Enquanto em muitas regiões do mundo, como Europa e Ásia, as fronteiras entre os países foram forjadas na base da baioneta e do canhão, o Brasil sempre se orgulhou de ter delimitado quase todos os seus 16.885 quilômetros de vizinhança com outros 10 países do continente por meio do diálogo. O último conflito de grandes proporções em que as tropas brasileiras estiveram envolvidas na América do Sul terminou há 150 anos, a Guerra do Paraguai. E mesmo disputas por meio das armas, como no Rio Grande do Sul, onde nacos de terra foram alvo de cobiça dos espanhóis, tornaram-se exemplo de resolução por meio da diplomacia, em boa parte graças ao Barão do Rio Branco, patrono do Itamaraty.
Esse cenário de paz nas redondezas, entretanto, pode sofrer mudanças, a depender das novas Política Nacional de Defesa (PND) e Estratégia Nacional de Defesa (END) encaminhadas pelo Ministério da Defesa ao Congresso no último dia 22. Especialistas consultados por GaúchaZH acreditam que os documentos estabelecem, em suas 41 páginas, fissuras nos pilares do pensamento geoestratégico brasileiro. A principal troca em relação a governos anteriores, em especial Luiz Inácio Lula da Silva e Dilma Rousseff, é que o Brasil passa a ver a América do Sul não mais como “área livre” de conflitos. Nesse novo cenário, o país, segundo os analistas acadêmicos, pode ser levado a se engajar em operações de guerra contra outras nações do chamado entorno estratégico. “Não se pode desconsiderar a possibilidade da ocorrência de conflitos armados na América do Sul, de modo que o Brasil poderá ver-se motivado a contribuir para a solução de eventuais controvérsias regionais ou mesmo para defender seus interesses”, analisa a PND no item 2.3.10, página 9.
Embora não cite explicitamente nações, o trecho se refere, na interpretação de especialistas ouvidos pela reportagem, à Venezuela. A crise no país comandado por Nicolás Maduro é antiga, mas a hipótese de participação brasileira em eventual ação militar não existia em versões anteriores dos textos (nem subliminarmente). Na edição a ser avaliada por senadores e deputados, o texto deixa claro que podem ocorrer tensões e crises no entorno estratégico, com possíveis desdobramentos para o Brasil, e que o país poderá contribuir para solução de eventuais controvérsias e defender seus interesses.
Desde a autoproclamação de Juan Guaidó como presidente da Venezuela, os EUA buscam coordenar, junto a Brasil e Colômbia, reações à crise. Em certo momento, os militares brasileiros precisaram intervir para evitar a tentação do Itamaraty e do Palácio do Planalto de colocar em operação um confronto direto visando à mudança do regime venezuelano. Mas a tensão permanece. O Brasil, cuja tradição diplomática tem na mediação um dos alicerces, estaria, pela nova política, atenuando essa característica da Casa de Rio Branco.
– Antes, o Brasil anunciava que pretendia contribuir para a estabilidade e a paz através da cooperação, do desenvolvimento e da diplomacia. Agora, o documento fala expressamente em participação em operações. Alguém poderia dizer: “Operações do tipo de missões de paz”? Não, isso aparece em outro capítulo, separado. Está implícita a possibilidade de o país agir em conjunto com outros para estabilizar um terceiro – salienta o professor Eduardo Munhoz Svartman, do programa de pós-graduação em Estudos Estratégicos Internacionais da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).
Todos os generais consultados pela reportagem, no entanto, descartam que os textos representem um endurecimento na linguagem bélica.
A PND e a END formam, junto ao Livro Branco da Defesa Nacional, a tríade de documentos que buscam esclarecer, para a sociedade brasileira e para a comunidade internacional, os objetivos e sustentáculos da nação no âmbito de defesa e soberania nacionais. É como um manual de conduta: são definidas nos textos as prioridades estratégicas, os riscos à soberania e os potenciais rivais e ameaças. Esse conjunto de documentos passou a ser adotado por várias nações ocidentais depois do fim da Guerra Fria, como forma de dar transparência das intenções de cada país. O Brasil entrou tardiamente nessa lógica, ressalta Nelson Düring, editor do site especializado em assuntos militares Defesanet.com.br.
O primeiro documento foi editado durante o governo Fernando Henrique Cardoso, em 1996. Depois, em 2008, no governo Lula, passou por uma radical reedição. Em 2012, no mandato de Dilma Rousseff, houve nova revisão, sem grandes alterações na substância dos textos. Em 2016, no governo Michel Temer, as restrições orçamentárias, uma guinada à direita em curso em Brasília e a mudança de comportamento no cenário internacional já estavam presentes nos documentos, elegendo novos parceiros e mesmo inimigos.
A Lei Complementar 97/1999, alterada pela Lei Complementar 136/2010, tornou obrigatório ao Executivo o envio da PND, da END e do Livro Branco para apreciação do Congresso a cada quatro anos na primeira metade da sessão legislativa (entre fevereiro e julho) a partir de 2012. Cumprindo a legislação, o governo Jair Bolsonaro encaminhou a revisão do texto. Mais do que uma atualização do conjunto de documentos – o Livro Branco foi remetido junto à END e à PND –, os textos estabelecem nova espinha dorsal da defesa brasileira. Na prática, a PND traça, em linhas gerais, os objetivos geoestratégicos (onde o país quer chegar). A END, por sua vez, delineia os caminhos, o “como” chegar. Düring opina que a versão de 2008 era bem mais completa do que todas as posteriores, em abrangência.
Venezuela na mira?
Durante a segunda metade do século 20, prevaleceram nas relações do Brasil com vizinhos a cultura do segredo e do controle pelos militares a respeito do desenho da política de defesa. Hoje parceiros estratégicos e econômicos no Mercosul, Brasil e Argentina, por exemplo, travaram uma longa disputa por hegemonia de poder no sul do continente. Nas décadas de 1970 e 1980, havia desconfianças mútuas acerca de uma eventual militarização de seus programas nucleares. Os documentos, acompanhados de declarações, parcerias e arranjos entre diplomacia e forças armadas entre os dois países arrefeceram os ânimos. Para Svartman, a integração sul-americana, com organismos como União de Nações Sul-Americanas (Unasul) e Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos (Celac) faziam parte dessa narrativa – e agora eles não estão mais nos textos. Ao contrário, a ameaça de engajamento pode provocar temores de vizinhos.
O professor Svartman admite que o Brasil precisa garantir seus interesses, preservar suas fronteiras e atuar pela estabilização regional, mas considera que os documentos dão margem para receios: “Então, agora o Brasil vai querer nos invadir? Vai fazer uma coalizão junto com uma potência extrarregional para mudar nosso regime?”. O especialista considera que isso pode descredenciar o Brasil como ator nas negociações para estabilizar a Venezuela.
GZH procurou o general Ricardo Rodrigues Canhaci, que atuou como subchefe de Política e Estratégia na nova versão da PND e da END. Ele e uma equipe trabalharam um ano e meio no assunto, inclusive com seminários em diversos pontos do país, para ouvir interessados. Canhaci refuta que os documentos tenham qualquer “recado” a algum país e diz que o Brasil segue aberto a parcerias com todos os vizinhos.
Os textos das novas PND e END, obtidos por GZH, mantêm a estrutura geral dos documentos anteriores. Já o emprego de conceitos como “poder nacional” e “objetivos nacionais permanentes” lembra a conhecida doutrina da Escola Superior de Guerra. São expressões que haviam escasseado nas versões de 2008 e 2012 e que voltaram no governo Temer. Seu uso, segundo especialistas consultados pela reportagem, denota que os textos foram produzidos por um número reduzido de envolvidos no processo, mais restrito ao círculo militar.
No campo do que é tido como ameaça, os documentos apontam que “potências externas têm incrementado sua presença e influência” em áreas do país. Em um primeiro olhar, pode-se depreender a preocupação com o aumento dos investimentos chineses por aqui – já que há alinhamento estratégico do Planalto com a Casa Branca. Acontece que essa aliança do Brasil com os EUA não é unanimidade entre os militares. O vice-presidente, general Hamilton Mourão, esteve várias vezes na China e defende que o Brasil se mantenha “neutro e pragmático” em relação à disputa comercial entre as duas potências planetárias. Mourão frequentemente lembra, em palestras, que o território chinês é destino de 32% das commodities agrícolas brasileiras (mais de quatro vezes o que é exportado aos EUA). Além disso, os chineses também são os principais compradores de minério de ferro e petróleo brasileiros. Investem bilhões, ainda, em energia e logística. Não há sentido em boicotar o país asiático, pensa o vice-presidente.
O próprio Comando Sul das Forças Armadas dos EUA enfatiza que Pequim despejou US$ 180 bilhões (R$ 964 bilhões) em programas de infraestrutura no continente americano, onde 25 das 31 nações aderiram à Belt and Road Initiative, programa fundamental da ascensão chinesa no século 21, conhecido como Nova Rota da Seda. Ao não nomear a ameaça de fora, algo que muitos países europeus e os EUA costumam fazer em seus documentos de defesa, o Brasil deixa margem para outras interpretações. No início do ano, a França chegou a ser aventada, em ensaios de cenários militares, como a grande fonte de preocupação. No entanto, especialistas entendem que a suposta ameaça estava mais circunscrita ao círculo ideológico do Planalto, depois das rusgas, no ano passado, entre os presidentes Jair Bolsonaro e Emmanuel Macron, no auge da crise provocada pelas críticas francesas aos incêndios na Amazônia.
Opiniões divididas
Assim como no caso da China, há desconfianças de setores das Forças Armadas com relação aos norte-americanos – mesmo diante da união carnal apregoada pelo governo brasileiro com os EUA. Como os documentos são escritos com participação de generais do alto comando, não é de se descartar que o termo “potências externas” valha para os interesses do Pentágono.
Há outra alternativa. Desde a Guerra das Malvinas, países do Atlântico Sul veem com preocupação a presença de nações como o Reino Unido na região. Uma estratégia de longo curso do Brasil é tentar fazer com que as potências centrais, e particularmente nucleares, não estejam ativas na área.
A verdade é que o Brasil, especialmente nos governos petistas, permitiu que a Venezuela montasse um enorme aparato militar sem crítica ou objeção. Agora falam em 'potências externas', sem mencionar nomes.
NELSON DÜRING
Editor do site Defesanet.com.br, sobre como os atuais PND e END respondem a questões abertas em versões de governos anteriores
– O Planalto não vê os EUA como ameaça, mas, ainda que os norte-americanos tenham desempenhado papel importante na estruturação das Forças Armadas desde a Segunda Guerra Mundial, há setores militares que se sentem desconfortáveis com a excessiva dependência em relação ao país. Entendem que onde há uma presença mais substantiva dos EUA e de outras potências geralmente ocorrem conflitos. E o que o Brasil não quer isso – interpreta Svartman.
Düring acredita que não é por alinhamento com a Casa Branca que o Brasil não menciona os “inimigos externos”, mas para evitar polêmicas com competidores econômicos, ou seja, a China e os próprios EUA.
– A verdade é que o Brasil, especialmente nos governos petistas, permitiu que a Venezuela montasse um enorme aparato militar sem crítica ou objeção. Agora falam em “potências externas”, sem mencionar nomes – ironiza Düring.
A soberania e o desenvolvimento de ações de preservação da floresta amazônica estão entre as prioridades dos documentos. “A Amazônia, assim como o Atlântico Sul, é uma área de interesse geoestratégico para o Brasil.
Até acho que o Brasil deveria gastar mais com defesa. Só que deveria gastar melhor. Há uma distorção brutal entre atividade meio e atividade fim. Ao gastar 80% do orçamento com pessoal, todas as outras atividades, treinamento, formação, investimentos, aquisição, manutenção e operações, ficam prejudicadas.
EDUARDO MUNHOZ SVARTMAN
Professor da UFRGS, sobre o fato de as novas END e PND preverem um aumento do orçamento militar, dos atuais 1,3% do PIB para 2% (cerca de 80% desse montante é gasto com salários)
A proteção da biodiversidade, dos recursos minerais e hídricos, além do potencial energético, no território brasileiro, é prioridade para o país”, constatam os textos, que também apresentam uma “resposta” aos “interesses estrangeiros” na floresta. No Oceano Atlântico, também há preocupação em proteger a chamada Amazônia Azul, área de 4,5 milhões de quilômetros quadrados de águas onde estão 90% de todas as reservas brasileiras, como o pré-sal.
Para dar conta da defesa dos interesses brasileiros, um dos itens novos da política de defesa que deve agradar aos quarteis é a demanda por aumentar o orçamento militar do patamar atual, de 1,3% do Produto Interno Bruto (PIB), para 2%. Até 2018, com 1,47%, o Brasil era o sétimo da América do Sul na destinação de parcela das riquezas para gastos com defesa. Estava atrás de Equador (2,4%), Guiana (1,7%) e Bolívia (1,5%). A Colômbia lidera o ranking com 3,2% do PIB.
Mas onde o Executivo buscou a meta de 2%? Esse é percentual é o previsto no orçamento de nações integrantes da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan). Apenas sete dos 30 membros da aliança atlântica alcançam esse número, o que costuma gerar tensão com o sócio majoritário, os EUA, que exigem aumento dos parceiros.
A exigência estabelecida nos documentos levanta outra discussão. Cerca de 80% do orçamento da defesa é destinado ao pagamento de salários. Em 2019, dos R$ 109,9 bilhões destinados ao setor, R$ 80 bilhões foram para o pagamento de pessoal, dos quais R$ 47,7 bilhões para inativos (reserva e pensionistas).
– Até acho que o Brasil deveria gastar mais com defesa. Só que deveria gastar melhor. Há uma distorção brutal entre atividade meio e atividade fim. Ao gastar 80% do orçamento com pessoal, todas as outras atividades, treinamento, formação, investimentos, aquisição, manutenção e operações, ficam prejudicadas – comenta Svartman.
Os textos não trazem referência a mudanças na gestão orçamentaria.
Soberania ou nacionalismo
Investimento em equipamentos militares é algo caro. Um único disparo de míssil antinavio custa o equivalente a US$ 1 milhão (R$ 5 milhões). Um tiro de um blindado Leopard, de Santa Maria, custa 5 mil euros (R$ 30 mil). Para driblar despesas milionárias, os artilheiros usam simuladores.
– Hoje, o operador do canhão dá mil tiros virtuais num simulador antes de fazer um disparo real. O resultado é que, além de ajudar a cortar custos, ele consegue um índice de acerto de 90%, porque treinou bastante – resume o general da reserva Sérgio Etchegoyen, que comandou unidades de blindados e foi um dos redatores da END de 2008.
Apontado como positivo por especialistas, o investimento na base industrial de defesa e no desenvolvimento científico e tecnológico, pouco citado no governo Temer, volta a aparecer nos novos textos. O governo Lula, em parceria com a França e a Suécia, deu impulso, respectivamente, ao projeto de submarino nuclear (Prosub) e à compra de caças (Gripen), com transferência de tecnologia buscando proteger essas áreas estratégicas. Mas, devido às restrições orçamentárias, havia perdido importância na revisão feita pelo governo Temer. Agora, esses projetos foram retomados.
Mas essa orientação de desenvolvimento científico e tecnológico de base industrial de defesa colide com duas outras políticas de Bolsonaro. A emenda do teto dos gastos, por exemplo, continua em vigor. A política externa do governo também não preza pela autonomia. Ao contrário, é de alinhamento automático aos EUA.
Algumas ideias foram substituídas. Em 2008, o PND do governo Lula preconizava um aumento de recrutas, em detrimento dos soldados profissionais. A meta agora é inversa: profissionalizar cada vez mais, mas mantendo o serviço militar obrigatório. Outro projeto abandonado, que foi mencionado 46 vezes na PND da era lulista, é a implantação do serviço civil obrigatório. Seria destinado aos jovens de 18 anos desobrigados do serviço militar. Eles teriam oportunidade de aprendizado e inclusive de treino militar básico. Nunca foi implementado, enfatiza Etchegoyen, porque necessitaria de um orçamento gigantesco e de um contingente enorme de professores para treinar 1,4 milhão de jovens homens e mulheres, todos os anos.
– Era um sonho impraticável – resume o general.
Mudaram também os eixos geopolíticos. Nos governos Lula e Dilma, a PND falava em priorizar relações com entidades terceiro-mundistas, como o Conselho de Defesa Sul-Americano (CDS), a União de Nações Sul-Americanas (Unasul) e a Organização do Tratado de Cooperação Amazônica (OTCA), e em intensificar cooperação e comércio com países da África, da América Central e com a Comunidade dos Estados Latino-Americanos e Caribenhos (Celac). Preconizava uma Zona de Paz e de Cooperação do Atlântico Sul (Zopacas) e o incremento de interações inter-regionais, como a Comunidade de Países de Língua Portuguesa (CPLP), a cúpula América do Sul-África (ASA) e o Fórum de Diálogo Índia-Brasil-África do Sul (Ibas).
Os documentos atuais não fazem menção a entidades como Celac, ASA, OTCA, IBAS e CDS. Citam poucas organizações e países, aliás. A prioridade é “o relacionamento com as nações detentoras de maiores capacidades tecnológicas”, enfatiza a estratégia do atual governo.
A nova retórica soa também mais nacionalista. Os documentos gestados no governo Bolsonaro apontam para uma interferência da política de defesa em questões culturais, ligadas ao esporte e à educação, critica Svartman:
– Subordinando outras áreas a uma agenda de defesa, em nome do espírito de patriotismo, o governo vai agir no sentido de mobilizar a cultura, o esporte e a educação. Isso não é politica de defesa. Isso é politica de controle social. Isso inclusive remonta às velhas disciplinas de Organização Social e Política do Brasil (OSPB), Educação Moral e Cívica e Estudos dos Problemas Brasileiros, criados durante o regime militar.
Não é nacionalismo, mas soberania, responde Etchegoyen. Com a tranquilidade de quem se julga isento por não participar do atual governo, mas conhece o tema por ter ajudado a coordenar as primeiras PND/END, o general considera natural que os documentos mudem ao longo das décadas, com tons influenciados pelos ventos ideológicos da ocasião. Mas garante que a noção, entre os militares, da importância do Brasil como fiador da soberania sul-americana permanece imune:
– O Brasil tem metade do PIB sul-americano, mas nenhuma ambição colonialista ou imperial. Não é da nossa tradição. Só que é missão dos militares fazer ensaios de projeção de força e dissuasão contra qualquer adversário, mesmo que conflitos jamais venham a ocorrer. Os diplomatas e os governos pensam a política. Nós projetamos cenários possíveis, é nosso ofício.
A END e a PND, antes e agora
O que é consenso
GZH analisou as versões da Política Nacional de Defesa e da Estratégia Nacional de Defesa nos governos Lula, Dilma, Temer e Bolsonaro e traça um painel comparando o teor dos documentos, primeiramente apresentando as semelhanças dos textos ao longo dos anos
- Emprego das Forças Armadas – As prioridades são a participação do Brasil em operações de paz e humanitárias, regidas por organismos internacionais, a atuação em operações internas de garantia da lei e da ordem, nos termos da Constituição Federal, e os atendimentos às requisições da Justiça Eleitoral. A ameaça de conflitos e pirataria no Atlântico Sul e na Amazônia também é mencionada – por isso, há previsão de presença militar nessas áreas estratégicas.
- Reposicionamento de unidades militares – As principais unidades do Exército foram criadas no Sudeste e no Sul. A frota da Marinha concentra-se na cidade do Rio de Janeiro. As instalações tecnológicas da Força Aérea estão quase todas localizadas em São José dos Campos (SP). As preocupações mais agudas de defesa estão, porém, no Norte, no Oeste e no Atlântico Sul. É para lá que devem se dirigir os reforços de contingente. Desde 2008 as Estratégias Nacionais de Defesa repetem o trecho: “Para além dos maiores centros industriais do país, a Marinha deverá estar mais presente na região da foz do Amazonas e nas grandes bacias fluviais do Amazonas e do Paraguai-Paraná. O Exército deverá posicionar suas reservas estratégicas no centro do país, de onde poderão se deslocar em qualquer direção. Deverá também o Exército agrupar suas reservas regionais nas respectivas áreas, para possibilitar a resposta imediata na crise ou no conflito armado”. E assim tem sido feito, com transferências de batalhões inteiros do Sul para o Norte e o Centro-Oeste, e do Litoral e de algumas capitais para o Brasil central. Uma das últimas unidades, o comando de mísseis e foguetes, foi transferida do Rio Grande do Sul para Goiás em janeiro deste ano.
- Operações de paz – Perderam importância nas novas versões dos documentos, embora ainda façam parte deles. A expressão é mencionada 24 vezes na END do governo Lula e apenas oito vezes na de Bolsonaro.
- Percentual fixo para a defesa – Todas as versões, desde 1996, pedem que o percentual destinado ao setor seja fixo. A ideia é algo em torno de 2% do Produto Interno Bruto (PIB), meta sugerida pela Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan), mas que só é cumprida por sete dos seus 30 membros. Hoje, o Brasil gasta em torno de 1,3% do PIB com defesa. Em compensação, o setor militar conseguiu garantir a execução do seu orçamento em 2019 e foi um dos menos atingidos pela reforma previdenciária.
O que mudou
Alguns termos dos dois documentos tiveram mudanças sensíveis desde gestões passadas. Confira um resumo a seguir, a partir de análises de cada uma das suas versões
Governo Lula (2008)
- Retórica antibelicista – Os textos salientavam que o Brasil é “pacífico por tradição e por convicção”. Vive em paz com seus vizinhos. Rege suas relações internacionais, dentre outros, pelos princípios constitucionais da não intervenção, da defesa da paz e da solução pacífica dos conflitos. Esse traço de pacifismo é parte da identidade nacional e um valor a ser conservado pelo povo brasileiro.
- Serviço Civil Obrigatório – Nunca foi implementado. Previa que, complementarmente ao serviço militar obrigatório, seria instituído o serviço civil, com progressivo aproveitamento de jovens aos moldes do Projeto Rondon. Eles receberiam formação para poder participar de um trabalho social, destinado a atender as carências do povo brasileiro e a reafirmar a unidade da nação. Teriam treinamento militar básico e comporiam força de reserva.
- Oficiais oriundos das classes trabalhadoras – É importante para a defesa nacional que o oficialato seja representativo de todos os setores da sociedade brasileira, recomendava a primeira versão dos documentos. É bom que os filhos de trabalhadores ingressem nas academias militares, preconizava. Os atuais elaboradores dos textos consideram esse conceito superado por uma realidade: as Forças Armadas, sobretudo o Exército, são abertas a todos os segmentos da sociedade.
- Mais recrutas e menos soldados profissionais – A primeira versão da PND e da END recomendou que o serviço militar obrigatório fosse mantido e reforçado, como “a mais importante garantia da defesa nacional” e “o mais eficaz nivelador republicano, permitindo que a nação se encontre acima de suas classes sociais”. A ideia era aumentar o recrutamento e diminuir a profissionalização. Não prosperou. O que ganhou força, ressalta o general Ricardo Canhaci, é o concurso para militares temporários (permanecem por oito anos), uma saída intermediária entre o recruta e o profissional. E que permite o ingresso de diversos especialistas nas Forças Armadas.
- Especialistas civis em defesa – Foi definida como “interesse estratégico do Estado” a formação de especialistas civis em assuntos de defesa. No intuito de formá-los, o governo federal deveria apoiar, nas universidades, um amplo espectro de programas e de cursos que versem sobre a defesa. Hoje eles existem, mas não “em amplo espectro”.
- Integração e cooperação na América do Sul – Havia o intuito de estimular a integração da América do Sul, com a cooperação militar regional e a integração das bases industriais de defesa, tudo para “afastar a sombra de conflitos dentro da região, rumo à construção da unidade sul-americana”. A realidade mostrou que muitas divisões, sobretudo ideológicas, continuam.
Governo Dilma (2012)
- Serviço civil obrigatório – Esse projeto não foi mais mencionado nos documentos.
- Maior número de recrutas do que profissionais – Seguiu a meta desenhada no governo Lula.
- Oficiais oriundos das classes trabalhadoras – Desapareceu a expressão, nas versões sob o comando de Dilma Rousseff.
- Estabilidade regional – O governo Dilma falava em “contribuir para a manutenção da estabilidade regional em fóruns internacionais relacionados às questões estratégicas”, priorizando organismos regionais como o Conselho de Defesa Sul-Americano (CDS) da União de Nações Sul-Americanas (Unasul). Também priorizava o relacionamento entre os países amazônicos e a intensificação da cooperação e do comércio com países da África, da América Central e do Caribe, inclusive a Comunidade dos Estados Latino-Americanos e Caribenhos (Celac), e a consolidação da Zona de Paz e de Cooperação do Atlântico Sul (Zopacas), além do incremento de interações inter-regionais, como a Comunidade de Países de Língua Portuguesa (CPLP), a cúpula América do Sul-África (ASA) e o Fórum de Diálogo Índia-Brasil-África do Sul (IBAS).
Governo Temer (2016)
- Pacífico, mas forte – Desaparece a menção ao fato de o Brasil ser pacífico por tradição e por convicção. Os textos falavam que o Brasil respeita normas internacionais, mas alertavam que “nenhum Estado é pacífico sem ser forte” (frase do diplomata Rio Branco).
- Estabilidade regional –Os textos citavam a Unasul, mas omitiam menções ao CPLP, à ASA e ao fórum Índia-Brasil-África do Sul.
- Alerta contra o terrorismo – Nos governos petistas havia apenas menção de repúdio ao terrorismo. Já no governo Temer o documento detalhava a configuração internacional, caracterizada por assimetrias de poder, que gera tensões e instabilidades propícias ao surgimento de grupos insurgentes e de organizações terroristas ou criminosas.
Governo Bolsonaro (2020)
- Amazônia Azul e Atlântico Sul – São termos e regiões muito mencionados. Há alerta para o interesse de potências externas nessas áreas. “Países que dessa região não fazem parte têm incrementado sua presença predatória”. A expressão “Amazônia Azul” era inexistente na era Lula.
- Desaparece a cooperação com Índia e África – Não há menção a tratados com África do Sul e Índia. Apenas citações a continentes variados.
- Somem interações com vizinhos latino-americanos – Os novos textos não mencionam de forma explícita as cooperações com países latinos, caribenhos ou centro-americanos. Tampouco citam organismos como Unasul e CDS.
- Alerta contra o terrorismo – A análise de ambiente internacional é similar à do governo Temer, com incrementos. É citada preocupação frente ao uso de artefatos nucleares, biológicos e químicos.
- Indícios de que França e China sejam vistos como adversários – Os documentos falam em atores exógenos que ambicionam riquezas naturais brasileiras. Especialistas creem que as menções se aplicam a potências europeias com laços na América do Sul, como a França, e também a China. Mas os textos não citam nomes.
- Inimigos ocultos, parceiros possíveis –Os militares não fazem política de governo e sim, política de Estado, ressaltam generais da ativa consultados por GZH. É por isso que os documentos não mencionam países. "Não são dados recados para A nem B, até porque a geopolítica muda com o tempo. São instrumentos de consulta para o governante saber em que cenários as Forças Armadas podem ser empregadas", explica um general que atua em Brasília. Os militares refutam que o texto tenha como alvos a França (no centro de controvérsia com o governo brasileiro pelas críticas feitas às queimadas na Amazônia) e a China (vista como o inimigo da hora pelos EUA, a quem o governo brasileiro se alia). Com a França, lembram, a Marinha brasileira tem o Pro-Sub, um programa de desenvolvimento de submarinos. A China é o mais importante parceiro agrícola do país. Até por isso os militares não mencionam nomes. Ocorre que, nos meandros da geopolítica, meia palavra basta. Vale, nesse contexto, a velha máxima: o adversário de ontem é o aliado de hoje, e vice-versa. "É por isso que o tabuleiro está aberto a todos os jogadores, para parcerias com países vizinhos. Inclusive para a Venezuela, por que não? O Brasil tem o princípio da não intervenção e deseja que os venezuelanos se acertem. Lógico que preservaremos nossa soberania territorial", adverte um militar do alto escalão ouvido pela reportagem.