Lançado depois de uma polêmica tipicamente internética (seria o maior compositor brasileiro machista e, pior, ultrapassado?), abastecida por muitos palpites e pouca substância, o novo disco de Chico Buarque, Caravanas, chega às lojas e aos serviços de streaming na próxima sexta-feira, dia 25. Morram de inveja: eu já ouvi. E gostei. Spoiler: Chico nunca foi tão feminista.
Na primeira audição, Blues para Bia logo se destaca, pelos versos docemente "empoderados", que celebram a liberdade feminina e refletem a sexualidade fluida das meninas do século 21. Tudo isso escrito por um senhor setentão, porém atento: "No coração de Bia/ Meninos não têm lugar / Porém nada me amofina / Até posso virar menina / Pra ela me namorar".
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Gostei muito também de Jogo de Bola, que empresta o lirismo buarquiano ao universo do futebol, sua grande paixão. É uma preciosidade para os amantes do esporte (cheia de referências que, confesso, vão além das minhas chuteiras).
Chico, esperto, aproveita a atenção da plateia masculina para mandar um recado sobre o jeito como eles deveriam tratar as mulheres: "Salve o futebol / Salve a filosofia de botequim. / Salve jogar bonito / E não ganhar no grito / A simpatia quase amor da guria".
Caravanas, que fecha o disco, é uma obra-prima. Consegue ao mesmo tempo ser erudita (com referências a Camus e Duke Ellington) e profundamente fincada na realidade brasileira atual: "Com negros torsos nus / Deixam em polvorosa / A gente ordeira e virtuosa / Que apela pra polícia / Despachar de volta/ O populacho pra favela". Chico sendo Chico.
Mas o mais emocionante no disco talvez não esteja nas músicas em si, mas nas parcerias inéditas com Clara Buarque e Chico Brown. Que luxo cantar e compor com os netos, que bonito ver a tradição e o futuro se dando as mãos na caravana da vida. Para quem chegou agora no mundo, uma época em que, a julgar pelas letras que dominam as paradas e os espaços na TV e no rádio, todos os conflitos da existência parecem girar em torno de traições, motéis e sofrência, é difícil imaginar que um dia a música popular brasileira ajudou os ouvintes a entenderem mais sobre a vida, o país, as coisas.
A música que toca o coração e o bolso das grandes plateias nos dias de hoje é vulgar e distante da realidade e dos sentimentos complexos. Não porque essas músicas falem do dia a dia de gente comum, mas porque não saem do chão – não transcendem os sentimentos simples e muito menos os complexos. Compositores de verdade, os que conseguem transformar sofrência em sentimento e vida real em matéria-prima poética, voam – e carregam as pessoas comuns nas suas asas.
Viva Chico Buarque.
Ouça Tua Cantiga:
Tua Cantiga
Quando te der saudade de mim
Quando tua garganta apertar
Basta dar um suspiro
Que eu vou ligeiro
Te consolar
Se o teu vigia se alvoroçar
E estrada afora te conduzir
Basta soprar meu nome
Com teu perfume
Pra me atrair
Se as tuas noites não têm mais fim
Se um desalmado te faz chorar
Deixa cair um lenço
Que eu te alcanço
Em qualquer lugar
Quando teu coração suplicar
Ou quando teu capricho exigir
Largo mulher e filhos
E de joelhos
Vou te seguir
Na nossa casa
Serás rainha
Serás cruel, talvez
Vais fazer manha
Me aperrear
E eu, sempre mais feliz
Silentemente
Vou te deitar
Na cama que arrumei
Pisando em plumas
Toda manhã
Eu te despertarei
Quando te der saudade de mim
Quando tua garganta apertar
Basta dar um suspiro
Que eu vou ligeiro
Te consolar
Se o teu vigia se alvoroçar
E estrada afora te conduzir
Basta soprar meu nome
Com teu perfume
Pra me atrair
Entre suspiros
Pode outro nome
Dos lábios te escapar
Terei ciúme
Até de mim
No espelho a te abraçar
Mas teu amante
Sempre serei
Mais do que hoje sou
Ou estas rimas
Não escrevi
Nem ninguém nunca amou
Se as tuas noites não têm mais fim
Se um desalmado te faz chorar
Deixa cair um lenço
Que eu te alcanço
Em qualquer lugar
E quando o nosso tempo passar
Quando eu não estiver mais aqui
Lembra-te, minha nega
Desta cantiga
Que fiz pra ti