Único produtor de chips e semicondutores na América Latina, o Centro Nacional de Tecnologia Eletrônica Avançada S.A. (Ceitec), localizado no bairro Agronomia, em Porto Alegre, passa por processo de reversão da extinção da empresa, que havia sido determinada durante o governo de Jair Bolsonaro.
Atual presidente, Luiz Inácio Lula da Silva decidiu retomar a fabricação dos componentes tecnológicos, como dispositivos de identificação e rastreio de animais e veículos, dando sequência à linha de produção, atualmente paralisada. Se tudo der certo e todos os trâmites burocráticos forem vencidos, o faturamento tem possibilidade de ser retomado a partir do próximo ano.
Na quinta-feira (23), a reportagem de GZH teve acesso às dependências internas da Ceitec (como é chamada, com a contração no feminino) e acompanhou por cerca de duas horas a realidade do local. A impressão que se tem ao visitar o complexo de aproximadamente 15 mil metros quadrados de área construída, sendo 10 mil metros quadrados destinados à seção fabril e 5 mil para setores administrativos, é de que os trabalhos poderiam recomeçar imediatamente.
No momento, os funcionários da Ceitec estão em compasso de espera. Tudo depende da apresentação oficial do novo liquidante, já escolhido em assembleia geral extraordinária (leia mais abaixo), e das decisões do grupo de trabalho criado pela Presidência da República.
— Aqui, temos prejuízo de R$ 3,3 milhões por mês só para se fazer a manutenção e pagamento de pessoal — afirma o liquidante que está de saída, o oficial da reserva da Marinha Abílio Eustáquio de Andrade Neto.
O que está paralisado é, de fato, a produção. Todos os equipamentos permanecem ligados 24 horas por dia durante toda a semana. A reportagem atestou, inclusive, a presença de materiais armazenados utilizados como insumos para a produção.
— As máquinas ficam ligadas para não perder valor de mercado. Assim, mantemos valor agregado a uma possível venda. Se desligar, se perde tudo — diz Neto, que atuou no passado nas partes financeira e administrativa da Marinha.
Segundo o liquidante, a empresa possuía, antes de começar o processo de extinção, 180 funcionários. Agora, mantém 75. O dado difere do informado pela Associação dos Colaboradores da Ceitec, que alega serem 67 exercendo funções de mantenedores de processos administrativos, de equipamentos e de limpeza.
— Infelizmente, não podemos falar quando vamos voltar a vender e faturar, porque isso não nos compete. Perdemos ótimas pessoas da produção e da área de pesquisa — observa Eduardo Zenzen, assessor responsável pela parte fabril da Ceitec, que acompanhava a reportagem de GZH.
Outros dois assessores, Eric Fabris e Erich Pettersen, também participaram da entrevista junto ao liquidante. Zenzen explicou como funciona a Sala Limpa, onde o ambiente é totalmente controlado e só foi permitido se aproximar para fazer imagens por meio de uma janela.
No local, a temperatura fica em torno dos 21°C e a umidade relativa do ar é de 50%. Trata-se de um ambiente em que a concentração de partículas em suspensão no ar é controlada com muita atenção. A função do espaço é minimizar os efeitos da introdução, geração e retenção de partículas no seu interior.
— A Sala Limpa é o coração da parte fabril — resume Zenzen.
Na Sala de Controle Operacional, onde fica o centro nervoso da empresa e a vigilância funciona 24 horas por dia, dois profissionais ficam de olho em seis telas, por meio das quais acompanham os aspectos relacionados à infraestrutura da Ceitec.
Salas de produção de água ultraprocessada e que geram ar comprimido e vácuo também foram visitadas. Além dessas, a sala dos chillers, onde ficam os resfriadores de água, e a subfábrica, localizada ao lado da oficina de implantação iônica, puderam ser vistas de perto.
Em uma área externa ficam situados os contêineres refrigerados, com componentes químicos, como solventes. Tratam-se de recipientes de armazenamento de insumos de matéria-prima para a produção dos dispositivos fabricados pela Ceitec. Ainda no pátio, é possível ver parte de uma construção, iniciada durante o processo de liquidação da empresa, para armazenamento temporário de resíduos.
— Este é o investimento de maior vulto para manter as condicionantes ambientais — revela Zenzen, estimando investimento de R$ 500 mil para se construir o espaço.
— É uma fábrica completa com volume de produção baixo. Trabalhamos por demanda — conclui Zenzen.
Associação espera pelos próximos passos do governo federal
A Associação dos Colaboradores da Ceitec acompanha de perto o cenário de incertezas e aguarda pelas definições do próximo liquidante e do grupo de trabalho criado pelo governo federal.
— Estamos sem insumos, porque o liquidante consumiu todos para a produção. Precisamos entrar em uma fila de espera de compra internacional — relata o presidente da associação, Silvio Luis Santos Júnior, salientando que a empresa poderia voltar a trabalhar assim que houver esses insumos e número adequado de profissionais em atividade.
Segundo conta, desde 2017 passaram 210 funcionários pela Ceitec. Ele afirma que 67 seguem na empresa exercendo funções de mantenedores de processos administrativos, de equipamentos e de limpeza. Apenas dois atuam na parte de pesquisa e de desenvolvimento. Ou seja, além dos insumos e de obtenção de capital, será necessário reforçar o quadro.
— Além disso, tivemos o nome da empresa queimado no mercado. Precisamos mostrar para o cliente, mesmo que ele queira comprar, que temos capacidade de entrega — pondera, dizendo que será necessário percorrer uma trilha para reconquistar os consumidores.
A Ceitec havia sido incluída pelo governo anterior no Programa de Parcerias e Investimentos (PPI) para ser privatizada, sendo que um decreto autorizou a sua liquidação há três anos. A alegação era de que a estatal não dava lucro e era ineficiente. O Tribunal de Contas da União (TCU) determinou a interrupção do processo em setembro de 2021. O julgamento ainda não foi concluído. Desde então, o futuro da Ceitec é objeto de especulações.
Presidência da República cria grupo de trabalho
A Presidência da República criou um grupo de trabalho para discutir a Ceitec, no dia 8 de fevereiro, quando decreto foi publicado no Diário Oficial da União (DOU).
A coordenação da equipe ficou sob responsabilidade do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação, pasta à qual a Ceitec está vinculada, e conta com as colaborações da Advocacia-Geral da União (AGU), da Casa Civil e dos ministérios da Fazenda, Gestão e Inovação e Desenvolvimento, Indústria Comércio e Serviços.
O grupo tem 120 dias de prazo, prorrogáveis por tempo determinado, para apresentar os resultados dos levantamentos e sugestões para definir os rumos da Ceitec, criada por lei em 2008.
Novos gestores, conselho fiscal e liquidante escolhidos
Uma assembleia geral extraordinária, realizada na sede da Ceitec no mesmo dia da publicação do decreto criando o grupo de trabalho, definiu a nova gestão da empresa pelo período dos próximos seis meses. O professor do Instituto de Matemática da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) Augusto Cesar Gadelha Vieira foi anunciado como novo liquidante. O escolhido assumirá no lugar do oficial da reserva da Marinha Abílio Eustáquio de Andrade Neto, indicado durante o governo Bolsonaro.
O docente aguarda questões burocráticas relacionadas à documentação para poder assumir sua função. A assembleia também elegeu o novo conselho fiscal para o semestre.
Posicionamentos
A reportagem questionou o Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI) sobre a situação e os próximos passos em relação à Ceitec. Confira, na íntegra, a nota enviada:
“O Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI) informa que a criação de um grupo de trabalho interministerial, constituído para estudar a reversão da liquidação da Ceitec, marca o início do processo de atualização da política nacional de semicondutores. A expectativa é que o GT conclua os estudos em 120 dias com a proposta de um novo arcabouço para a empresa, considerada estratégica para a agenda de reindustrialização do país. O MCTI informa ainda que, concluído o processo de cessão da Universidade Federal do Rio de Janeiro, o professor Augusto Cesar Gadelha Vieira tomará posse como liquidante.”
O governo estadual também se manifestou sobre a Ceitec. Veja o que diz a nota:
“O Governo do RS, por meio da Secretaria de Inovação, Ciência e Tecnologia (Sict), destaca que o desenvolvimento do segmento de semicondutores fez com que tenhamos um corpo técnico qualificado, o que ajudou na atração de empresas na área. Tecnologia e inovação são temas importantes. O governo do Estado e a Sict são favoráveis a tudo que atrair ou reter profissionais e que auxilie na expansão da cadeia de suprimentos desse setor em solo gaúcho, sem entrar no mérito de cada ação que cabe ao controlador da empresa.”
Trajetória da Ceitec
- 2000 — A Ceitec é fundada como entidade civil por meio de parcerias entre diferentes níveis de governo e colaboração da Motorola, que doou um conjunto de equipamentos.
- 2008 — Decreto presidencial cria a Ceitec SA como empresa 100% federal.
- 2009 — Inaugurados o prédio administrativo e o Design Center, no mês de março.
- 2010 — Inauguração da fábrica com Sala Limpa (ambiente controlado para produção) de quase 2 mil metros quadrados na Capital.
- 2011 — Acordo de transferência de tecnologia com a empresa alemã X-Fab para produção de circuitos integrados. Ceitec anuncia produção de chip utilizado para rastrear animais (chip do boi) em escala comercial.
- 2012 — Assina convênio com Casa da Moeda para desenvolvimento de novo chip do passaporte brasileiro.
- 2013 — Passa a oferecer ao mercado chip para uso de empresas que desenvolvem soluções para o Sistema Nacional de Identificação Automática de Veículos.
- 2018 — Chega a 100 milhões de unidades de chips produzidas.
- 2020 — Inclusão no Programa Nacional de Desestatização, no governo de Jair Bolsonaro.
- 2021 — Tribunal de Contas da União (TCU) suspende o processo de extinção da Ceitec. O tribunal considerou frágeis as justificativas para liquidar a empresa por sua “posição estratégica na produção nacional de semicondutores”. O TCU também solicitou ao governo informações sobre regularização do terreno onde se encontra a Ceitec e recursos necessários para serviços de descontaminação e desativação das instalações.
- 2023 — Já sob o governo Lula, a ministra de Ciência, Tecnologia e Inovação, Luciana Santos, comunica formalmente o Estado sobre decisão de reverter o processo de liquidação da Ceitec. Como o período de vigência da liquidação venceria em 10 de fevereiro, uma assembleia foi realizada em 8 de fevereiro, na sede da empresa, na Capital. Foram definidas a nova gestão da empresa pelo período dos próximos seis meses, o conselho fiscal e anunciado o nome do novo liquidante. O governo federal criou, no mesmo dia, um grupo de trabalho que terá 120 dias de prazo, prorrogáveis por tempo determinado, para apresentar os resultados dos levantamentos para definir o futuro da Ceitec.