. Para o escritor e recente ganhador do Prêmio Camões Chico Buarque — um sujeito mais conhecido por ter assinado centenas de canções de um certo compositor Chico Buarque —, o avesso do mundo é a Hungria, e os antípodas caminham pelas ruas frias de uma onírica Budapeste. Ou duas, já que a cidade é um espelho em si mesma, Buda e Pest, aglomerados urbanos cortados em ípsilon pela águas de um Danúbio por vezes amarelo, por vezes verde-escuro, nunca azul.
Budapeste, com edição da Companhia das Letras, é o terceiro romance de Chico Buarque — embora alguns prefiram incluir na conta a novela alegórica Fazenda Modelo, de 1975, da qual nem Chico costuma falar muito. Dos anteriores Estorvo (1991) e Benjamim (1995), este livro recupera características suficientes para serem qualificadas de estilo: uma escrita límpida na forma e labiríntica no conteúdo, uma geografia mais imaginária que real e um punhado de situações absurdas pelas quais o personagem é capturado a intervalos cíclicos, como um graveto em um redemoinho.
Mas o que torna Budapeste um dos mais bem acabados livro de Chico (ao lado do posterior Leite Derramado, de 2009) não são seus acertos naquilo que ele já tentou, e sim o ineditismo de algumas propostas pelas quais se arrisca: uma história consistente, e não um pesadelo vago como Estorvo, ou uma estrutura menos fragmentada, embora com as idas e vindas que ecoam em Benjamim. E, o mais importante, um inusitado humor, longe da atmosfera opressiva dos outros trabalhos.
Além de armar brincadeiras com espelhos dentro do livro, Chico força as noções de realidade e de autoria, tornando o próprio romance personagem e seu protagonista, o verdadeiro autor. Como na letra de um certo compositor chamado Chico Buarque, em que um admirador vê nos olhos da amada vitrines que por sua vez a vêem passar.
Budapeste conta a história de José Costa, escritor de aluguel, sócio de uma agência que promete sigilo na produção de artigos, monografias e dissertações que serão assinadas por terceiros. As palavras anônimas de outra pessoa. Costa tem na bela esposa Vanda seu duplo e seu oposto. Ela é apresentadora de um telejornal, rosto e voz de palavras escritas por outros — situação que ele define a determinada altura de uma discussão como a de uma "papagaia", que lê notícias sem entendê-las.
A certo momento, Costa está voltando para casa depois de participar de um congresso internacional de escritores anônimos — uma das situações em que o humor de Chico fala mais alto que a densidade da trama. O avião faz uma parada imprevista em Budapeste devido a uma ameaça de bomba. Ao assistir televisão no hotel, Costa é fisgado pelo fluxo contínuo do desconhecido idioma húngaro, do qual "era impossível destacar uma palavra da outra, seria como pretender cortar um rio a faca".
Fascinado por aprender a estranha língua, Costa retorna ao Brasil, mas volta em mau momento. Está perdendo espaço na agência — uma vez que seu sócio a cada dia diminui sua cota de trabalho, passando-a a jovens auxiliares treinados para substituí-lo — e o contato com sua mulher. Também não têm diálogo com o filho de três anos, uma criança obesa mergulhada em um silêncio quase autista.
Pressionado pelo sócio a completar a encomenda de uma biografia romanceada de um cliente estrangeiro, Costa se desincumbe da tarefa como quem se exaure nas últimas forças. Deixa a agência e compra uma nova passagem para Budapeste. A mulher se recusa a ir com ele e Costa - ou Zsoze Kósta, como passa a ser chamado pela peculiar pronúncia dos locais - retorna sozinho à Hungria, onde, mais que ao aprendizado de um idioma, se dedica ao aprendizado de uma mulher, a professora de quem passa a tomar aulas: Krisztina ou Kriska.
A partir daí, Kósta oscila entre Budapeste e Rio de Janeiro, entre aprender o húngaro, desaprendê-lo, reaprender o português, tentar esquecê-lo outra vez para novamente enfrentar o húngaro. Por mais que treine, não consegue assimilar a totalidade do idioma húngaro, e a cada mergulho perde um pouco do que sabia de português. Também como metáfora das dificuldades lingüísticas, a retomada da vida a cada mudança de país se dá aos tropeços: conhecidos somem, as situações
se alteram e o livro de encomenda escrito às pressas para o cliente alemão vira um best-seller surpreendente quando Costa volta ao Rio — um livro de capa mostardacomo a da edição de Budapeste, o livro "real".
E há ainda Vanda e Kriska. Também elas são linguagens nas quais o personagem
se perde sem adquirir total domínio. Por Vanda, Costa se apaixona com os olhos, ao vê-la em companhia de outro duplo, a irmã gêmea ("como eu naquela noite em que me apaixonei de estalo, embora por rigorosa escolha, porque não hesitei entre ela e outra que lhe era idêntica" — contará ele). Jogado na selva lingüística de uma Budapeste estranha, o agora Kósta se envolverá com Kriska em uma paixão que vai irromper por meio da palavra — mais especificamente de um advérbio mal empregado durante um telefonema. Kriska é o idioma magiar, aquele que, ao ouvir pela primeira vez, Costa define como "uma língua sem emendas, não constituída de palavras, mas que se desse a conhecer só por inteiro". A nudez branca do corpo de Kriska, visto pela primeira vez, o desconcerta do mesmo modo ("Por um segundo imaginei que ela não fosse uma mulher para se tocar aqui ou ali, mas que me desafiasse a tocar de uma só vez a pele inteira").
Nas voltas dessa dislalia perpétua, também Chico, o autor, se desdobra outra vez em duplo e oposto: o protagonista Costa aprende a língua mas não consegue perder o sotaque, domina o idioma mas não se comunica com as mulheres de sua vida, linguagens misteriosas cuja chave está sempre em outro lugar. E quem dá voz a este protagonista disléxico na gramática feminina é um dos homens que melhor expressaram a voz feminina na música brasileira — na primeira pessoa. Ironia e duplicidade. E como um novelo que passa de um carretel a outro, ao fim do livro, a primeira frase da história se repete em um outro livro, citado na narrativa. E a história propriamente dita termina com uma frase do livro escrito por Costa para o cliente alemão.
Esqueça o Japão. O universo de Budapeste se curva sobre si mesmo — o avesso do mundo é o ponto de partida, e autor e leitor se tornam alternadamente personagens da narrativa de Costa. Um livro cujo autor não é ele.