Em 1944, Ênio de Freitas e Castro, membro da Associação Rio-Grandense de Música, enviou uma carta a Luiz Heitor Corrêa de Azevedo, do Centro de Pesquisas Folclóricas ligado ao governo gaúcho, em que afirmava: "Temos, porém, de orientar mais os trabalhos para o que for genuinamente rio-grandense. Essa questão dos negros talvez não esteja nesse caso. Segundo me declarou o secretário da Educação, o seu ideal é a defesa da cultura 'luso brasileira'. E por estar a pesquisa de folclore proposta dentro desse ideal é que ele aceitou. Enfim, depois de iniciados os trabalhos, poderemos ver o que mais convém".
As colocações acima apontam para necessários questionamentos acerca do silêncio sobre a presença negra na cultura sul-rio-grandense nos últimos três séculos.
No século 20, essa perspectiva vai ter o fator decisivo da imposição do folclore oficial em que matrizes culturais quilombolas não são reconhecidas como formadoras de uma gauchidade normatizada a partir de 1948. É interessante notar que, no mesmo ano em que a carta foi redigida, Ari Oro – posteriormente citando Raul Krebs – registrava a existência de 63 casas de religião de matriz africana em atividade na cidade de Porto Alegre. Hoje, estima-se que existam mais de 2 mil terreiros na Capital.
À luz dessa perspectiva histórica, é preciso trazer à tona a vida e a obra de Walter Calixto Ferreira Borel, o principal babalorixá do Batuque de Nação Oyó Idjexá no Rio Grande do Sul e um dos grandes representantes das religiões afrobrasileiras e da cultura negra no Estado. Carnavalesco, escritor e pesquisador, Mestre Borel foi o guardião da memória da Nação Oyó Idjexá ao longo do século 20. Considerado o mais antigo ogã nilú (alabê ou tamboreiro de batuque) e também um dos principais responsáveis pela preservação da cultura e da história de parte dos povos africanos em Porto Alegre, Borel faleceu em 2011, aos 102 anos.
Seu legado cultural e musical – desconhecido em grande parte – constitui um importante prisma para a reflexão política, por sua significativa contribuição à sociedade. É preciso entendê-lo em sua importância política, abarcando religião e Carnaval, já que é poesia ancestral narrando em batidas e melodias a construção do Rio Grande do Sul, através da mão de obra escravizada negra no período colonial.
É preciso refletir sobre a surpresa – que ainda se observa na maior parte do país – diante da afirmação de que existem negros no extremo sul do Brasil e que isso se materializa numa cultura forte, abarcando religiosidade, gastronomia, dança, contribuições linguísticas, música, poesia, ativismo político e, consequentemente, canção.
É hora ainda de reconhecer nos quartos-de-santos e aprender nos cânticos dos orixás formas históricas de resistência. Sagrado segredo, constituído no Areal da Baronesa ou Colônia Africana, paradoxalmente branqueada ao ponto de hoje ser chamada Rio Branco. Ainda agora, Ilhota é Azenha. A Restinga onde Borel firmou assentamento e que ontem era poeira ao longe, hoje é Barro Vermelho, seguindo assim distante da cidade que reinventa formas de marginalizar a população negra. Os quilombos nos campos da várzea, depois Redenção, hoje são Parque Farroupilha.
Uma forma de compreender a riqueza da cultura negra no Estado é percorrer caminhos percussivos típicos da região: batuque, maçambique, candombe afrogaúcho, samba cabobu, quicumbi e ensaios de pagamento de promessas, dentre outras musicalidades quilombolas, ainda vivas no século 21.
É preciso refletir sobre a surpresa diante da afirmação de que existem negros no extremo sul do Brasil e que isso se materializa numa cultura forte.
A potencialidade concreta de uma matriz percussiva negra sul-riograndense – célula de um organismo que se recria sem cessar no concerto da humanidade – se faz presente nessa encruzilhada. Ou ainda, no extremo sul dos africanismos do novo mundo, os tambores e cantos de Borel falam da existência de um Rio Grande do Sul negro, rePERCUTINDO conTRADIÇÃO junto ao eurocentrismo que se pretendeu hegemônico.
No século 21, tambor ilú na mão de negro segue sendo religião, e o sopapo é mão aberta que bate num tambor gigante. Inhã tem duas pontas, pois céu e terra se harmonizam quando o alabê empresta suas mãos. E o que fica bem no meio desses mundos é o tambor – alma nos dedos – exigindo reflexão: "Temos de orientar mais os trabalhos para o que for genuinamente rio-grandense".
Oriki Ourobah!*
*Oríkì (do yorùbá, “orí” = cabeça e “kì” = saudar) são versos, frases ou poemas formados para saudar o orixá, referindo-se a sua origem, suas qualidades e sua ancestralidade. Os Oríkì mostram grandes feitos realizados pelo orixá ou por grandes líderes, caçadores, governantes, sacerdotes, reis, rainhas, príncipes e todas as pessoas que, em um passado distante ou recente, fizeram algo de importante para uma comunidade ou para o seu povo.
SERVIÇO
No dia 25, um show virtual marcará o lançamento do CD O Berço do Batuque no RS: Mestre Borel – Toques e Cantos da Nação Oyó-Idjexá’do Alabê Ôni. A apresentação será transmitida ao vivo, às 20h, diretamente do Coletivo Catarse, no canal do projeto no YouTube (acesse em bit.ly/bercodobatuque).
Outros endereços online do projeto O Berço do Batuque no RS: facebook.com/alabeoniface e projetobercodobatuquers.wordpress.com. Conheça também o perfil no Instagram: @Alabê Ôni.