A cada novo trabalho, Richard Serraria se supera. E não é pouca coisa o que já fez o compositor, cantor, poeta, líder da banda Bataclã FC e, desde julho, doutor em Literatura Brasileira pela UFRGS. O que chega agora é um disco-livro-objeto chamado Mais Tambor Menos Motor, em que ele foca o olhar sobre a cultura negra gaúcha tendo como ponto de partida o sopapo, grande tambor que é referência dos escravos da zona sul do Estado. Indissociável do espírito do projeto, a embalagem é uma obra da chamada arte cartonera, feita manualmente, com papelão recolhido nas ruas. O formato escolhido por Serraria e desenvolvido por Leandro Silva é o de uma caixa de fósforos onde estão o disco, o livro de 32 páginas (com texto sobre a arte cartonera, desenhos mostrando como construir um sopapo, letras/poemas e a ficha técnica), 10 cartões-postais com fotos também artesanais e alguns palitos de fósforo para iluminar os caminhos.
Palavra Gota de Sereno, a primeira faixa do CD, parceria de Serraria e Ângelo Primon, é um rap mastigado com passagens de canção, abrindo o roteiro musical e poético de alto nível, compartilhado pelos cantores Tonho Crocco, Marcelo Delacroix, Zé Caradípia, Zumbira Silva e Andréa Cavalheiro, mais Primon (guitarra, violão), Lucas Kinoshita (sopapo, bateria, percussões), Dany Lopez (teclado), Nario Recoba (bandoneón), Diego Banega (baixo), Duke Jay (scratches) e os percussionistas Mimmo Ferreira, Bruno Coelho e Sandro Gravador. Um timaço! Ao ritmo do ijexá, cheia de camadas, Só Se For Só, sobre a pressa, menciona os bairros Partenon e Lomba do Sabão – identificações de espaços porto-alegrenses são caras a Serraria. O bandoneón dá um ar platino a Oceanoserpentear, samba leve de linda melodia.
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Com jeito de hit radiofônico, Um Bonde Chamado Desejo mescla reggae, samba e rap. Outra menção literária, a funkeada Livro do Desassossego (parceria com Zumbira) tem arranjo especialmente feliz em um disco de grandes arranjos. Parceria com Zé Caradípia, Nega Ciclone é um candombe alegre e dançante. Fado Para Preta Flor é um fado mesmo, com passagem de samba. Outra parceria com Primon, Saudade Só Existe em Duas Línguas parece um hino. E a política e forte Cabelo Pixaim fecha o disco: "Quem sabe da força da raça revolta chibata o negro na mata ganga zumba mestre sala dos palmares pixaim". No todo, Mais Tambor Menos Motor deixou em mim uma indefinível impressão nostálgica. É o quarto álbum individual de Serraria. Se no anterior, Pampa Esquema Novo, ele já arrasara, agora de fato se ultrapassa, firmando posição entre os maiores artistas não apenas gaúchos como brasileiros.
MAIS TAMBOR MENOS MOTOR
De Richard Serraria. Independente. Caixa-objeto com disco, livro e postais,R$ 40. Pedidos e informações para serraria@gmail.com. Distribuição digital Tratore.
Agora só, e bem acompanhado
Tiago Ferraz é meio mutante. Com a banda Estado das Coisas, criada em 1993 na cidade de Santa Rosa, ele gravou quatro discos mesclando rock, reggae e pop. À frente da mesma banda, chegou ao grande sucesso eletrificando clássicos da música regional gaúcha no projeto Rock de Galpão – o primeiro disco, em 2007, foi feito em parceria com Neto Fagundes, vindo depois dois CDs/DVDs ao vivo, dirigidos por Hique Gomez. E a coisa vai longe: na última terça-feira, o Rock de Galpão chegou aos palcos de Buenos Aires. Mas nesse tempo Tiago foi engavetando canções que não cabiam nem na banda nem no projeto gauchesco. Reunidas, 13 delas estão no recém lançado primeiro álbum individual, Famoso Quem?, terceira via a mostrar que, se quiser, ele pode desenvolver ainda uma carreira solo bem sucedida.
Uma das faixas, Imprecisão (parceria com Hique), com levada folk e bela letra, já é sucesso e está também em um vídeo ao lado da uruguaia Ana Prada. Na verdade, todo o disco poderia almejar o rádio, são boas histórias, melodias pegadoras, variedade de ritmos, firme execução instrumental; e a voz de Tiago, com timbre semelhante ao de Zeca Baleiro, completa o conjunto para um resultado bem bacana. Entre muitos climas pops, tem ritmo gaúcho na estradeira Giruá, blues em Danço por Dançar (a mais ruidosa), bossa nova em Sossego, samba-rock em Um Dia Após o Outro, e até uma valsa instrumental por dois violões, Passeo. A banda básica é Tiago (guitarras, violões, ukulelê), Gustavo Viegas (baixo), David Fontoura (synth) e Dani Vargas. Alguns convidados: Lica Tito, Marcelo Corsetti, Rafa Schuller e Paulinho Cardoso.
FAMOSO QUEM?
De Tiago Ferraz. Independente, R$ 20 no Facebook de Tiago.
Mais discos
SERRA DOS ÓRGÃOS
De Domênico Lancellotti
Ele já não precisa de apresentação. Mas este terceiro álbum é diferente de tudo o que já fez. O disco começou em 2012, parceria em Londres com o irlandês Sean O'Hagan (Stereolab, High Llamas), seguiu com um recolhimento na Serra dos Órgãos, chegou ao fim em 2016 em estúdios cariocas.
E há muito eu não ouvia algo tão difícil de descrever. Tirando as faixas arranjadas por O'Hagan com violinos, cello, uma certa unidade e atmosfera de música clássica, o que me chega é música popular com ares experimentais e minimalismo de esfera zen reforçado por letras etéreas sobre a Natureza – mas de audição natural para ouvidos mais exigentes. A voz neutra de Domênico sublinha isso. Uma das faixas que mais me bateu é a hipnótica Shanti Luz, instrumental. Participações de Moreno Veloso, Kassin, Nina Miranda, Pedro Sá e mais uns 20 músicos. Duas frases fecham o encarte: "Fora Temer" e "deus seja loucura". LAB 344, CD. R$ 29,90. Disponível nas plataformas digitais.
DOIS
De Mareike
Uma nova geração de cantores, compositores e instrumentistas faz de Blumenau uma das cidades musicalmente mais agitadas de Santa Catarina. A cantora Mareike é destaque desse cenário não apenas pela voz quente e expressiva, como também pelo trabalho de educadora musical. Como antecipa o título, Dois é seu segundo álbum, MPB pop com derivações de bolero, samba, jazz, rumba. As ótimas letras, todas de seu marido, o escritor e psiquiatra Gregory Haertel (com vários parceiros), trazem um olhar forte de mulher. Na primeira faixa, Frita, a personagem conta em detalhes o que fez para conquistar um cara. Aqui e ali o clima fica mais radical, mas a iniciativa será sempre dela. Na última, De Braços Dados, o cenário muda... Para emoldurar cada emoção/tensão, o diretor musical (e tecladista) Junior Marques criou arranjos bem diferentes. Mareike e Gregory merecem atenção. CD R$ 26 em facebook.com/mareikeoficial. Disponível nas plataformas digitais.
QUEM DISSE
De Victor Camarote
O brega se renova em Recife. Apadrinhado no início da carreira pelo conterrâneo Reginaldo Rossi (1944 –2013), o cantor e compositor Victor Camarote chega ao primeiro disco. Nele aparecem também influências de Odair José e Roberto Carlos, com muito tempero abolerado. Na maioria das letras, como em Falsa Esperança e em Interfone, desfilam paixões e amores desiludidos, mas há espaço para o comentário social na lambada Jambu ("Quanta loucura que vejo/ tanta miséria que há") e o humor, no samba-de-gafieira Alto do Céu de Havana. Pelo teor de alguns convidados, como Pupillo, Dengue (ambos da Nação Zumbi), Regis Damasceno (Cidadão Instigado), Zé Manoel e o maestro Spok, se pode ver que há um lado avesso no brega de Camarote. Ele tem uma bela voz e o disco é muito bem feito, com músicos competentes. CD R$ 20 na loja virtual Passadisco. Disponível nas plataformas digitais.