Em 8 de dezembro de 1941, às 12h30min, horário de Washington, o presidente Franklin Roosevelt proferiu no Congresso norte-americano seu famoso discurso que declarava guerra ao Japão. Pouco mais de 24 horas antes, aviões japoneses haviam atacado a base naval de Pearl Harbor, no Havaí, matando 2.403 soldados dos EUA, no dia que Roosevelt descreveu como a data que viverá na infâmia. Donald Trump não é Roosevelt, um dos maiores presidentes da história americana, mas foi esse espírito que o atual líder tentou encarnar em 18 de março de 2020, ao posicionar-se diante dos jornalistas, na Casa Branca, e autoproclamar-se “presidente em tempos de guerra” contra “um inimigo invisível”.
Até aquela tarde, Trump minimizava a gravidade do coronavírus e fazia ouvidos moucos a seu assessor, Anthony Fauci, diretor do Instituto Nacional de Alergia e Doenças Infecciosas e uma das maiores autoridades em infectologia do mundo. Privilegiava a retórica de ficção, preferida de seu ex-estrategista Steve Bannon, mais afeito a culpar a China pelo vírus do que a buscar saídas científicas para a crise. O que levou Trump a mudar? Uma das hipóteses de especialistas seria o medo de uma catástrofe: àquela altura, os EUA contavam 2,1 mil mortos; outra, mais racional, a ameaça à economia – quedas sucessivas nas bolsas de valores globais prenunciavam uma hecatombe nos excelentes números até ali e o provável fim de seus planos de reeleição. Há ainda outra hipótese: vaidoso, Trump pode ter vislumbrado na peste que cruzava o Atlântico uma oportunidade de inscrever seu nome no panteão dos grandes presidentes – ao lado dos pais fundadores, como George Washington, e Abraham Lincoln, Roosevelt e Dwight Eisenhower.
Os EUA superaram, na madrugada da última quinta-feira, a barreira das 5 mil mortes provocadas pelo coronavírus – o número dobrou em três dias. Já são mais óbitos do que os provocados pelos traumátios atentados terroristas de 11 de setembro de 2001, que tiraram a vida de 2.977 civis, além dos 19 sequestradores. Em 2020, Nova York, ainda estigmatizada pela queda das torres gêmeas, é novo epicentro da crise americana. Trump tem ainda outra preocupação. Diferentemente da China, onde a maioria das vítimas concentrou-se na província de Hubei, e da Itália, onde a tragédia devastou especialmente o norte do país (Lombardia e Vêneto), nos EUA o coronavírus tem outros focos consideráveis, como os Estados de Washington e a Califórnia.
– Estamos trabalhando com ideia de que os EUA possam ter três Itálias ao mesmo tempo. A coisa pode ser maior. Se o vírus se espalha mais um pouco, podemos ver uma quarta, quinta Itália em um só país – prevê o professor Leonardo Paz Neves, do Núcleo de Prospecção e Inteligência da Fundação Getúlio Vargas (FGV).
O número de infectados nos EUA passa de 189 mil, superando também o total de pessoas cuja saúde foi impactada diretamente pelos atentados do início do século – 25 mil, entre profissionais de resgate e sobreviventes que sofrem até hoje sequelas dos ataques.
– Cada geração foi chamada a fazer sacrifícios compartilhados pelo bem da nação. Agora é a nossa hora – afirmou Trump, evocando heróis da Segunda Guerra e do 11 de Setembro.
Não foi apenas retórica de guerra. Diante da pandemia, o governo invocou a Lei de Produção de Defesa, da época da Guerra da Coreia (1950-1953), para acelerar a produção de máscaras, luvas e equipamentos hospitalares. A legislação extraordinária autoriza o presidente a alocar materiais, serviços e organizações para promover a defesa nacional, obrigando empresas a firmarem contratos com essa finalidade. Também autoriza a Casa Branca a controlar a economia civil para que não faltem materiais essenciais. Hospitais de campanha foram montados em vários Estados, e foram acelerados testes de detecção do vírus. No campo econômico, Trump conseguiu um feito até poucos meses atrás impensável em um país polarizado politicamente e em plena campanha eleitoral: democratas e republicanos concordaram em aprovar no Congresso pacote de US$ 2 trilhões para salvaguardar a economia.
Os EUA podem ter três Itálias ao mesmo tempo. Se o vírus se espalha mais um pouco, podemos ver uma quarta, quinta Itália em um só país.
LEONARDO PAZ NEVES
Professor da FGV
Os efeitos das ações na opinião pública foram quase imediatos. De acordo com uma pesquisa Gallup, o índice de aprovação do presidente alcançou o nível mais alto de seu mandato: 49%. Sessenta por cento dos pesquisados aprovam sua gestão da crise. A tendência coincide com outro levantamento da ABC News/Ipsos, que registrava 55% de apoio a sua gestão da pandemia, quando na semana anterior só 43% a respaldavam. Historicamente, os EUA se unem em torno de seus presidentes quando a nação está ameaçada. Nos dias seguintes ao 11 de Setembro, a aprovação de George W. Bush disparou 35 pontos e ele foi reeleito pouco depois da invasão do Iraque. A de Roosevelt subiu 12 pontos após Pearl Harbor.
Os EUA são um país que, como poucos, constroem significado épico às ações de seus comandantes. Enquanto Nova York, capital informal do Ocidente, construía hospitais de campanha no Central Park, um gigantesco navio hospital, branco, com a cruz vermelha pintada no casco, singrava as águas do Hudson, na segunda-feira (30/3). Com mil leitos e 12 salas de cirurgias, o USNS Comfort não receberá pacientes do coronavírus, mas sua presença no porto de Manhattan completava a narrativa de uma nação unida para enfrentar a batalha do “inimigo invisível”.
– Os americanos estão acostumados, desde o fim da Primeira Guerra Mundial, a ter uma atitude de liderança, uma sensação de que os problemas, quando estão nos EUA, são melhor resolvidos. Eles são rápidos e eficientes; não apenas os mais ricos. Isso está na lógica americana, no American Way of Life – explica o economista Leonardo Trevisan, pós-doutor em Economia do Trabalho pela Universidade de Londres e professor de Relações Internacionais da ESPM-SP.
Os EUA se esqueceram do equilíbrio entre as escolas de Chicago (modelo liberal) e Stanford (estatal).
LEONARDO TREVISAN
Professor da ESPM-SP
Para o pesquisador, o coronavírus desembarca nos EUA no momento em que as fragilidades do sistema de saúde são a principal preocupação do cidadão – e, até então, tema central da campanha eleitoral. O país não dispõe de um acesso universal de saúde. Há cerca de 29 milhões de pessoas sem seguro médico no país. Muitas outras têm apólices que incluem franquias que, em 2019, custavam em média US$ 1,6 mil. Por isso, conforme especialistas, muitos americanos não procuram um médico, mesmo que tenham sintomas similares aos provocados pelo coronavírus. Estudos mostram que, em 2017, 9% dos adultos demoraram para procurar ou não buscaram assistência médica devido aos altos custos. André Soares, pesquisador assistente do Centro Brasileiro de Relações Internacionais (Cebri) e que mora em Washington, conhece de perto essa realidade.
– No Brasil, se você tem febre ou passa mal, vai a um hospital, faz exames e volta para casa. Aqui, não há essa cultura. Se você for ao hospital, mesmo tendo seguro de saúde, ainda paga muito. Então, as pessoas não têm o hábito de buscar os hospitais, só vão se estiverem morrendo – explica o pesquisador, que durante a quarentena mudou-se para o Estado do Colorado.
Ele conta que, no início da crise da covid-19, muitos americanos acabaram não procurando atendimento de saúde por terem sintomas muito parecidos com um resfriado ou uma gripe comum:
– Uma coisa importante que o governo fez, logo no início, foi decretar que todos os planos de saúde deveriam cobrir testes para coronavírus. A segunda foi ampliar o teste para todo mundo.
O Centro para Controle e Prevenção de Doenças não tinha dados de todo o país, você não sabia o número de pessoas infectadas porque não havia um sistema eletrônico para reportar das secretarias de saúde para o governo federal. E isso foi criado.
A crise do vírus chega no momento em que os americanos começavam a entrar em clima de eleição. Democratas afunilavam a disputa entre os nomes de Bernie Sanders e Joe Biden e republicanos cacifavam Trump à reeleição. Conforme Leonardo Paz Neves, o jogo mudou. Toda a estratégia dos democratas para desbancar o presidente republicano – a suposta responsabilidade pela questão da Ucrânia que levou a um processo de impeachment, as acusações de mau uso do dinheiro público ou mesmo a suspeita de interferência russa – foi descartada. A eleição de novembro, se houver, será um referendo sobre como Trump se saiu na “guerra”.
– Tudo que o que se possa imaginar que os democratas puderam pensar para colocar Trump na berlinda ficou de lado agora. Todo saldo positivo possível Trump vai tentar tirar, e ele já percebeu isso. Entendeu que tem de passar para as pessoas que, o que quer que aconteça nessa crise, todas as coisas boas partiram dele – explica Paz Neves.
E os democratas, o que fazem diante de seu dilema?
– Eles têm de torcer para as coisas não irem tão mal, mas, ao mesmo tempo, têm de ir mal, porque, se forem bem, Trump ganha. É uma escolha de Sofia.
Não à toa, Sanders e Biden estão apagados da mídia nos últimos dias e cresce, em visibilidade e influência, o governador de Nova York, o democrata Andrew Cuomo. Enquanto o presidente rejeitava a ameaça do vírus, era ele quem aparecia na TV, com voz calma e didática, preparando as pessoas para a crise.
Maior reflexo da suspensão da campanha, segundo Trevisan, será o desinteresse dos eleitores pela política e uma consequente abstenção no pleito.
– Em 2016, Trump vendeu uma aproximação com o americano médio, que não tinha universidade, que não tinha emprego. Ele vendeu a esses uma ilusão: “Vou te devolver o emprego, vou te devolver um padrão saúde”. O que o coronavírus vai escancarar é que é impossível esconder essa deficiência na saúde. Não há marketing possível para ocultar possíveis 200 mil mortos – diz o professor, referindo-se à projeção de Anthony Fauci.
Um presidente em tempo de guerra exige uma economia também adaptada a um conflito. Após os ataques de 11 de Setembro, o economista James Kenneth Galbraith publicou um artigo na revista acadêmica Challenge em que definia o conceito de “economia de guerra”: “É um momento em que o governo deve gastar sem ressalvas para estabilizar a economia. Em uma economia de guerra, a obrigação pública é fazer o que for necessário: apoiar o esforço militar para proteger e defender o território nacional, e especialmente para manter o bem-estar físico, a solidariedade e a moral da população”. O artigo trazia uma visão pessimista sobre o que viria após os ataques terroristas, com uma projeção que se assemelha ao quadro de 2020: queda forte no consumo e impacto em setores ligados a viagens, como companhias aéreas e hotelaria. A previsão era de que uma recessão passiva ocorreria nos EUA se o governo não gastasse substancialmente, e o desemprego e a inflação ficariam em níveis muito elevados. O país teve em 2001 uma recessão, mas a sua duração foi menor do que o previsto. Olhando para aquele período, o pacote trilionário que o Congresso aprovou é uma das maiores vitórias de Trump. A medida prevê o repasse de cerca de US$ 150 bilhões para o sistema de saúde e a criação de um fundo de US$ 500 bilhões para o socorro de grandes empresas do país.
– O pacote em si tem características muito interessantes. Foram, por exemplo, os republicanos que começaram com a ideia de querer mandar um cheque para todo cidadão. E isso não costuma bater muito com as políticas econômicas do Partido Republicano. Há uma preocupação muito grande em apoiar a população americana nesse momento de crise – afirma André Soares.
Economistas mais otimistas nos EUA, como o próprio pesquisador do Cebri, apostam que, a exemplo da China, onde o pior parece já ter passado, a economia americana volte a operar rapidamente.
– A China está reabrindo a economia dois, três meses depois do primeiro caso. Aqui (nos EUA), é a mesma coisa. Acredito que, em maio, início de junho, a economia vai voltar a funcionar não exatamente como antes, as pessoas vão voltar a trabalhar, e aí vai haver uma recuperação normal dos serviços – prevê.
Trevisan é mais pessimista. Acredita que, passado o pico do vírus em território americano, nada será como antes.
– A perda da eficiência do país está marcada por vários fatores. Os EUA se esqueceram do equilíbrio entre as escolas de Chicago (o templo do liberalismo) e de Stanford (a presença do Estado na economia) – pontua.
Em 1944, Roosevelt comandou o desembarque das tropas dos aliados na Normandia. Oito meses depois, em Ialta, na Crimeia, sentou-se ao lado de Winston Churchill e Josef Stalin para redefinir a nova ordem mundial enquanto o nazismo agonizava. Nem todos os presidentes em tempos de crises globais estiveram à altura de desafios como guerras, terremotos e pandemias. Em 2 de maio de 2003, depois de aterrissar no porta-aviões USS Abraham Lincoln, o presidente George W. Bush, que sofrera o impacto do 11 de Setembro dois anos antes e comandara duas guerras na Ásia, comemorou, sob uma faixa escrita “Missão Cumprida”, o fim dos principais combates no Iraque. A guerra duraria pelo menos mais 15 anos – e até hoje não terminou de fato. Os próximos meses dirão se Trump está mais para Roosevelt ou mais para Bush.