Uma das maiores atrizes brasileiras segue contribuindo com a cultura no país à beira de seus 90 anos. Além de comemorar o aniversário no dia 16 de outubro, Fernanda Montenegro também celebra 70 anos de carreira dedicada ao teatro, cinema e televisão.
O marco vem acompanhado do lançamento nesta sexta-feira (20) de sua autobiografia, o livro de memórias Prólogo, Ato, Epílogo, escrito em colaboração com a jornalista Marta Góes. A obra é um compilado de experiências pessoais e profissionais, retomando o início de sua aproximação com o teatro. Uma das passagens retrata a primeira vez que subiu ao palco, aos oito anos, em uma pequena igreja de um bairro suburbano no Rio, onde apresentou uma peça ao lado de um primo.
Sua estreia, informal e despretensiosa, a fez sentir como se levitasse. Isso porque a iluminação separava a plateia do palco, dando destaque aos atores e escurecendo o lugar do público.
"Como lá era escuro e aqui era iluminado, eu senti que estava acima do chão", relembra Fernanda em um trecho do livro.
Na autobiografia, ela retoma uma experiência que poucos conhecem: seus primeiros passos incluem uma passagem pelo rádio. Começou aos 15 anos no Radioteatro da Mocidade, em que se apresentava com seu nome verdadeiro, Arlette Pinheiro. Somente depois de cinco anos atuando como radioatriz decidiu escolher outro nome. Fernanda, conta ela, lhe soou como um romance do século 19. E Montenegro foi inspirado em um médico da família que curava todo mundo.
Estimulada pela avó a entrar para o teatro, Fernanda teve como grandes mestres a atriz francesa Henriette Morineau, com quem aprendeu "disciplina absoluta", conforme conta no livro, e o diretor italiano Gianni Ratto, que a auxiliou na construção de personagens, desafio que toma para si como uma "busca infindável".
"Troquei de pele durante 70 anos. Nunca tive meu próprio rosto nem postura". À constatação, adiciona um versa da escritora Cecília Meirelles: "Em que espelho ficou perdida a minha face?", questiona-se.
Fernanda não fala abertamente sobre política, mas, no livro, explica a importância da consolidação das leis trabalhistas no governo de Getúlio Vargas para a sua família, que veio do subúrbio. Também recorda posicionamentos que assumiu quando já era uma artista consolidada, como a decisão de Fernando Collor de extinguir o Ministério da Cultura. "Sempre sobra cobrança sórdida, hostil, sobre os atores", reflete.
Em entrevista ao jornal Folha de S. Paulo, compara o que houve no passado com o governo de Jair Bolsonaro.
— Agora é pior. Antes era só político, agora é também moral, por razões de comportamento. "Teatro é espaço do demônio" — diz ela, imitando seus detratores.
Provocativa mesmo na velhice, Fernanda acaba de estampar a capa da revista literária Quatro Cinco Um trajada em um longo vestido preto e amarrada por cordas. Em sua frente, um monte de livros. "Quando acenderem as fogueiras, quero estar ao lado das bruxas", diz ela à publicação.