Com 45 países em seu território registrando casos confirmados de coronavírus, a África contabiliza, até esta sexta-feira (17/4), menos de 12 mil pessoas infectadas pela covid-19 e um total de pouco mais de 500 mortes entre seus cerca de 1,2 bilhão de habitantes.
O continente inteiro representa apenas 0,59% do total de casos no mundo e 0,42% dos óbitos globais. O Brasil tem o dobro de casos e mais de duas vezes o total de mortes do que toda a África. Ainda: um país pequeno como a Bélgica, cuja extensão territorial é de 30.519 quilômetros quadrados, apenas um pouco maior do que o Estado brasileiro de Alagoas, tem três vezes mais casos confirmados em sua população do que a África inteira, e praticamente o mesmo número de óbitos. Como se pode explicar isso?
A pandemia não chegou na África com a mesma intensidade do restante do planeta. O primeiro caso em todo o continente africano só foi contabilizado pela Organização Mundial da Saúde (OMS) no dia 26 de fevereiro, quando o mundo já somava 81.109 casos confirmados (96,4% deles, àquele momento, na China) e 44 mortes. Apesar de, então, a doença se concentrar em território chinês, outros 36 países já tinham registro de infecção por coronavírus. Havia casos na Ásia, na Europa, na América do Norte e na Oceania. A África foi o último continente a ter sua população contaminada pelo coronavírus. E, mesmo ao atingir os países africanos, não se mostrou tão letal por lá.
Essas constatações, porém, não soam como um alento para a comunidade africana. O queniano Kennedy Odede, fundador da Shining Hope for Communities (“Luz de Esperança para Comunidades”, em tradução livre), organização social que promove iniciativas em saúde para as comunidades africanas, relata, em entrevista por e-mail à GaúchaZH, que a população teme que essa seja uma “calmaria” passageira.
– Estamos nos preparando para o impacto como podemos. Agora a crise não parece ter atingido a África tanto quando outros continentes, mas e quando chegar? Não podemos nos iludir. A África não está nas manchetes agora, e esperamos que continue assim. Mas não é de se supor que a pandemia não vá atingir o nosso continente – descreve Odede, citando a preocupação em comunidades especialmente desassistidas, como na favela de Kibera, no Quênia, uma das maiores do território africano.
Os números parecem contradizer tamanha preocupação. Em 1° de abril, por exemplo, 24 nações ou territórios africanos registravam transmissão comunitária de coronavírus, quando se torna impossível identificar a origem da contaminação em uma população. Em 15 de abril, esse número havia caído para apenas dois países: África do Sul e Argélia. Mas, para o empreendedor social queniano, há ainda grave subnotificação, falta de acesso a kits de testagem e mortes não contabilizadas como causadas pelo coronavírus em grande parte da África.
– Se não agirmos agora, comunidades como a minha serão aquelas onde o coronavírus vai causar a maior destruição, se não um completo caos – diz Odede, citando ações como a manutenção do fechamento de fronteiras, o isolamento social e um acesso maior da população a itens básicos de higiene e alimentos.
Para Vlademir Vicente Cantarelli, professor de Microbiologia da Universidade Feevale, a estabilização, ou até a diminuição dos casos, como vem ocorrendo nas últimas semanas na África do Sul, é algo visto como inesperado pela maioria dos infectologistas e epidemiologistas, que descrevem a situação como a “calmaria antes da tempestade”.
– Espera-se que em algum momento das próximas semanas haja aumentos expressivos no número de casos. Se essas expectativas de explosão de contaminações irão se materializar ou não, é algo impossível de se prever neste momento, porém a preocupação e a preparação para o pior continua sendo prioridade para a maioria dos países africanos – descreve Cantarelli.
Especialistas veem a probabilidade de a pandemia se disseminar pela população africana como extremamente preocupante. Para Cantarelli, que é pós-doutor em Microbiologia, a preocupação se dá diante de um cenário de extrema escassez de recursos financeiros, sistemas de saúde deficitários e dependência de ajuda internacional constante para lidar mesmo com os problemas recorrentes de saúde pública, como é o caso da tuberculose, da malária e do HIV, que juntos infectam milhões de africanos e consomem a maior parte dos recursos destinados ao tratamento e prevenção de doenças no continente.
– A drenagem de recursos médicos e financeiros para um eventual tratamento em massa da população com covid-19 teria um impacto gigantesco na continuidade dos tratamentos para as outras doenças infecciosas que assolam o continente, com graves consequências para as populações afetadas – define o microbiologista.
Além disso, enquanto vários países lutam contra o coronavírus com medidas de confinamento e restrições aos deslocamentos, a ONU advertiu que quase 3 bilhões de pessoas não contam sequer com as armas básicas de proteção: água potável e sabão. O Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) calcula que 40% da população mundial carece de meios para lavar as mãos em casa por falta de acesso fácil à água potável, por não ter condições de comprar sabão ou simplesmente pela falta de consciência da importância desta prática.
As populações que lotam os subúrbios e os campos de refugiados na região do Chifre da África, no sudeste do continente, estão especialmente expostas porque podem estar desnutridas ou ter problemas de saúde, além das condições de saneamento insuficientes. Na África subsaariana, 63% da população de áreas urbanas – 258 milhões de pessoas – não pode lavar as mãos, segundo os dados do Unicef. Em toda Ásia Central e do Sul, esse dado alcança 22%, ou seja, 153 milhões de pessoas. Se houver disseminação do vírus com maior intensidade, essa população estará especialmente vulnerável.
Presidente do Instituto Brasil África, uma organização sem fins lucrativos que visa promover o engajamento entre o Brasil e o continente africano, o doutor em Educação João Bosco Monte ressalta ainda que, além da higiene, a alimentação continua sendo um grande problema na África:
– Muitas nações africanas, como Nigéria, República Democrática do Congo, Egito e Etiópia, têm populações gigantes que precisam ser alimentadas, e os governos não conseguiram ainda resolver problemas passados, muito anteriores à pandemia. Agora, com lockdowns, fechamento de fronteiras, falta de circulação de produtos, distanciamento de fornecedores, pode haver consequências muito sérias.
Monte alerta ainda que pode haver graves crises humanitárias no continente após a pandemia.
– O coronavírus trouxe, no contexto mundial e especialmente no africano, a ideia de que crises humanitárias poderão surgir logo após a passagem do vírus. Com falta de alimentos, as crises são aceleradas, e há possibilidade, ainda que remota, de novas guerras – explica ele.
A fragilidade social na África evidenciada ainda mais pela covid-19 passa também pela questão sanitária, como a constatação de doenças já erradicadas em outros países que ainda afligem a população africana, carente de recursos e acesso a tratamentos médicos, mesmo os mais básicos.
– À medida que o vírus avança para os países de baixa renda, nos preocupa muito o impacto que pode ter entre as populações com uma prevalência alta de HIV ou entre as crianças desnutridas – declarou o diretor-geral da OMS, Tedros Adhanom Ghebreyesus.
Menos viagens, estabilidade
Apesar dos números baixos de infectados em relação à quantidade registrada na Europa, na Ásia e nas Américas até meados de abril, há preocupações de que a infraestrutura deficiente, a alta concentração de pessoas em alguns grandes centros urbanos e o sistema de saúde precário de muitos países possam facilitar o crescimento do vírus no continente nas semanas e nos meses seguintes. Mas, até o momento, o avanço da pandemia na África tem sido lento. E pode haver diferentes explicações para isso.
João Bosco Monte, presidente do Instituto Brasil África, lembra que o continente africano é composto de países que possuem características completamente distintas, incluindo notáveis diferenças étnicas, econômicas e interações dentro e fora do continente. O maior número de casos de covid-19 em poucos desses países poderia ser explicado, ele sugere, pelo maior número de estrangeiros, especialmente turistas, que visitavam alguns desses territórios, como a África do Sul, ou pelo grande número de cidadãos que viviam em outros países e regressaram com o início da pandemia, como a Argélia, que tem grande proximidade cultural e identitária com a França.
O microbiologista Vlademir Cantarelli chama atenção justamente para essa questão turística: ao contrário de outras doenças infecciosas ainda fortemente presentes na África, como a malária e a tuberculose, que se disseminam indistintamente, sobretudo entre os menos favorecidos, o coronavírus é muito mais dependente de viajantes, economicamente mais favorecidos, para se disseminar inicialmente. Ele aponta que esse é um dos fatores que explicam como a doença passou a afetar rapidamente os países mais desenvolvidos – ou bairros mais nobres e classes mais altas antes de chegar nas periferias.
– A grande segregação entre pobres e ricos que ainda existe na maioria dos países africanos poderia ser um dos fatores que, momentaneamente, dificultaram a disseminação dessa nova infecção para grande parte da população. Para muitos africanos, as grandes cidades são apenas locais de trabalho, com uma parcela muito significativa da população retornando para suas vilas de origem aos finais de semana, como ocorre na Costa do Marfim, por exemplo. A quarentena imposta pela pandemia e o retorno das pessoas para suas pequenas aldeias pobres pode ter contribuído para evitar a disseminação inicial da infecção – comenta Cantarelli.
O médico aponta ainda que, para muitos africanos, o distanciamento social não é somente permanecer em suas casas, mas estar fora dos grandes centros urbanos, sem contato com as cidades mais populosas.
– Devemos lembrar também que, em geral, uma grande parte da população africana vive naturalmente em pequenas cidades ou aldeias com pouco contato com os grandes centros – explica. – É uma característica social do continente.
O professor da Feevale lembra, contudo, que é importante ressaltar o fato de que a maioria dos países africanos não possui uma infraestrutura de laboratórios de análises e de recursos técnicos e financeiros compatíveis com a demanda de testagem para a covid-19, e o número de casos reportados por esses países estão, muito provavelmente, segundo ele, bem abaixo das taxas reais da infecção – um problema que já existe em nações de outros continentes e que se potencializa na África.