Enquanto se prepara para o lançamento do álbum Campos Neutrais, de sexta-feira a domingo próximos no Theatro São Pedro, em Satolep Vitor Ramil está concentrado numa tarefa que lhe dá prazer especial: encerar e lustrar alguns móveis construídos por seu avô nos anos 1950.
– Considero isto um ensaio para o show – brinca ele na conversa por e-mail.
Se alcançar a perfeição dos entalhes em madeira de lei feitos pelo patriarca, o disco e o show têm tudo para marcar o ápice da carreira do compositor. Quando comentava com amigos sobre as mixagens que o engenheiro de som Moogie Canazio ia fazendo em Los Angeles, Vitor, o mais severo crítico de si mesmo, dizia ser este seu melhor trabalho. Mas e onde ficariam Ramilonga, Tambong, délibáb, Foi no Mês que Vem? Aí você ouve o disco, de produção impecável desde a capa, e não tem como não concordar com ele.
Já na primeira faixa, a própria Campos Neutrais, o ouvinte é capturado pelo arranjo de sopros que não se parece com nada feito antes, algo como relâmpagos sonoros abrindo clareiras na canção – que tem um fugidio espírito de milonga e cuja letra é uma representação metafórica sem ligação objetiva com esse episódio da história do Rio Grande do Sul (que pode ser conhecido na Wikipedia). Assim como os brilhantes violões de Vitor, os metais estão em todas as faixas. Vagner Cunha (arranjos) e o Quinteto Porto Alegre de Elieser Fernandes Ribeiro (trompete), Tiago Linck (trompete), Nadabe Tomás (trompa), José Milton Vieira (trombone) e Wilthon Matos (tuba) atuam como coautores. São, como diz Vitor, "um assombro". Outro coautor é o argentino Santiago Vazquez, que há muito colabora com ele nas percussões e efeitos.
Satolep Fields Forever, a seguir, nova declaração de amor a seu chão, também sem ser milonga tem a alma dela, assim como Labirinto ("Sou viajante de um caminho extinto", diz a letra), parceria como Zeca Baleiro, e Angel Station, letra em inglês e melodia de atmosfera beatle. As outras parcerias têm a poeta pelotense Angélica Freitas na desafiadora Stradivarius; Chico César, melodia e voz em Olho d'Água, Água d'Olho, a mais marcada ritmicamente; o poeta paraense Joãozinho Gomes, em Contraposto, letra feito desafios ("O tempo apaga, eu Nero/ O Demo gosta, eu Cristo/ O muro isola, eu pulo..."), e o poeta português António Botto, no quase-samba Se Eu Fosse Alguém, cantado lindamente a capela por Gutcha Ramil. A canção de que Vitor mais gosta é Isabel, um olhar cheio de imagens e admiração para sua filha.
A família tem um momento alto ainda em Ana, versão para Sara, de Bob Dylan (do álbum Desire, 1976). Mãe dos filhos de Vitor, Ana deve ter se emocionado com esta funda declaração de amor. A segunda versão traz o compositor Xöel Lopez, da Galícia (origem do avô dos Ramil), em Terra/Tierra, música ensolarada que abre espaço na essência melancólica de Vitor, também rompida em Lado Montanha Lado Mar, composta quando ele e Ana viveram em Barcelona. A última faixa, Hermenegildo, seca, com a trompa delineando sensações em clima sinfônico, sublinha os Campos Neutrais. Mas a música que talvez mais marcará o álbum é Palavra Desordem, uma alegoria crispada sobre o Brasil de hoje, com as guitarras de Felipe Zancanaro reforçando os metais nervosos, sinfônicos. Vitor relativiza as intenções da letra:
– Parece uma convocação coletiva mas é uma convocação para mim mesmo. Tem esse apelo de chamada geral, mas é exigência de revolução estética minha, uma chamada ao desassossego individual.
O show, com as participações do Quinteto Porto Alegre, Santiago Vazquez, Facundo Guevara (percussionista argentino), Gutcha Ramil e Felipe Zancanaro, reproduz literalmente o disco.
- CAMPOS NEUTRAIS
- De Vitor Ramil
- Satolep Music. O CD custa R$ 35.
- O songbook (com partituras feitas por Fabrício Gambogi), R$ 45. Nas lojas e em vitorramil.com.br.
- Disponíveis nas plataformas digitais.
- Shows nos dias 20, 21 (às 21h) e 22 (às 18h), no Theatro São Pedro. Ingressos de R$ 30 a R$ 120. Mais informações pelo fone 3227-5100.
Confira a letra da música "PALAVRA DESORDEM":
Queimem os navios / Pisem cada vértebra do chão/ Soquem o vazio / Soltem o veneno e o palavrão / Desafiem cada manhã / Ignorem noites de frio
Chamem por Rimbaud / Mandem o destino começar / Rimem com furor / Mudem cada coisa de lugar / Toquem sinos, batam tambores / Emudeçam feras e hinos
Façam a revolução / Rompam, desarrumem, desacatem / Zombem de Bonaparte / Desafinem, descompassem / Toda valsa sem arte / Façam troça, achem graça / Riam no desenlace / Sem miséria, sem trapaça / Lancem tudo pro ar
Rompam os varais / Ergam barricadas nos jardins / Gritem com o olhar / Salvem suas peles por um triz / Inaugurem formas de ser / Sejam um começo sem fim / Façam a revolução
Movam, desalinhem, desencaixem
Mostrem do todo a parte
Alegria e desastre
Juntos num estandarte / Ponham festa, ponham fausto / Ponham fé no que valha / Ponham febre, ponham alma / Ponham fogo no mar
Queimem os navios