Por José Carlos Calich
Presidente da Sociedade Psicanalítica de Porto Alegre (SPPA), professor da Universidade de Nova York (NYU)
Estamos, pelo menos neste momento, em um local muito privilegiado. Nossos epidemiologistas que, neste cenário de pandemia de coronavírus, ocupam o lugar dos oráculos, dando voz aos deuses que revelam nossos destinos, informam com veemência que “achatamos a curva”! Não houve o festim comemorativo correspondente, ainda que essa tenha sido a notícia mais otimista dos últimos três meses. O momento é triste, muito triste e, ainda que privilegiados, estamos conscientes do que se passa no resto do mundo e da devastação a que assistimos, com cobertura jornalística plena de cenas inimagináveis e mapas de morbidade e letalidade atualizados em tempo quase real. Alguns locais atingidos são recobertos de romantizações e idealizações – como Nova York, Paris, Milão, Madri. E, dizem, o assolamento em lugares mais vulneráveis ainda nem começou. É triste e terrivelmente assustador.
A pandemia nos pegou de surpresa e absolutamente despreparados para a dimensão da catástrofe. Um súbito cataclisma como esse destapa todas nossas fragilidades. Alardeia a inadequação da distribuição das riquezas no mundo e de nossa estrutura econômica, faz bravata da insuficiência e da inadequação dos sistemas de saúde, fanfarroneia a respeito do grave desgoverno instalado em diferentes partes do planeta, zomba de nossa escolha de prioridades e nos põe em contato com vulnerabilidades individuais que a vida cotidiana nos permite ocultar.
Nosso psiquismo existe para dar significado a nossas experiências emocionais, para permitir que construamos um sentido para o que nos acontece e, ordenados em sistemas narrativos individuais, criarmos nossa própria história, nossa visão de mundo, nossa noção de sabermos sobre nós mesmos e nos prepararmos para enfrentar as novas experiências. Algo da dimensão de uma guerra ou de uma destruição coletiva sem um conhecimento de como combatê-lo, com um caráter inédito, como o que estamos vivendo, leva tempo para atribuirmos um sentido. Esse é o principal responsável pelo sentimento de “estranheza” que temos nessa situação. Não temos como dar um sentido ao que nos está ocorrendo.
Somemos alguns outros ingredientes. Um contato com a morte, explícito, impiedoso, que se acerca de nós mesmos, nossos familiares, amigos, conhecidos, nossos semelhantes, ainda que desconhecidos. Uma morte por asfixia e solitária, pelo isolamento necessário daqueles contaminados. Uma intensa incerteza de como será o mundo passado o dilúvio. Como serão nossas vidas, nossa economia, nossos trajetos pessoais, o futuro de nossos filhos? O que mudará em nossa moral, em nossos costumes, na maneira como valorizamos o que vivemos? Como será nossa relação com os outros, vamos ser mais solidários, mais egoístas, mais cautelosos, mais assustados? Uma parte de nós terá memórias aterrorizantes? O que restará da experiência de isolamento? Quantos adoeceremos psiquicamente e psiquiatricamente se esse isolamento tiver de ser mais prolongado ou repetir-se por muitas vezes em um prazo não determinado?
Alguns dos leitores devem estar pensando: “Chega!”. Porque não estamos preparados para tantas pressões desconhecidas, tantas incertezas quanto ao futuro e tanto contato com a morte, o luto e a tristeza. Vamos nos acomodando, até porque não há outra opção. Todos os cientistas sérios e confiáveis do mundo dizem que, neste momento, sem vacinas e sem medicações conhecidamente eficazes, o único remédio é o isolamento social, com liberações setoriais, regionais, por categorias de risco, cauteloso, progressivo e com a clara noção de que poderá ser necessária a restrição de contato mais severo novamente, como já está ocorrendo nos primeiros locais nos quais a covid-19 se instalou.
O "triunfo maníaco"
É duro? Sim. Envolve um planejamento muito engenhoso entre a sobrevivência de indivíduos e da economia? Sim. Temos de estar preparados para tanta dureza? Sim. E se não estamos? Alguns adoecem. Outros permitem que o “chega!” domine, porque não toleram tanta pressão e angústia. O que fazem então? Utilizam recursos psíquicos para não sentir o que sentem. Como se faz isso? A primeira manobra é negar. A doença não existe, é um exagero da imprensa, um pânico coletivo ou “uma gripezinha”.
Para triunfar sobre a angústia, saem as ruas, desvalorizam a ciência, atacam o que se sabe, colocando em risco suas vidas e as dos demais. A isso, psicanaliticamente falando, chamamos de “triunfo maníaco”. A etapa seguinte é ficar mais violento, com todas as formas de violência possível e imagináveis, desde a violência doméstica, individual, coletiva e todas as formas de ataque ao humano e a nossos valores construídos a duras penas em nosso processo civilizatório.
Comecei dizendo que era muito triste. Com essas “saídas”, fica trágico. Por favor, escutem os oráculos: só saiam de casa orientados por eles!