Por Carmela Marcuzzo do Canto Cavalheiro
Advogada, professora de Direito Internacional da Unipampa
A pandemia da covid-19 traz questionamentos sobre as mudanças que trará para a geopolítica, as relações internacionais, a diplomacia, o comércio, e sobre a própria existência da União Europeia. O cenário da covid-19 potencializa algumas desavenças dentro do bloco, como o uso do fundo europeu de 410 bilhões de euros no combate à pandemia a pedido da Itália, França e Espanha. A divergência ocorrida em março acirrou as discussões para algo maior do que o fundo e evidenciou a percepção do primeiro-ministro neerlandês, Mark Rutte, sobre o norte austero e o sul que não sabe administrar suas finanças públicas. Ainda não se sabe qual será o efeito da posição moralista dos Países Baixos no funcionamento do bloco, mas deverá ser lembrada pelos países do sul.
A posição neerlandesa deve ser destacada para compreender a mudança que a covid-19 demonstra já ocorrer na União Europeia. Como um dos países precursores da origem do bloco, na criação da Comunidade Europeia do Carvão e do Aço (CECA), em 1952, por França, Itália, Alemanha Ocidental e o Benelux (Bélgica, Países Baixos e Luxemburgo), ou a também chamada “Europa dos Seis”. Os Países Baixos exerceram importante papel desde o início do projeto da União Europeia.
A própria história dos Países Baixos se confunde com a grande habilidade de negociação como alicerce de desenvolvimento desse país. Conhecido internacionalmente como "o país da tolerância", sua raiz latinha deriva do verbo tolerare, isto é, aceitar, suportar e aguentar. A tolerância ao longo da história foi utilizada com um significado político como modo de determinar a coexistência entre minorias religiosas.
A tolerância permeou toda a história da República Unida dos Países Baixos, pode-se observar a magnitude da presença de John Locke inserida nos debates teológicos que dividiam os protestantes nos anos de 1683-1688. Foi em território neerlandês que Locke escreveu, no final de 1685 e início de 1686, a Carta Acerca da Tolerância, ou The Letter Concerning Toleration, durante um período conturbado e de incertezas políticas. A repercussão da Carta de Locke o levou a se mudar constantemente de endereços nos Países Baixos e a usar um pseudônimo para ocultar sua real identidade.
O episódio do fundo europeu é fundamental para a reflexão sobre a União Europeia pós-covid-19, e o receio de que um cenário de incertezas corrobore ainda mais para que sentimentos de intolerância passem a exercer maior influência nas decisões a serem tomadas no bloco. Alguns alegam que a posição dos Países Baixos em muito se assemelha a do Reino Unido antes de decidir sair da União Europeia no chamado Brexit. A oposição neerlandesa sustentada durante sete semanas parece estar firme acerca dos gastos excessivos a serem evitados também na recuperação econômica pós-covid-19.
Partidos neerlandeses refratários ao projeto de integração supranacional, como o Partij voor de Vrijheid (PVV), o Partido da Liberdade, começam a falar em um “Nexit”. No entanto, faz-se importante recordar que os Países Baixos aderiram à união monetária, abandonaram os florins holandeses (gulden) e aderiram ao euro. Portanto, retirar-se da União Europeia para um país que fez parte de todo o projeto de integração seria algo muito mais traumático.
A pandemia comprova o quão interligado o mundo já está, entretanto, existe a possibilidade de os países priorizarem a segurança nacional e a ideia de uma autoridade coletiva em detrimento de um contexto pós-guerra em que as liberdades individuais eram prioridade. É importante verificar como se irá equacionar esse movimento do avanço da supranacionalidade na União Europeia como precursora desse modelo de integração.