“Quando, daqui a 20 anos, os historiadores se debruçarem sobre a história do mundo e chegarem ao capítulo ‘ano 2000 a março de 2004’, que fatos destacarão como os mais importantes? Os ataques ao World Trade Center e ao Pentágono em 11 de setembro de 2001 e a Guerra do Iraque? Ou a convergência de tecnologia e determinados acontecimentos que permitiram a Índia, China e tantos outros países ingressarem na cadeia global de fornecimento de serviços e produtos, deflagrando uma explosão de riqueza nas classes médias dos dois maiores países do mundo – e convertendo-os, assim, em grandes interessados no sucesso da globalização?”
Assim começava, em 2005, a apresentação do livro O Mundo É Plano, espécie de manual escrito pelo jornalista norte-americano Thomas Friedman para compreender o admirável mundo novo que se descortinava a partir da virada do milênio. Pois o “daqui a 20 anos” chegou. Lá atrás, era possível imaginar que o 11 de Setembro e o atoleiro americano no Iraque ainda hoje, quase duas décadas depois, continuariam impactando a política e a economia globais. O que seria difícil de visualizar à época é que o fenômeno descrito por Friedman em 471 páginas, a globalização, poderia sofrer ali na frente um refluxo. Ou seja, que um conjunto avassalador de fatores, como nacionalismo, protecionismo, rupturas de cadeias de fornecedores e a maior crise de saúde pública em um século, colocariam freio à economia global, reduzindo trocas comerciais a um ponto que muitos estudiosos chamam de “desglobalização”.
A globalização é um processo de expansão econômica, política e cultural em nível mundial cujo marco inicial é controverso. Depende, dizem os estudiosos do tema, do entendimento da palavra “mundial”. Para um cidadão do Império Romano, o mundo ia até as fronteiras de Roma – e tudo o que havia depois eram os bárbaros. Para alguém nascido na Idade Média, o planeta acabava pouco além do horizonte do oceano – aí, caíamos em um abismo. O navegador genovês Cristóvão Colombo desafiou esse saber. Não despencou quando as caravelas sumiram de vista da Europa e provou que, do lado de cá, havia um outro mundo – redondo, aliás. O comércio, antes limitado às Índias Orientais, ganhava novos mercados. As outras grandes navegações do século 16, a primeira e segunda Revolução Industrial, as guerras e sobretudo a paz e a democracia liberal foram ampliando o mundo conhecido e gerando trocas e interdependência. A partir do século 20, o processo se acelerou devido à terceira Revolução Industrial (ou Revolução Técnico-Científico-Informacional). Com a abertura da China ao planeta, em 1979, o fim da Guerra Fria e a adoção da economia de mercado pelo antigo bloco soviético, no início dos anos 1990, veio um impulso definitivo para a expansão do comércio. A evolução das tecnologias de transporte e comunicação encurtou distâncias e reduziu fronteiras geográficas – o tal “mundo plano” que dá nome ao livro de Friedman. O volume de comércio no mundo mais do que quintuplicou entre 1990 e 2015, passando de US$ 3,5 trilhões para US$ 19 trilhões.
Que movimento poderia frear a locomotiva econômica de um planeta, que, apesar de bolsões de pobreza e desigualdade, nunca produziu tanta riqueza? Uma guerra, uma catástrofe natural ou... uma pandemia. Com capacidade de provocar rupturas políticas e econômicas ainda não identificáveis, o coronavírus paralisou boa parte do globo. A covid-19 confinou em casa 4,5 bilhões de pessoas, silenciou as máquinas das indústrias, reteve os aviões e fez governos recrudesceram fronteiras para barrar o inimigo invisível. Muitos pesquisadores apostam: a crise do coronavírus nas cadeias globais de valor – indústrias de diferentes países conectadas pela fabricação de um produto – vai desacelerar o processo de integração e a dinâmica comercial entre os países.
Blocos em dissolução
A realidade da pandemia traz indícios da pá de cal na conexão entre governos e economias. Mas a desglobalização não teria começado com a covid-19. Para alguns estudiosos, esse processo já estava ocorrendo. Doutor em Economia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e professor da Fundação Getúlio Vargas (FGV) Mauro Rochlin afirma que, mesmo quando a globalização se acelerava, nos anos 1990, havia movimentos no sentido contrário: o fim da União Soviética, o surgimento de várias novas nações, as divisões da Iugoslávia e da Checoslováquia.
– Era o esfacelamento de um movimento que aglutinava países, ou seja, que ia na contramão da globalização. Isso aconteceu em várias nações da Europa. Na Espanha, há movimentos separatistas na Catalunha e no País Basco, e isso pode ser interpretado como um movimento de desglobalização – analisa.
Distribuir a produção por todo o planeta já está fazendo cada vez menos sentido econômico.
FINBARR LIVESEY
No livro “From Global to Local” (2017)
Algumas resistências à globalização são visíveis no dia a dia. O economista Leonardo Trevisan lembra que, ao mesmo tempo em que é possível comprar roupas cujos tamanhos são os mesmos em diferentes partes do mundo, no Brasil, as tomadas de energia elétrica exigem aparelhos de três pinos – diferentemente da maioria dos países ocidentais.
– É uma tentativa de se diferenciar, mas que tirou o Brasil da rota de globalização, enquanto o resto do mundo se padronizava. Esse processo (sair da rota da globalização) acho muito difícil de ser revertido – avalia Trevisan, que é pós-doutor pela Universidade de Londres e professor de Relações Internacionais da ESPM-SP.
Números mostram um freio no processo de globalização a partir da crise econômica de 2008. O índice de participação das cadeias globais de valor no comércio internacional cresceu de 38% para 52% entre 1970 e aquele ano, mas estagnou desde então, segundo o Banco Mundial (Bird). Depois da crise, quatro tendências alteraram a estrutura das cadeias globais de valor, de acordo com os professores da Duke University Lukas Brun e Garry Gereffi e de James Zhan, da Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento (Unctad), em artigo recente. Segundo eles, as multinacionais passaram a reduzir o número de fornecedores, de forma que pudessem racionalizar o processo, começaram a procurar fábricas em suas próprias regiões e, para não correr o risco de desabastecimento, passaram a fazer estoques e buscaram diversificar locais de produção. A última tendência é a mais recente: a digitalização das cadeias via impressão 3D, automação e tecnologia da informação.
Multinacionais que já enfrentam problemas em suas cadeias de fornecimento expostas vão ter de lidar também com interferência política crescente.
IAN BREMMER
Presidente do Eurasia Group
No campo político, a insatisfação nos Estados Unidos e na União Europeia (UE) provocada pelo desemprego e pela queda no padrão de vida da classe média, somada aos problemas agravados com a crise de 2008 e ao aumento do fluxo migratório, facilitaram a ascensão de líderes populistas. O Brexit, saída dos britânicos do sonho de integração europeu, confirma a impressão de que a globalização foi benéfica apenas para uma minoria. Antes do coronavírus, no agora aparentemente distante dezembro de 2019, países da Ásia, da Europa e da América Latina viviam manifestações nas ruas que, apesar dos contextos diferentes, tinham em comum a insatisfação com a desigualdade social. Donald Trump incorporou como poucos políticos no mundo esse sentimento, em 2016, ao cunhar slogans como “America First” (“América primeiro”) e “América para os americanos”, em oposição ao “cidadão do mundo” representado por seu antecessor Barack Obama. No poder, implementou uma agenda nacionalista, protecionista e anti-imigração.
Na Europa, além dos mortos e doentes, o coronavírus deixou fissuras políticas na UE, reabrindo o abismo entre os ricos países do Norte e os pobres do Mediterrâneo nas discussões sobre a reconstrução do continente. Já o Mercosul teve as estruturas abaladas pela decisão do governo argentino de não participar de negociações sobre livre-comércio. O enfraquecimento de blocos econômicos vai ao encontro da deslegitimação de organismos multilaterais, como a Organização Mundial da Saúde (OMS), questionada pelos Estados Unidos pela gestão da pandemia, ou a Organização das Nações Unidas (ONU), que parece impotente na missão de evitar o colapso global.
Novas cadeias de produção
Um dos principais defensores da tese de que a desglobalização foi acelerada pelo coronavírus é Ian Bremmer, fundador e presidente do Eurasia Group, consultoria de risco político dos Estados Unidos e colunista da revista Time. Ele afirma que durante boa parte do século passado a globalização estreitou laços que unem o mundo, mas nos últimos anos o impulso político que move o fenômeno estancou por movimentos como a eleição de Trump e o Brexit. “Não faz muito tempo, empresas privadas eram aplaudidas pelos mercados e governos por maximizar os retornos econômicos, buscando agressivamente realizar investimentos no Exterior. Esses dias chegaram ao fim. Enquanto o coronavírus deixa milhões sem trabalho, as multinacionais que já enfrentam problemas econômicos em suas cadeias de fornecimento excessivamente expostas vão ter de começar a lidar também com interferência política crescente, ao mesmo tempo em que enfrentam pressões domésticas para renacionalizar suas cadeias de fornecimento de maneira que lhes renda menos lucro mas atenda mais aos interesses nacionais”, escreveu.
A paralisação das fábricas expôs a fragilidade das indústrias de diversos países ao dependerem umas das outras. Um diplomata brasileiro afirma que uma lição da crise será a necessidade de diversificação da cadeia para reduzir a dependência de um país fornecedor.
– Ficou claro que vamos precisar mudar o modelo de produção dos insumos para o combate a esse tipo de situação que estamos vivendo.
O mundo não pode depender só da China. E não é nada contra os chineses. Mas ficou claro que os países precisam ter alguma autonomia para produzir, para ter suprimento imediato desses bens. Possivelmente as novas cadeias produtivas serão locais ou regionais, ou ainda sub-regionais – avalia o funcionário do Itamaraty, que prefere não se identificar.
Fazer previsões em meio ao cenário incerto é tarefa difícil, admitem especialistas. Há muitos fatores que podem variar de forma imprevisível. A efetividade de políticas econômicas tomadas pelos diferentes governos e a rapidez com que a ciência alcance uma vacina ou tratamento se contrapõem a fatores negativos como o tempo que a pandemia irá durar, as rupturas nas cadeias de fornecedores, desequilíbrios econômicos e sociais profundos, crise financeira, fuga de capitais em países em desenvolvimento e o protecionismo. Um estudo do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) prevê forte retração do comércio internacional (uma das medidas da globalização) em 2020. No melhor dos casos, o comércio internacional cairia 15% em relação a 2019. No pior, 25%. Para 2021, a tendência é de alta, com cenários de aumento de 4,%, 7% ou 10%. Em todas as conjecturas imaginadas, a recuperação não será suficiente para compensar as reduções de 2020.
Ao invés de dar importância primordial apenas à lógica do custo mais baixo, irá se procurar segurança.
RUBENS RICUPERO
Embaixador e ex-ministro
Projeções na mesma direção foram divulgadas pela Organização Mundial do Comércio (OMC) em 8 de abril, em especial no que diz respeito a 2020. A maior diferença entre as duas publicações é que o órgão internacional prevê uma recuperação mais rápida.
Para pesquisadores, há duas formas de olhar para o mundo pós-pandemia. Uma defende a necessidade de maior interconectividade porque problemas modernos têm dimensão global e só podem ser resolvidos com cooperação. Uma fábrica que polui no Uruguai provoca estragos no ar que respiramos no Brasil. Uma doença que começa na China não obedece às fronteiras e nos atinge do lado de cá do planeta.
– A própria pandemia sugere um isolamento maior. A gente não sabe quando vai voltar a haver um fluxo turístico maior, por exemplo. Isso é um dificultador de integração entre os países. Assim, a pandemia poderia sugerir uma não integração, um isolacionismo dos países. Por outro lado, o próprio combate à covid-19 mostra que é necessário uma coordenação entre as nações para que a gente possa ter um fluxo de pessoas e mercadorias. É inevitável pensar em articulação supranacional – avalia Rochlin.
A segunda forma de observar o mundo a ser reconstruído é contrária: considera que as dificuldades atuais resultam de uma excessiva interconectividade, e, como tal, é necessário regressar à ideia de nações soberanas, iniciando assim o processo de desglobalização. Afinal, para pensadores adeptos dessa avaliação, o vírus espalhou-se facilmente pelo mundo devido à interconexão que a globalização trouxe. Eis porque haveria a necessidade de voltar a desenvolver o sentido de controle das diferentes populações e identidades culturais. Isso implica controlar fronteiras, desenvolver a autossuficiência e evitar a dependência de culturas externas. O embaixador Rubens Ricupero, em recente conferência no Centro Brasileiro de Relações Internacionais (Cebri), disse que posturas isolacionistas tendem a se acentuar, provocando a erosão da cooperação internacional. Apesar disso, o diplomata não acredita em desglobalização, mas em uma reconfiguração do fenômeno, com menos dependência de governos e empresas em relação à China.
Haverá novas cadeias globais, locais, regionais, combinações dessas várias cadeias, até pela preferência dos consumidores.
PEDRO MIGUEL DA COSTA E SILVA
Diplomata, negociador do Brasil no Mercosul
– Em alguns casos, como a produção da penicilina, a China responde por 90%. Das terras raras (substâncias químicas usadas na indústria para produção de diversos itens, como supercondutores, magnetos e catalisadores) eles detêm praticamente o monopólio. Nos casos extremos de dependência de equipamento médico hospitalar, ao invés de dar importância primordial apenas à lógica do custo mais baixo, irá se procurar segurança. Mas isso não vai destruir a globalização no seu fundamento. Vai só temperá-la um pouco – explica Ricupero.
Principal negociador do Brasil no Mercosul, o diplomata Pedro Miguel da Costa e Silva aposta que haverá uma combinação maior de cadeias produtivas.
– Haverá novas cadeias globais, locais, regionais, combinações dessas várias cadeias, como acho que hoje já existem, inclusive em função de acordos que dão preferencias ou de leis trabalhistas. E isso tem a ver não só com a preferência das empresas, mas também dos consumidores. No agronegócio, em vários países hoje há uma parcela de pessoas que quer o produto local. O mercado tem de se adaptar a isso – avalia.
O chacoalhão da morte
Em períodos difíceis como o atual, os instintos tribais são ativados pela ameaça existencial. A sociedade aberta (liberal) tende a se fechar, e há o reforço de identidades locais em nível político. A pandemia veio lembrar que depender do outro pode ser perigoso, uma vez que não é possível controlar o que governos e empresas fazem. O egoísmo aflorou, por exemplo, no episódio de um carregamento de máscaras de proteção chinesas que a França reteve. Os destinos eram Itália e Espanha, mas, no pico da pandemia, o equipamento virou raridade, e o governo do presidente Emmanuel Macron, um dos maiores defensores da unidade do continente, mandou às favas a solidariedade. Outro exemplo são os relatos de que carregamentos de máscaras prestes a decolar para a Europa foram comprados, em dinheiro ou por um preço maior, por americanos na pista de um aeroporto na China. O governo Trump nega as denúncias.
Apesar de indícios de desglobalização, as mudanças de comportamento na pandemia, graças à tecnologia, contribuem para imaginar que processos de conexão sejam irreversíveis. Trevisan lembra que, no mundo virtual, a globalização segue.
– O trabalho remoto passou a ser o novo normal – diz. – Outro exemplo é a telemedicina. A pandemia vai acelerar uma série de características de sua prestação de serviços que os médicos não conheciam.
Ricupero acrescenta que a globalização é impulsionada pelas revoluções tecnológicas, sobretudo da eletrônica e telecomunicações:
– No fundo, o grande sentido da globalização é que os cidadãos se comunicam no mundo inteiro. Isso não vai acabar, porque a tecnologia, ao contrário, está avançando.
Mas nem todos concordam. No livro From Global to Local: The Making of Things and the End of Globalisation (“Do global ao local: a criação das coisas e o fim da globalização”), publicado em 2017, o britânico Finbarr Livesey, professor de Políticas Públicas da Universidade de Cambridge, afirma que o avanço tecnológico facilitou a migração das indústrias de produção intensiva de mão de obra para onde os salários são baixos, tese defendida por Friedman. No entanto, esse processo estaria entrando agora em retrocesso justamente pela inovação digital. Segundo Livesey, os robôs estão se tornando cada vez mais eficientes e de baixo custo, substituindo até trabalhadores baratos. Assim, a tendência é de que as indústrias façam o caminho inverso, voltando a instalar sua linha de produção mais perto de onde os produtos são consumidos. “Distribuir a produção por todo o planeta já está fazendo cada vez menos sentido econômico”, escreve o pesquisador.
A história mostra que processos não são irreversíveis. A ascensão da China pós-pandemia pode acelerar o megaprojeto One Belt One Road (também chamado de Nova Rota da Seda), que prevê a integração de infraestruturas em países do Oriente Médio, de Europa, África e América Latina. O avanço dessa agenda deve provocar reação norte-americana. O próprio futuro dos Estados Unidos estará em jogo em novembro, quando Trump, ferrenho defensor do isolacionismo, será avaliado nas urnas por sua gestão durante a crise do coronavírus.
– No momento em que a reeleição de Trump está sob risco, esse apelo nacionalista vai diminuir. Se ele perder, o processo de desglobalização tende a diminuir – avalia Trevisan.
O economista lembra o sinal simbólico emitido pelo primeiro-ministro britânico, Boris Johnson, que, ao se recuperar do coronavírus, agradeceu aos funcionários do sistema de saúde público do Reino Unido que ficaram ao seu lado na UTI. Obstinado pelo Brexit, Johnson saudou “o enfermeiro português, Luís, de perto do Porto”, e Jenny, imigrante da Nova Zelândia: “A razão pela qual o meu corpo começou a receber oxigênio suficiente foi porque, durante todos os segundos da noite, estiveram a observar , a pensar, a cuidar e a tomar as intervenções necessárias”.
– A tragédia pessoal que o cercou emitiu um sinal político muito forte. A vida dele foi salva por dois imigrantes. Isso terá um peso no campo das ideias. Vai ser difícil ele pregar o medo do imigrante. A morte é terrível, soberana. O fará mudar – aposta Trevisan.