O decano do Supremo Tribunal Federal (STF), ministro Celso de Mello, disse nesta quinta-feira (12), na última sessão plenária com participação da procuradora-geral da República, Raquel Dodge, que o Ministério Público deve atuar com independência, sem servir a governos ou grupos ideológicos.
O mandato de Dodge na Procuradoria-Geral da República (PGR) termina na próxima terça (17). O escolhido pelo presidente Jair Bolsonaro para sucedê-la no cargo foi o subprocurador-geral Augusto Aras, que deve ser sabatinado no Senado no próximo dia 25.
— O Ministério Público não serve a governos, não serve a pessoas, não serve a grupos ideológicos. O Ministério Público não se curva à onipotência do poder, não importa a elevadíssima posição que autoridades possam ostentar na hierarquia da República — discursou Celso de Mello por ocasião da despedida de Dodge.
— O Ministério Público também não deve ser o representante servil da vontade unipessoal de quem quer que seja, ou o instrumento de concretização de práticas ofensivas aos direitos básicos das minorias, sob pena de se mostrar infiel a uma de suas mais expressivas funções, que é, segundo a própria a Constituição, a de defender a plenitude do regime democrático — afirmou.
Para o decano, Dodge foi fiel, durante seu mandato na PGR, a seus objetivos constitucionais.
Defesa de minorias
Em sessões recentes do STF e em notas à imprensa, Celso de Mello tem feito discursos críticos a ações de governos que, em sua visão, ameaçam direitos fundamentais de minorias. Indicado ao comando da PGR, Aras declarou em agosto, entre outros pontos, ser contrário à decisão do Supremo que definiu a homofobia como crime de racismo. O relator de um dos processos sobre o tema foi Celso de Mello, que votou pela criminalização.
— É preciso não desconsiderar as lições da história e reconhecer que o Ministério Público independente e consciente de sua missão constituiu a certeza e a garantia da intangibilidade dos direitos dos cidadãos, da ampliação do espaço das liberdades fundamentais, especialmente em um país como o nosso, em que ainda, lamentavelmente, se evidenciam relações antagônicas e conflituosas que tendem a patrimonializar a coisa pública, o que submete pessoas indefesas e grupos minoritários ao desprezo de autoridades preconceituosas, sem falar na massa enorme de despossuídos, como os povos da floresta e os filhos da natureza — disse o decano.
Antes de indicar Aras para a PGR, Bolsonaro declarou à imprensa que procurava um nome de alguém que não fosse um "xiita ambiental". As declarações do presidente para justificar a escolha do próximo procurador-geral motivaram críticas de membros do Ministério Público, que dizem temer que a instituição perca sua independência.
— Sabemos que regimes autocráticos, governantes ímprobos, cidadãos corruptos e autoridades impregnadas de irresistível vocação tendente à desconstrução da ordem democrática temem um Ministério Público independente — afirmou o decano.
"Meu plano de trabalho era fortalecer a democracia liberal", diz Dodge
Dodge, por sua vez, teceu elogios ao Supremo e agradeceu aos ministros pelo período em que atuou na corte.
— Meu plano de trabalho era fortalecer a democracia liberal e agir com ética e firmeza. Afinal, como primeira mulher neste honroso cargo, queria poder inspirar as brasileiras a realizarem seus sonhos, e, com exemplo, zelo e dedicação, nutrir a esperança de todos no trabalho feminino — disse Dodge.
Ela também destacou a atuação do Ministério Público na defesa das minorias e do meio ambiente e terminou seu discurso falando de ameaças à ordem democrática.
— Permitam-me fazer um alerta para que fiquem atentos a todos os sinais de pressão sobre a democracia liberal, vez que no Brasil e no mundo surgem vozes contrárias ao regime de leis, ao respeito aos direitos fundamentais e ao meio ambiente sadio também para as futuras gerações — disse Dodge.
— Neste cenário, é grave a responsabilidade do Ministério Público e do Supremo Tribunal Federal, seja para acionar o sistema de freios e contrapesos, seja para manter leis válidas perante a Constituição, seja para proteger o direito e a segurança de todos, seja para defender minorias — afirmou.
O presidente do Supremo, ministro Dias Toffoli, também lembrou que Dodge foi a primeira mulher a chefiar o Ministério Público Federal e afirmou que ela exerceu a função com maestria e firmeza.
— Sem um Ministério Público forte, os valores democráticos e republicanos desenhados na Constituição de 1988 estariam permanentemente ameaçados. O Judiciário não age de ofício. É preciso um ator (para provocá-lo) — disse Toffoli, enumerando, em seguida, ações ajuizadas por Dodge.
Os exemplos citados pelo ministro foram uma ação que levou o STF a declarar inconstitucional um trecho da reforma trabalhista que permitia que grávidas trabalhassem em locais insalubres e outra ação que resultou na proibição de a Justiça Eleitoral fazer buscas e apreensões em universidades, na época da campanha eleitoral de 2018.
Naquela ocasião, disse Toffoli, Dodge "fez uma defesa contundente das liberdades de expressão, de manifestação do pensamento, de reunião e de cátedra, bem como do pluralismo de ideias".