Por Robson Freitas Pereira
Psicanalista, membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre (Aapoa)
“Until we die, until we die
We are just learning to live together”
Joe Cocker
Nos últimos dias, estamos lidando com a segunda pandemia do século 21. Estamos surpresos com a velocidade de contaminação, o crescente numero de óbitos e as medidas que somos obrigados a tomar para tentar minimizar os efeitos da doença. O isolamento não desfaz a incerteza sobre a eficácia das iniciativas e nem sabemos o tempo que esta situação ainda vai durar.
Essa condição provoca angústia. Com consequências na comunidade e na subjetividade de cada um. Porque na verdade não controlamos os resultados, não há garantias de que fiquemos 100% isentos de risco. Tememos por nós, mas também pelos parentes mais velhos, pelos filhos pequenos ou mesmo os jovens que se arriscam mais, ou que estejam estudando longe. Enfrentar a angústia pode ser uma forma de preservar as condições mentais e físicas nesses tempos de quarentena. E, quem sabe, mesmo confinados, avançar um pouco em nossa civilidade aprendendo a viver juntos.
Em termos de história: como agimos na outra pandemia, a primeira? Foi em 2009. Em junho daquele ano, a Organização Mundial da Saúde (OMS) declarou pandemia em função do vírus H1N1, mais conhecido como gripe A. Até o fim do surto, em agosto de 2010, foram atingidos 187 países e mais de 300 mil pessoas haviam morrido. Ano passado, nos eventos que marcaram seus 10 anos, os epidemiologistas faziam constatações. Uma delas eram as reações iniciais de pânico: temendo que os mantimentos se esgotassem, as pessoas corriam para se abastecer. As escolas paralisaram, eventos foram cancelados e, por medo, muitos recolheram-se em casa ou circulavam usando máscaras. O atendimento tornou-se dramático, pois os jovens eram as primeiras vítimas. Além disso, em sua avaliação de 2019, os especialistas alertavam para a diminuição da população vacinada com o passar do tempo e até mesmo o retorno de um discurso contra as vacinas. Não previam outra epidemia tão rapidamente. Um ano depois, aqui estamos nós.
Diferentes, vide a tecnologia, mas com alguns conflitos iguais: a dificuldade de reconhecer que certas crises só se resolvem, ou melhor, só minimizamos seus efeitos catastróficos havendo uma organização, atitude coletiva, comunitária, onde prevaleça um sentido de solidariedade. Isso precisa se consolidar e superar as divisões nas quais estamos lançados.
Eis o nosso calcanhar de Aquiles. Explico. Uma pandemia é um evento que atinge a todos, independentemente de classe social, cor ou inclinações ideológicas. A doença é “democrática”. Embora tenhamos de reconhecer que as pessoas com menos recursos econômicos, sociais e subjetivos vão sofrer mais os efeitos nefastos da iniquidade.
Os conflitos vividos recentemente em nossa história, de intolerância, demandas de autoritarismo e apelo ao pensamento mágico (as teorias da conspiração pululam), estão presentes em nosso cotidiano.
Nossa humanidade cresceu, aprendendo, desde a pré-história, que, frente a um perigo maior, era necessário juntar forças para derrotá-lo.
Isso acontece entre grupos maiores, mas também, e aqui vem o mais importante, dentro de grupos menores, famílias, casais, grupos identitários que estão sujeitos aos mesmos problemas. Ou seja, as dificuldades que enfrentamos socialmente fazem parte de um conflito interno que se não for reconhecido como fazendo parte da nossa intimidade não terá resolução comunitária. Um exemplo é o lema herdado da revolução francesa: liberdade, igualdade e fraternidade não podem ser divididas em entidades separadas das quais cada um se apropria conforme sua conveniência. Trata-se, na verdade, de um conflito de nossa atualidade que precisa ser reconhecido como propriedade coletiva, pois como resolver a questão de que minha liberdade tem limites impostos pela fraternidade? Uma solução autoritária, ou puramente individualista, não é o que efetivamente vai proteger as pessoas que amamos.
Nossa humanidade cresceu, aprendendo, desde a pré-história, que, frente a um perigo maior, era necessário juntar forças para derrotá-lo. Fosse a caça de um animal gigantesco ou proteger os mais fracos contra as intempéries e os predadores. Essa é a reedição deste momento histórico, onde a solidariedade possibilita minimizar aquilo que é impossível de eliminar; porque a pandemia já é uma realidade que se expande. Enfrentar a doença manifesta no corpo exige reconhecer e refrear o mal-estar que cada um carrega intimamente. Assim, menos acusações, mais tolerância no julgamento das atitudes diferentes. Afinal, “we can be heroes/ just for one day”.