Último ano de Vanderlei Cappellari à frente da Empresa Pública de Transporte e Circulação (EPTC), 2016 foi marcado por episódios traumáticos. A chegada a Porto Alegre dos aplicativos de transporte de passageiros, no fim de 2015, instaurou um clima de tensão que perduraria por meses, incluindo agressões a motoristas e onda de protestos de taxistas revoltados com o novo serviço.
— Foi a minha maior encrenca. Havia pressões de todos os lados, legislação que proibia, os taxistas fizeram muitas manifestações, na frente da casa do (então prefeito José) Fortunati, na frente da minha casa. Um processo de muito conflito — recorda o gestor, que comandou o órgão de 2010 até o fim daquele ano.
Sem uma lei específica que regulasse a novidade — que chegou a ser encarada como transporte irregular de passageiros —, o poder público viu-se diante de um impasse: ao mesmo tempo em que não conseguia barrar a expansão dos apps, tinha poucos argumentos a favor do serviço de táxi, que, somente em 2015, acumulou mais de 3,6 mil reclamações de usuários insatisfeitos. Problemas como desvio de rotas e veículos em más condições eram recorrentes. Houve ainda casos de motoristas que violaram o GPS — que começou a ser instalado na frota em 2015 — e outros que foram presos por envolvimento com o tráfico de drogas.
A concorrência chegou prometendo segurança, preços mais baixos e carros com ar condicionado, e trouxe consequências inevitáveis. Já nos primeiros meses, os taxistas reclamavam da perda de clientela. A reação por vezes agressiva à atuação de apps como Uber, 99 e Cabify maculava ainda mais a imagem da categoria.
Em virtude da relação desgastada entre taxistas e usuários, os reflexos do ingresso das plataformas em Porto Alegre foram mais intensos do que em outros locais. Segundo a estimativa da categoria, a queda de viagens ficou entre 50% e 60%. Um estudo do Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade), do governo federal, indicou que a perda média de corridas do táxi nas capitais com a chegada dos apps foi de 37%. A pesquisa foi realizada em 590 municípios de todo o Brasil entre 2014 e 2016.
— Temos cem anos, não podemos competir em termos de reclamações com quem começou do zero. É claro que tinha um passivo desfavorável. Era verdadeiro o que diziam sobre nós: tínhamos de melhorar, melhorar nossos índices de reclamações — diz o presidente do Sintáxi, Luiz Nozari.
Em reação ao impacto negativo das novas plataformas, cuja regulamentação na Capital foi barrada em parte pela Justiça em 2019, uma série de medidas adotadas pelo Executivo forçou a qualificação do serviço de táxi nos últimos anos. Uma legislação adotada em junho de 2018 obrigou os condutores a apresentarem exame toxicológico a cada 12 meses, previu a aceitação de cartões de débito e crédito e permitiu descontos, entre outros pontos. As normas mais rígidas fizeram o número de motoristas cadastrados despencar 37% na Capital — atualmente são cerca de 3,8 mil permissionários e 6,3 mil condutores. Nos últimos cinco anos, 128 permissões foram devolvidas à prefeitura.
Segundo a categoria, até agora, o saldo é positivo. O sindicato avalia que a perda de passageiros deve se aproximar dos 30% em março. As reclamações sobre o serviço, segundo a EPTC, caíram de 3.658, em 2015, para 1.130, no ano passado.
A recuperação, conforme o economista-chefe do Cade, Guilherme Mendes Resende, acompanha a tendência de outras cidades:
— Observamos que, na entrada, os apps causam queda grande nas corridas de táxi. É um setor que sofre muito, mas, com o passar do tempo, tenta se adaptar à dinâmica do mercado e consegue recuperar corridas. Isso é ótimo para o consumidor.
Permissionários no volante
Além de um maior rigor nas exigências, a prefeitura atendeu a algumas reivindicações antigas da categoria. Liberou circulação dos táxis em faixas exclusivas para ônibus. No fim de 2019, um decreto permitiu que o modelo de transporte deixe de ser exclusivamente de permissões e passe a aceitar autorizações (instrumento que permite a transferência do serviço a terceiro).
Os taxistas também fizeram movimentos espontâneos por melhorias. Buscando se aproximar de um nicho de usuários mais conectados, o Sintáxi criou um aplicativo que dá até 30% de desconto em viagens.
As mudanças têm sido percebidas pelos passageiros, e já tiveram sucesso no resgate de "desertores". Foi o caso da advogada Tania Molina Camargo. Moradora do Menino Deus, ela tornou-se usuária dos apps de transporte assim que chegaram. Mas, depois de decepções com motoristas "perdidos" e de ter observado o que avalia como uma decadência do serviço, resolveu voltar a utilizar o táxi para os deslocamentos diários entre casa e trabalho. Surpreendeu-se positivamente.
— Quando chegou o app, os carros eram limpos, cheirosos. Aí apareceram os problemas e comecei a me preocupar com a segurança. Não saio com meu carro para evitar assaltos, o que adianta sair com outro igual? Agora sempre chamo táxi. Melhorou muito, pego carros bons, motoristas gentis — conta.
Parte da qualificação pode estar relacionada a uma mudança no perfil dos condutores. Representantes da categoria dizem que, com a queda no movimento e a diminuição no número de taxistas, permissionários que antes tinham motoristas retornaram ao volante. Atender bem passou a ser questão de sobrevivência no mercado.
Permissionário há mais de três décadas, Vitor Boero, 62 anos, voltou às ruas em janeiro de 2019. Estava parado havia quatro anos quando seu motorista resolveu deixar o serviço. Os rendimentos não chegavam à metade dos "bons tempos".
— Antigamente, me deixavam R$ 100, R$ 120 por dia. O último motorista que tive ficou menos de um ano e me dava R$ 50, R$ 60. Agora o carro fica comigo. Cuido melhor, e hoje ganho mais do que ele me dava — conta.
Agora, trabalha cerca de sete horas por dia, de manhã e à noite. A retomada da atividade o estimulou a buscar mais conforto. Em janeiro, investiu R$ 70 mil para trocar o carro antigo, modelo 2015, por um veículo zero-quilômetro, com bancos em couro, sensor de frenagem e câmera, entre outras modernidades.
A concorrência dos apps não apenas estimulou a qualificação dos taxistas, como alterou a dinâmica do trabalho. Hoje, apenas um quarto dos veículos, segundo o Sintáxi, circula à noite. Por outro lado, momentos em que era quase impossível encontrar táxis, como nos dias de chuva, tornaram-se o ponto alto em razão da tarifa dinâmica de plataformas de aplicativos, que elevam o valor das viagens quando a procura é maior do que a oferta de carros. Por ter apenas dois tipos de tarifa (bandeira 1 e 2, com horários preestabelecidos), o serviço público pode ser mais econômico.
Flexibilização e adesão à tecnologia
O que hoje torna o táxi atrativo em situações específicas também é visto por especialistas como entrave a sua reação. A rigidez dos valores praticados está entre os fatores que mantêm o preço do serviço pouco competitivo. Na Capital, viagens realizadas dessa forma podem custar o dobro do aplicativo de transporte. Mesmo com o desconto de 30% fornecido pelo app do Sintáxi, costumam ser mais caras.
Para Cristiano Oliveira, professor de economia da Universidade Federal do Rio Grande (Furg) e estudioso do assunto, para que o sistema faça frente aos apps, é importante pensar em formas de flexibilizar a regulação, permitindo, por exemplo, que os valores sejam adaptados à demanda.
— Se alguém vai matar o táxi, se um dia isso ocorrer, vai ser o poder público. A regulação estatal engessa os prestadores de serviço, porque não dá margem para um preço flexível, não premia os bons motoristas — avalia.
Medidas nesse sentido foram adotadas em municípios como Curitiba, onde, no ano passado, a prefeitura tornou opcional a cobrança da bandeirada em viagens curtas, e criou um app que permite diferentes tarifas e modelos de cobrança. Na capital gaúcha, o poder público pretende lançar ainda no primeiro semestre licitação para contratar uma empresa que deverá criar um app específico para o serviço. Até agora, apenas 10% dos taxistas aderiram à plataforma do Sintáxi, que cobra taxa simbólica de R$ 30 mensais e tem interface mais simples do que a dos concorrentes — exige, por exemplo, que o usuário forneça o endereço completo do destino ao solicitar a viagem.
Segundo a Associação dos Permissionários Autônomos de Táxi de Porto Alegre (Aspertáxi), hoje mais da metade dos taxistas utiliza algum tipo de aplicativo (além do Sintáxi, da 99 Pop e da Cabify, há plataformas voltadas ao atendimento corporativo). O presidente da Aspertáxi, Walter Barcellos, admite que o táxi corre atrás, mas diz que o serviço não está entre os mais prejudicados pelos apps: por terem custos fixos, ônibus e lotações, na sua avaliação, estariam passando pelo maior baque:
— O táxi tem a vantagem de não precisar ficar rodando. Acredito que ainda tenha oxigênio para disputar espaço dentro de Porto Alegre. Foi ao fundo do poço, houve um desespero, mas agora está reagindo. Está entendendo que tem de dar a mão ao usuário.
Para tentar equilibrar o jogo, a prefeitura quer criar uma taxa para os aplicativos de transporte de passageiros — cidades como Curitiba, Fortaleza, Brasília e São Paulo já tributam os aplicativos de diferentes formas. O projeto tramita na Câmara.
O esforço para qualificar e resgatar a confiança no serviço público é visto como salutar por especialistas em mobilidade urbana ouvidos pela reportagem. Eles destacam que o táxi é importante por permitir ao poder público ter controle sobre uma parte da frota de veículos individuais em circulação — somente na Capital, estima-se que os apps tenham injetado milhares de carros a mais no trânsito.
— Apps aumentam o congestionamento, e, por sua vez, o tempo de viagem do transporte público. E o congestionamento aumenta o custo das viagens para todos. Tem de haver um controle. Cobrar dos apps é mais do que justo — defende o presidente da Associação Nacional dos Transportes Públicos (ANTP), Ailton Brasiliense Pires.
Um estudo recente do Massachusetts Institute of Technology (MIT), dos EUA, indica, ainda, que os táxis podem ter um papel relevante no planejamento das cidades. De acordo com a pesquisa, a instalação de sensores nos veículos pode auxiliar no monitoramento dos níveis de poluição sonora e do ar, além do estado de pistas e do trânsito.