Por Vicente de Paulo Barretto
Professor da Unisinos, presidente do Fórum Filosofia, Ética e Sistemas Jurídicos da Escola de Magistratura do Estado do Rio de Janeiro (Emerj)
A pandemia que nos assola, a par dos preocupantes problemas e das incontáveis vítimas está a trazer, fez por iluminar realidades que se encontravam obscurecidas na vida das sociedades contemporâneas. A literatura já tratou do assunto em clássicos, casos dos livros Um Diário do Ano da Peste (de Daniel Defoe, 1722), Um Caso Arrumado (Graham Greene, 1960) e, o mais comentado, A Peste (Albert Camus, 1947). Os três mostram como as epidemias brotam no seio da sociedade humana, matando populações inteiras e destruindo por dentro sistemas de proteção social, sanitários e econômicos.
A pandemia provoca, afora o medo e a ameaça da doença, o surgimento de um terreno fértil para manifestações políticas autoritárias e negacionistas do conhecimento científico. Nesses momentos históricos, somos chamados a recuperar valores que se expressam em padrões que nos permitam romper a turva camada que embota a imaginação e paralisa a ação contra o vírus. Trata-se, portanto, de reconhecer que, para além da sua dimensão epidêmica, o vírus é a face globalizada do mal, que se manifesta aqui e agora com a invisível covid-19.
A conjugação de todos os fatores específicos da globalização faz com que se fale em “sociedade de risco”, que vê explodir o mal, sob a forma de doença virótica, sem gênero, pátria e religião e desconhecendo fronteiras. Essa sociedade poderia ser caracterizada pelos perigos de hoje, que se diferenciam das mesmas ameaças na Idade Média, em razão da globalização. Observa-se, no entanto, um fenômeno político e social que se torna cada vez mais presente no cenário nacional e internacional: à medida que se fortalece a conscientização política sobre o necessário respeito a valores e bens comuns da humanidade, estes tornam-se cada vez mais indivisíveis. Racional e eticamente, os desafios da pandemia nos conduzem à busca de um tratamento global, que envolve todos os Estados, comunidades e grupos sociais, no qual o princípio da responsabilidade substituirá o da soberania. Cada Estado será o depositário fiel da sobrevivência do planeta, do seu desenvolvimento e dos valores humanos, que são universais.
Um modelo universal ou cosmopolita de organização político-social encontra-se, assim, em fase de gestação, o que até então somente tinha sido imaginado na especulação filosófica ou ideológica. Esse modelo, que deverá responder às forças atuantes na realidade política, social, econômica e cultural, tem um caminho determinado por referenciais comuns a todos os povos e nações. Esses referenciais – os direitos humanos – é que servirão de fonte legitimadora de um novo sistema jurídico, necessariamente universal, que possa lidar com o mal em suas diversas facetas.
Os direitos humanos ultrapassam, assim, os direitos fundamentais e apontam para comunidades de responsabilidade, que presidem um novo quadro de relações internacionais, no qual a ação política deixa de refletir somente a vontade soberana do Estado nacional e expressa, também, políticas públicas que considerem as necessidades, que, tal qual o vírus, afeta todas as classes sociais. Daí a necessidade de aprofundarmos, no campo da Teoria do Direito, a ideia de comunidades de responsabilidade, em que todos somos responsáveis por todos, num sistema jurídico que se fundamenta nos direitos humanos.
O bacilo, o vírus, a bactéria não morrem em um dia, como escreveu Camus. Eles irão acordar e lançar os seus ratos, portadores da doença, para a infelicidade e o ensino dos homens, no seio de uma cidade pacífica e feliz, trazendo mais uma vez morte, ódio e destruição. A guerra separa os povos, as pandemias têm o condão de os unir.
Virus caveat!