Gravado com os músicos em um estúdio, sem qualquer tipo de efeito visual, o vídeo oficial da música Tua Cantiga, a mais comentada do novo disco de Chico Buarque por motivo de uma polêmica nas redes sociais, teve até 25 de dezembro 1,7 milhão de visualizações no YouTube. No mesmo dia, o feérico vídeo oficial da música Paradinha, de Anitta, com profusão de efeitos e lançado apenas três meses antes, chegava a 225 milhões. Tal é a distância que separa aquele que muitos consideram o maior nome da música brasileira, digamos, tradicional, 50 anos de carreira, e a igualmente carioca cantora/performer surgida há apenas cinco anos e agora nome predominante na mídia e nas redes sociais inclusive internacionais.
Por que cargas d'água Chico Buarque é o mais citado nesta enquete que há mais de 20 anos realizo com amigos comentaristas de música, e Anitta não tem sequer uma menção? Bueno, antes de mais nada ela não lançou um álbum em 2017 (o último é de 2015). Se tivesse lançado, muito provavelmente também não estaria aqui, pois nenhum dos três que gravou mereceu alguma menção. E a presença dela neste texto termina aqui, entrou só para que eu pudesse fazer a esdrúxula comparação. O caderno DOC que irá circular no sábado escolheu Anitta e Pabllo Vittar como personalidades do ano na área cultural, e o editor Daniel Feix me pediu que escrevesse sobre a parte musical deles. Pensei duas vezes, mas encarei a barra.
Os amigos que fazem as listas de seus álbuns preferidos, Antonio Carlos Miguel, Carlos Calado, Irlam Rocha Lima, Hagamenon Brito, Kiko Ferreira, Paulo Moreira e Roger Lerina, ganham este ano a companhia de José Teles, respeitado jornalista de Recife – achei que faltava alguém do Nordeste, pois Salvador, representada por Hagamenon, parece culturalmente mais próxima do Sudeste. E Hagamenon é o cara que quebra um pouco a predominância mpbista da confraria – sempre ouço os discos que ele indica, informações de qualidade internacional. Para dar uma ideia, dos 59 álbuns citados, apenas 14 são internacionais. Agora, já que sou o que convida, quem discordar dos "métodos" que crie os seus, hehehe.
Então, vamos aos resultados. O álbum Caravana, de Chico Buarque, lançado seis anos depois do anterior, tem sete citações em nove possíveis. Com cinco, estão Campos Neutrais, de Vitor Ramil; Caipira, de Mônica Salmaso; e Sangue Negro, da revelação Amaro Freitas. Os discos Invento +, de Zélia Duncan e Jaques Morelenbaum interpretando Milton Nascimento, e No Mundo dos Sons, de Hermeto Pascoal & Grupo, recebem três menções. Nove álbuns têm duas. E 44 só uma! Na enquete do ano passado, foram mencionados 53 discos; nesta, 59. É a enquete mais díspar que já fizemos. Mesmo que tenhamos gostos mais ou menos parecidos, a amplitude da produção independente, de irregular circulação, provoca tal disparidade.
Para onde caminha a música? Ninguém sabe. As mudanças provocadas pela revolução digital em curso, que leva as novas gerações a ouvir "singles" e não álbuns, está apenas no começo. "As gravadoras não fazem mais sentido na forma como ouço ou tive acesso aos trabalhos listados, quase sempre pelo Spotify e Deezer, quando não por fichários enviados por artistas e/ou suas assessorias", diz Hagamenon. De minha parte, decidi abrir mais espaço para artistas locais, que de outra forma ficariam de fora, pois com raras exceções (Vitor Ramil, por exemplo) não chegam aos jornais de outros Estados. Mas não estão em minha lista por condescendência e sim porque têm grande qualidade.
OS ÁLBUNS
CARAVANA
Nessa era de marketing e trending topics, Chico Buarque também teve direito aos minutos de fama em 2017 com Caravana, o novo álbum caindo no tribunal das redes sociais devido a versos tomados como "incorretos" em Tua Cantiga. Mas o disco vai além dessa toada de amor incontrolável, e outras letras têm conteúdos até bem mais fortes, caso do samba-batidão As Caravanas, que o fecha, com uma crônica sobre o Rio em chamas. Durando pouco menos de meia hora, suas nove canções podem não pegar de primeira, fogem intencionalmente do óbvio e se revelam aos poucos. Talvez para cada vez mais poucos. (Antonio Carlos Miguel)
CAIPIRA
Caipira, de Mônica Salmaso, é disco que acorda cedo, feito amor passarinheiro. Tabaréu, caboclo, sertanejo, sem os arroubos dos "universitários" de plantão, apresenta uma visão do universo interiorano sem falsa animação. Salmaso retrata o personagem símbolo que movimenta programas de rádio e TV de mestres como Rolando Boldrin, e que observa, ri das dificuldades, faz troça com o amigo e é romântico sem vergonha de ser. Recupera canções de autores clássicos do gênero e apresenta novidades, sem perder a linha e o prumo. Um trabalho com a delicadeza e o rigor que sublinham a carreira dela. (Kiko Ferreira)
CAMPOS NEUTRAIS
Antes do lançamento, Vitor Ramil, o mais severo crítico de si mesmo, garantia ser Campos Neutrais seu melhor trabalho. Mas e onde ficariam A Paixão de V, Tango, Ramilonga, délibáb? Aí você ouve o disco e não tem como não concordar com ele. As surpresas começam já na abertura: a atuação extraordinária do quinteto de metais que, com arranjos de Vagner Cunha, percorrerá todo o álbum. Parcerias com Chico César, Zeca Baleiro e outros, encaixam-se à perfeição na estética do compositor, que ainda canta como nunca. Entre 15 canções irretocáveis, a que mais marca o álbum é Palavra Desordem, crispada alegoria sobre o Brasil de hoje. (Juarez Fonseca)
SANGUE NEGRO
Álbum de estreia de Amaro Freitas, Sangue Negro mostra por que o pianista e compositor de Recife é apontado como grande revelação do jazz brasileiro. Aos 25 anos, ele tem uma maturidade que impressiona. Diz que sua maior influência é o conterrâneo Capiba, mas no disco encontram-se ares de Thelonious Monk, Herbie Hancock, Keith Jarrett, Brad Mehldau, João Donato, sem que esses mestres interfiram em seu estilo. Límpido, o piano pode ser minimalista, sutil, ou efusivamente rítmico na mescla de jazz com frevo e samba. O quinteto se completa com trompete, sax, baixo e bateria. Produção do pianista e arranjador gaúcho Rafael Vernet. (JF)
AS LISTAS
ANTONIO CARLOS MIGUEL
Crítico musical no Rio de Janeiro, mantém um blog no portal G1 e é membro votante do Grammy Latino.
- Amaro Freitas – Sangue Negro (independente)
- Breno Ruiz – Cantilenas Brasileiras (indep)
- Fernanda Cunha – Jobim 90 (indep)
- Tamy – Parador Neptunia (Dubas Música)
- Paul Weller – A Kind of Revolution (Parlophone/Warner)
- Rafael Martini – Suíte Onírica (indep/Tratote)
- Pó de Café - Terra (Canto do Urutau)
- Hermeto Pascoal & Grupo - No Mundo dos Sons (Selo Sesc)
- Chico Buarque – Caravanas (Biscoito Fino)
- Kamasi Washington - Harmony of Difference (Young Turks)
CARLOS CALADO
Crítico musical, autor do blog Música de Alma Negra e colaborador dos jornais Folha de S. Paulo e Valor.
- Amaro Freitas – Sangue Negro (independente)
- Banda Mantiqueira - Com Alma (Selo Sesc)
- Breno Ruiz – Cantilenas Brasileiras (indep)
- Chico Buarque – Caravanas (Biscoito Fino)
- Deangelo Silva – Downriver (indep)
- Heloisa Fernandes - Faces (Borandá)
- Hermeto Pascoal & Grupo – No Mundo dos Sons (Selo Sesc)
- Lilian Carmona - The First (Selo Sesc)
- Monica Salmaso – Caipira (Biscoito Fino)
- Tutty Moreno, Rodolfo Stroeter, André Mehmari e Nailor Proveta – Dorival (Pau Brasil)
HAGAMENON BRITO
Editor, crítico musical e colunista do jornal Correio, de Salvador.
- Filipe Catto – Catto (Biscoito Fino)
- Baco Exu do Blues – Esú (Cremenow Studio)
- Criolo - Espiral de Ilusão (Oloko Records)
- Mallu – Vem (Sony)
- César Lacerda – Tudo Tudo Tudo Tudo (Circus/YB Music)
- Kendrick Lamar – DAMN. (Universal)
- Jay Z – 4:44 (Universal)
- Lorde – Melodrama (Universal)
- Harry Styles – Harry Styles (Sony)
- SZA – Ctrl (RCA)
IRLAM ROCHA LIMA
Crítico musical e editor de música do Correio Braziliense.
- Chico Buarque – Caravanas (Biscoito Fino)
- Novos Baianos – Acabou Chorare ao Vivo (Som Livre)
- Arnaldo Antunes, Carlinhos Brown, Marisa Monte – Tribalistas (Universal)
- Mônica Salmaso – Caipira (Biscoito Fino)
- Zélia Duncan e Jaques Morelenbaum - Invento + (Biscoito Fino)
- Guilherme Arantes – Flores & Cores (Coaxo do Sapo)
- João Donato – Bluchanga (Acre Musical/Mills)
- Paulo Jobim e Mario Adnet – Jobim Orquestra & Convidados
- Vitor Ramil – Campos Neutrais (Satolep)
- Lulu Santos – Baby Baby! (Universal)
JOSÉ TELES
Pesquisador, escritor, crítico musical do Jornal do Commercio, de Recife.
- Vitor Rua – Do Androids Dream of Electric Guitars? (Clean Feed Records).
- Cauby Peixoto – Cauby Canta Dick Farney (Biscoito Fino)
- Mônica Salmaso – Caipira (Biscoito Fino)
- Charles Gavin e grupo – Primavera nos Dentes (Deck)
- Juçara Marçal, Gui Amabis e Rodrigo Campos – Sambas do Absurdo (YB)
- Tony Allen – A Tribute to Art Blakey and the Jazz Messengers (Blue Note)
- Lula Queiroga – Aumenta o Sonho (Luni)
- Van Morrison – The Authorized Bang Collection (Sony)
- Bob Dylan – Triplicate (Sony)
- Simone Mazzer & Cotonete (Prado Records)
KIKO FERREIRA
Crítico musical do jornal Estado de Minas, diretor de programação da Rede Minas de Televisão.
- Chico Buarque – Caravanas (Biscoito Fino)
- Vitor Ramil – Campos Neutrais (Satolep)
- Zélia Duncan e Jaques Morelenbaum – Invento + (Biscoito Fino)
- Monica Salmaso – Caipira (Biscoito Fino)
- Sharon Jones & The Dap Kings – Soul of a Woman (Daptone Records)
- Amaro Freitas – Sangue Negro (independente)
- Antonio Adolfo – Hybrido – From Rio to Wayne Shorter (AAMusic/Rob Digital)
- Edu Lobo, Romero Lubambo e Mauro Senise – Dos Navegantes (Biscoito Fino)
- Father John Misty – Pure Company (Subpop/Warner)
- Björk – Utopia (One Little Indian Records)
PAULO MOREIRA
Crítico musical, apresentador do programa Sessão Jazz na FM Cultura, de Porto Alegre.
- Edu Lobo, Romero Lubambo e Mauro Senise – Dos Navegantes (Biscoito Fino)
- Hermeto Pascoal & Grupo – No Mundo dos Sons (Selo Sesc)
- Vitor Ramil – Campos Neutrais (Satolep)
- Chico Buarque – Caravanas (Biscoito Fino)
- Marmota – A Margem (Audio Porto)
- Edu Lobo, Dori Caymmi, Toninho Horta e Zé Renato – Em Casa com Luiz Eça (Biscoito Fino)
- Bob Dylan – Triplicate (Sony)
- Antonio Adolfo – Hybrido – From Rio to Wayne Shorter (AAMusic/Rob Digital)
- Renato Borghetti e Yamandu Costa – BorghettiYamandu (Natura Musical)
- Hamilton de Holanda – Casa de Bituca (Brasilianos)
ROGER LERINA
Crítico musical e de cinema em Porto Alegre, colunista do site coletiva.net, mantém a página O Fio da Meada no YouTube.
- Amaro Freitas – Sangue Negro (independente)
- Chico Buarque – Caravanas (Biscoito Fino)
- Kendrick Lamar – DAMN. (Aftermath/Interscope)
- Vitor Ramil – Campos Neutrais (Satolep)
- Mônica Salmaso – Caipira (Biscoito Fino)
- Paul Weller – A Kind Revolution (Parlophone/Warner)
- Antonio Meneses e André Mehmari – AM60 AM40 (Selo Sesc)
- Björk – Utopia (One Little Indian)
- Criolo – Espiral de Ilusão (Oloko Records)
- Charlotte Gainsbourg – Rest (Warner)
A LISTA DO COLUNISTA
- Alexandre Vieira – Novo (independente)
- Amaro Freitas – Sangue Negro (independente)
- Chico Buarque – Caravanas (Biscoito Fino)
- Marco Aurélio Vasconcellos e Martim César – Doze Cantos Ibéricos e uma Canção Brasileira (independente/Minuano Discos)
- Pablo Lanzoni – POA-MVD (independente)
- Renato Borghetti e Yamandu Costa – BorghettiYamandu (CD e DVD Natura Musical)
- Richard Serraria – Mais Tambor Menos Motor (independente/Tratore)
- Vitor Ramil – Campos Neutrais (Satolep)
- Xenia França – Xenia (Natura Musical)
- Zelia Duncan e Jaques Morelenbaum – Invento + (Biscoito Fino)