Em 2012, o procurador Ivan Marx, do Ministério Público Federal (MPF) em Brasília, foi designado pela coordenadora da 2ª Câmara, Raquel Dodge, para comandar o grupo de trabalho responsável pela investigação de crimes cometidos durante a ditadura militar (1964-1985).
Fora a capacidade de liderança, impressionou-se com o afinco que a nova chefe depositava no serviço.
– Não sei a que horas dormia. Mandava e-mail à 1h e às 5h – recorda Marx.
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Seguidora do estilo "workaholic", Raquel impunha demandas ao grupo, estabelecendo diretrizes e acompanhando o cumprimento de metas. Delegava tarefas, mas também acompanhava de perto o que se passava. Na ação apresentada contra o coronel da reserva Sebastião Curió pelo sequestro de cinco pessoas na Guerrilha do Araguaia, preocupou-se em ler a peça e assinalar sugestões. Embora a voz doce surpreenda, é uma mulher firme.
– Tem esse lado suave, mas sabe se posicionar – acrescenta o procurador.
Aos 56 anos, a goiana de Morrinhos assume a Procuradoria-Geral da República (PGR) nesta segunda-feira, com posse marcada para as 8h. Raquel chega aos posto no momento mais nevrálgico da instituição, quatro dias após seu antecessor, Rodrigo Janot, apresentar a segunda denúncia contra Michel Temer, por organização criminosa e obstrução à Justiça.
– É centralizadora e com gênio bem forte, mas temos expectativa que dê andamento a tudo que foi feito – afirmou um procurador da equipe de Janot.
Escolhida pelo presidente mesmo sendo a segunda colocada na votação interna do MPF, Raquel passou os últimos dois meses sob questionamento da opinião pública. Em agosto, protagonizou encontro fora da agenda com Temer e viu seu nome apontado como ameaça à Lava-Jato. Publicamente, defendeu o aprofundamento da operação, sugeriu que poderia aumentar a equipe e assinalou dedicação para acelerar os processos, garantindo punições mais céleres.
– A Lava-Jato tem demonstrado que ninguém está acima da lei. Farei esforço para que ninguém esteja abaixo da lei – declarou em junho.
Desconforto interno no MPF logo na chegada da nova procuradora-geral
A chefia do MPF não será a estreia de Raquel à frente de casos de corrupção. Em 2010, foi a responsável pela operação que levou à prisão do então governador do Distrito Federal José Roberto Arruda (DEM) _ episódio inédito no país. Também atuou na equipe que denunciou Hildebrando Pascoal, mais tarde conhecido como o deputado da motosserra.
Há uma semana, a procuradora anunciou nomes de sua equipe, levando em consideração "aspectos como a especialização jurídica, o conhecimento dos problemas do país, a experiência profissional dos indicados e a participação profissional feminina". O destaque ficou com o procurador José Alfredo de Paula Silva, com passagem por casos rumorosos como o mensalão e a Zelotes, que assumirá o comando do grupo de trabalho da Lava-Jato. No time, também estão Hebert Mesquita e Luana Vargas, integrantes da força-tarefa da Greenfield, responsável pelo pedido de prisão do ex-ministro Geddel Vieira Lima (PMDB-BA).
No último final de semana, Raquel voltou a ficar sob holofotes, menos pela proximidade da cerimônia na qual vai assumir oficialmente o cargo e mais pela divulgação de medida que contraria seu discurso público, de que os todos os integrantes da equipe de Janot estavam convidados a permanecer na Lava-Jato. A revista Época revelou informação sobre portaria que a nova procuradora-geral deve publicar nesta segunda-feira, na qual estipula prazo de 30 dias para a saída do grupo atual – apenas dois dos nomeados por Janot para a força-tarefa em Brasília devem ser mantidos.
Discrição no lugar do perfil midiático
Tão logo assumir o comando do MPF, Raquel Dodge ainda terá a incumbência de aparar arestas com as demais instituições, como o Supremo Tribunal Federal (STF) e o Congresso. Diante da inevitável comparação com o antecessor, interlocutores a classificam como mais técnica e menos política do que Janot.
Nos bastidores, seu perfil agradou quem estava cansado do que se convencionou chamar de “espetacularização” das investigações. Discreta, substituirá o midiático antecessor.
– Ela (Raquel) tem o equilíbrio suficiente para, sem abrir mão das prerrogativas institucionais, apaziguar as relações, sobretudo com o Supremo – aposta um colega da década de 1990.
Em abril, Raquel e Janot discutiram sobre a restrição da transferência de procuradores em sessão no Conselho Superior do Ministério Público. No colegiado, a procuradora ainda se notabilizou pela atuação implacável no julgamento de casos disciplinares envolvendo colegas.
– É considerada uma das procuradoras mais rigorosas – conta a advogada Marilda Silveira, que defendeu procuradores perante Raquel entre 2014 e 2015.
Causa pessoal lembra aforismo do antecessor
Ao menos uma semelhança entre Janot e Raquel guarda relação com episódio simbólico envolvendo o que deixa o cargo. A gestão da nova procuradora-geral tende a dar espaço a questões de direitos humanos, em razão da sua experiência no combate ao trabalho escravo e na defesa dos povos indígenas e populações tradicionais. Trata-se de uma causa pessoal. Em seu gabinete, parte da decoração é de utensílios indígenas.
Na cerimônia de despedida de Janot, foi marcante a homenagem de membros do MPF que presentearam com um conjunto de arco e flecha, de uma tribo sergipana, o agora ex-chefe e autor de aforismo célebre nos últimos meses: “enquanto houver bambu, lá vai flecha”.