Por Carmela Marcuzzo do Canto Cavalheiro
Professora de Direito Internacional na Universidade Federal do Pampa (Unipampa)
A pandemia da covid-19 trouxe um protagonismo para a Organização Mundial de Saúde (OMS), criada em 1948 como uma das agências especializadas da Organização das Nações Unidas (ONU), com o objetivo de coordenar políticas relacionadas à saúde. O aumento da visibilidade de organizações internacionais nem sempre vem acompanhado do conhecimento acerca do seu modus operandi. As organizações internacionais de caráter universal, como é o caso da ONU, e de suas agências especializadas, apresentam uma multiplicidade de países membros em que todos têm o mesmo poder de voto.
Não obstante cada uma delas tenha sua base legal por meio de uma convenção, estatuto ou carta, seu principal objetivo é fomentar o diálogo multilateral para temáticas transnacionais e o desenvolvimento de políticas comuns. Para isso, suas sedes são estabelecidas no território de algum Estado por meio de um acordo. E possuem personalidade jurídica internacional, fato que as possibilita celebrarem tratados, contratarem pessoal, alugarem imóveis e todos os demais atos necessários para seu funcionamento.
Tais organismos são financiados pelos Estados membros cuja contribuição, na maior parte das vezes, não é igualitária. Essa não é conditio sine qua non para o exercício de poder dentro de uma organização internacional – não faria sentido o voto estar relacionado à contribuição orçamentária em uma organização como a OMS. A acusação proferida nos últimas dias pelo presidente dos EUA, Donald Trump, de que a China exerceria uma influência desproporcional dentro do sistema ONU, e especificamente no âmbito da OMS, deturpa o debate em um momento de crise pandêmica.
Vale lembrar que só houve um caso na história das organizações internacionais de exercício de poder nesse ambiente multilateral. Foi quando os EUA conseguiram afastar o renomado embaixador brasileiro José Maurício Bustani do cargo de diretor-geral da Organização para a Proibição das Armas Químicas (Opaq). O polêmico episódio ocorreu em 2002, quando os EUA demitiram Bustani sob a alegação de haver armas químicas no Iraque. Bustani estava no cargo desde a criação da Opaq e exercia uma admirável política multilateral em tentar trazer o Iraque para a convenção, fato que contrariou os EUA. Foi o único precedente de exercício de poder unilateral no âmbito de uma organização internacional.
Não há motivação plausível para uma alegação de predileção da China por parte da OMS. Deslocar o foco no contexto pandêmico, especialmente em um país como os EUA, que não possui sistema público de saúde, demonstra uma tentativa política de desviar a atenção durante a covid-19.
Na invasão do Iraque, em 2003, durante o governo de George W. Bush, tornou-se evidente que não havia arma química naquele país, como era defendido pelos EUA. Após 10 anos, em 2013, a Opaq ganhou o Nobel da Paz por seu trabalho de monitoramento e destruição de armas químicas realizado na Síria, inclusive como forma de pressionar a destruição de arsenais de armas químicas nos EUA e na Rússia.
Atualmente, não há motivação plausível para uma alegação de predileção da China por parte da OMS. Deslocar o foco no contexto pandêmico, especialmente em um país como os EUA, que não possui sistema público de saúde, demonstra uma tentativa política de desviar a atenção durante a covid-19. Nesse contexto, buscar um inimigo externo é uma antiga estratégia política, ao mesmo tempo em que o governo de Trump atende às recomendações da OMS e procura testar o máximo possível de habitantes. No momento, os EUA estão com média de um teste para cada 786 norte-americanos, com uma população de 329 milhões de habitantes. Em uma coletiva de imprensa no dia 13 de abril, o governador de Nova York, Andrew Cuomo, disse não haver previsão para a adoção de medidas de relaxamento. A gravidade da situação potencializa a importância dos testes defendida pela OMS, e o governo de Trump tem aderido a essa política.