Por Celso Gutfreind
Psicanalista e escritor, autor de “O Terapeuta e o Lobo – O Conto na Clínica e na Escola” (Artmed, 2019)
Já desconfiávamos de que poderia ser assim, quando escutávamos o depoimento pungente de apenados ou de outros acamados. Mas agora sentimos na própria pele, o que torna o abstrato mais concreto. O isolamento, afinal, permite que se repense tudo o que envolve as nossas vidas. E, entre os “repensamentos” cotidianos, aparece esse da importância do nosso trabalho.
Em minhas conversas virtuais, tenho encontrado, com frequência, esta espécie de efeito colateral da dificuldade:
– Eu não sabia que faria tanta falta!
Esta é a hora em que todos fazem uma falta flagrante, do médico ao entregador. Do advogado ao encanador. E médico, entregador, advogado, encanador, atriz, cantor têm tempo para ressignificarem a sua importância, por mais que não lhes parecesse ou, em meio a tanta notícia, pareça menos ainda. Assim o tenho ouvido. Assim o tenho pensado.
De minha parte, nunca a psicanálise me pareceu tão importante. Não me refiro exatamente à assistência à saúde mental que ela promove, mas a um de seus carros-chefes, menos falados. Em seu corpo teórico, a psicanálise defende a importância do inconsciente, ou seja, do que não se vê. Do que se manifesta indiretamente, mas com efeitos que podem ser daninhos para a vida inteira. Por isso, entre seus conceitos, há muitos abstratos, como o da representação, importado da filosofia.
Atrelado a ele, surgem outros, como a simbolização, e toda a turma de noções é para lá de abstrata. Isso não se significa que não sejam importantes na clínica, na prática, pois, quando, em companhia de alguém, um sujeito desenvolve capacidades de abstrair – dizer, dizer mais, dizer mais amplamente –, há um acréscimo valioso em suas capacidades mentais.
Boa parte dessas noções vieram da arte. Freud foi apaixonado por ela, e recorro ao poeta contemporâneo Paulo Henriques Britto, quando parodiou o clássico Carlos Drummond de Andrade. Para Drummond, em um de seus poemas mais conhecidos, os ombros suportam o mundo, mesmo não sendo mais pesados do que a mão de uma criança.
Britto, como um poeta (ou alguém que recorre à psicanálise) soube abstrair e chegou a desconstruir os versos do mestre. Assim, não são os ombros que suportam o mundo, mas as palavras. Foi profético, pois as palavras, rodeadas por seus silêncios, nunca foram tão importantes. Elas nos ajudam a suportar as indelicadezas do mundo e, de quebra, a construir um espaço (abstrato), chamado imaginação, aonde podemos nos refugiar, por um tempo, da dura realidade. Se temos escuta e amparo para não nos tornarmos completamente loucos, a gente vai e volta, entre a realidade e a imaginação, outro carro-chefe para uma saúde mental.
Mas o já imortal Drummond não se encolheu para a provocação do aprendiz. E, no mesmo texto dos ombros, largou dois versos cada vez mais necessários:
Chegou um tempo em que a vida é uma ordem.
A vida apenas, sem mistificação.
No meu recolhimento, sinto a importância disso tudo. Estamos confinados por causa de um vírus, invisível, a olho nu. Ainda assim, esse serzinho (?) sem alma nem subjetividade sacudiu o planeta como um todo, e cada lar, individualmente. E, sobretudo, aqueles que não têm um lar para se recolher. Para enfrentá-lo, é preciso senti-lo (nós não o vemos), abstraí-lo, representá-lo, caso contrário sairemos às ruas normalmente, botando todos em risco.
Com mais horários livres, voluntariei-me para atendimento telefônico de pessoas carentes. Algumas não podem parar suas atividades, sob pena de morrerem de fome. A fome é concreta, ao contrário do vírus, invisível. Construirmos juntos uma abstração tem sido essencial para que possam se recolher. E, recolhidas, revisarem sua importância, incrementarem a autoestima, chegando, às vezes, a encontrar alternativas para sobreviver. E viver.
A alternativa de uma delas – um artista carioca de rua que conheci há alguns anos – foi pedir uma cesta básica. Eu dei, sob a condição não inviolável de que seguíssemos trabalhando as abstrações da alma. Eu não o via, naquela ligação de péssima qualidade, mas acho que ele ouviu dois versos de Drummond que lhe alcancei. Estavam no mesmo poema dos ombros e eram quase exatos na forma como eu imaginava o meu doído interlocutor:
Ficaste sozinho, a luz apagou-se.
Mas na sombra teus olhos resplandecem enormes.