A velha cantilena de que os parlamentares só votam a criação de datas festivas para os calendários federal e estadual não encontra respaldo na realidade. Com atribuição de analisar as pautas e de propor medidas de toda ordem, além de fiscalizar os atos e gastos dos chefes de governo, o Congresso Nacional e a Assembleia Legislativa interferem diretamente na vida do cidadão. Só isso já é motivo suficiente para levar a sério o voto nos candidatos aos três cargos parlamentares em disputa na eleição de 2022: senador, deputado federal e deputado estadual.
São eles que analisam e propõem com frequência leis que causam impacto no seu bolso, seja colocando ou retirando dinheiro dele, por exemplo. A Câmara dos Deputados e o Senado decidem sobre os rumos do país e um presidente têm pouca margem de ação para tomar rumos importantes sem o aval do Poder Legislativo. O mesmo acontece com os governadores em relação a Assembleia Legislativa. Os caminhos a serem percorridos em temas financeiros, administrativos, de assistência social e de saúde, de segurança pública, de educação e até cultural e comportamental passam pelos parlamentares.
Ana Regina Villar Peres Amaral, cientista política e professora especialista em processo e produção legislativa, fez um amplo levantamento sobre as leis aprovadas no Congresso Nacional entre 1988 e 2017 e descobriu o seguinte: os parlamentares foram autores de 75% das 99 emendas constitucionais realizadas no período e de 61% das 102 leis complementares. Esses tipos de legislação, em geral, mexem com questões importantes da estrutura administrativa, financeira e social do Brasil. Logo, não costumam ser utilizadas para assuntos pequenos.
— As emendas constitucionais e os projetos de lei complementar são as normas de maior relevância. O Congresso não só é o maior autor, como ele altera todas as propostas, mesmo as do Executivo são mudadas pelos parlamentares. O papel é muito relevante, sem dúvida. O Congresso é protagonista. Ele discute, modifica e aperfeiçoa — avalia Ana Regina.
Na sequência da reportagem, listamos dez casos concretos que exemplificam como os votos para senador, deputado federal e deputado estadual são tão importantes quanto aqueles confiados a presidente e governador. São ocasiões em que os parlamentares tomaram decisões – ou deixaram de tomar – que influenciaram diretamente no cotidiano do brasileiro.
Cinco decisões do Congresso Nacional que impactaram a sociedade
1 - Reforma da previdência
A aprovação da proposta determinou as idades mínimas para as aposentadorias dos brasileiros: 65 anos para os homens e 62 anos para as mulheres. Essa foi a principal das medidas.
- O que significou a aprovação: os brasileiros terão de se manter no mercado de trabalho por mais tempo antes de se aposentar, observando as idades mínimas. Para a União, as novas regras significaram uma estimativa de economia de R$ 800 bilhões em dez anos.
- Como foi a tramitação: a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 6/2019 foi de iniciativa do governo federal, mas seu avanço contou com especial atenção da Câmara dos Deputados, com empenho pessoal do então presidente da Casa, Rodrigo Maia, que defendia a medida sob a ótica de reduzir o déficit da previdência. A proposta tramitou no Congresso por pouco mais de oito meses, entre fevereiro e novembro de 2019, sendo aprovada pela Câmara e pelo Senado.
2 - Lei Maria da Penha
Um marco na proteção da mulher, a legislação teve origem no governo federal, em 2004, mas contou com amplas discussões feitas no Congresso. Antes da norma, o Brasil não tinha legislação que tratasse de violência doméstica. A Lei Maria da Penha, homenagem à mulher que sofreu tentativa de feminicídio e ficou paraplégica, trouxe uma série de mudanças para coibir, prevenir e punir a violência doméstica. Foram definidas como formas de violência a física, a sexual, a patrimonial e a moral. A violência psicológica também foi incluída na lista. Em 2018, a Lei Maria da Penha foi alterada, por iniciativa do Parlamento, para classificar como crime a atitude do homem que descumprir as medidas protetivas de urgência.
- O que mudou com essa lei para a mulher: pode buscar medidas protetivas contra agressores, como afastamento do lar. Passou a ser dever do governo federal, dos Estados e Municípios oferecer atendimento especializado para as vítimas de violência nas Delegacias da Mulher, entre outras formas de acolhimento. Para o homem agressor, o que mudou é que a conduta violenta pode ser enquadrada como crime e ele pode ser preso preventivamente a qualquer momento, caso seja do entendimento do juiz.
- Como foi a tramitação: iniciou em dezembro de 2004 na Câmara dos Deputados, por iniciativa do Poder Executivo. Passou por debates, alterações e textos substitutivos em pelo menos quatro comissões temáticas da Câmara, até ser aprovado em março de 2006. A apreciação no Senado foi mais breve e, em 7 de agosto de 2006, a Lei Maria da Penha era realidade. Mais de 15 anos após a entrada em vigor, segue em plena aplicação.
3 - Auxílio emergencial de R$ 600 na pandemia
O Brasil, em março de 2020, começava a viver os dias mais intensos da pandemia de coronavírus. O governo federal havia anunciado um auxílio emergencial de R$ 200, mas o Congresso entendeu que o valor era insuficiente. A Câmara tomou a dianteira e adquiriu protagonismo para assegurar um auxílio emergencial mais elevado e fez andar rapidamente uma proposta de origem legislativa. Na primeira versão do texto da Câmara, a ajuda foi estabelecida em R$ 500, ante os R$ 200 anunciados pelo Ministério da Economia. Após negociação em plenário com líderes governistas, o Executivo aceitou fechar o valor em R$ 600. Inicialmente, a projeção era pagar três parcelas do benefício e alcançar cerca de 30 milhões de pessoas. Com a extensão da pandemia, o auxílio emergencial acabou prorrogado posteriormente e alcançou número ainda maior de beneficiários.
- O que mudou: foi uma construção originária do Congresso que reduziu os danos da crise sanitária na vida das pessoas. Para milhares de brasileiros, incluindo trabalhadores informais, pessoas de baixa renda e microempreendedores individuais, o que mudou com a proposta foi ter R$ 600 mensais para as necessidades mais urgentes, sobretudo de alimentação.
- Como foi a tramitação: a Câmara aprovou o auxílio emergencial de R$ 600 em 26 de março de 2020, poucos dias após as primeiras restrições de circulação para combater o coronavírus. Foi usado um projeto de lei que tramitava desde 2017 para fazer a redação do auxílio emergencial, com a apresentação de um texto de substituição. O Senado também garantiu aprovação breve e o auxílio emergencial virou lei em 2 de abril de 2020.
4 - Lei da Ficha Limpa
A lei entrou em vigor em junho de 2010, fruto de ampla mobilização popular pelo fim da impunidade. A partir dela, ficaram impedidos de concorrer a cargos públicos os condenados em processos criminais em segunda instância. A mesma proibição vale para políticos que tiveram mandatos cassados ou que renunciaram para evitar a perda do cargo público. Candidaturas também podem ser barradas em casos de rejeição de contas de agentes públicos.
- Como está hoje: a legislação segue impedindo que condenados em segunda instância concorram a cargos públicos.
- Como foi a tramitação: um projeto de iniciativa popular recebeu 1,6 milhão de assinaturas e a proposta, batizada Ficha Limpa, foi apresentada em setembro de 2019, sendo vinculada a outro projeto semelhante, do governo federal, que estava empacado desde 1993. Um grupo de trabalho foi criado na Câmara para debater e analisar melhorias. O andamento pegou ritmo, as ideias iniciais foram tornadas mais rígidas e, em maio de 2010, mesmo a contragosto dos líderes partidários, a Lei da Ficha Limpa foi aprovada com 388 votos sim e apenas um contrário. O Senado referendou com a unanimidade de 76 votos. Em junho de 2010, a Ficha Limpa era realidade.
5 - Correção da tabela do Imposto de Renda
A tabela do Imposto de Renda (IR) está sem correção desde 2015 e vários projetos para mudar isso ficaram travados no Congresso. Isso significa que, a cada ano, pessoas que ganham menos estão tendo que pagar mais tributos e declarar as contas à Receita Federal. Pelas regras atuais, o pagamento do IR é devido por quem recebe R$ 2.379,97 mensais, somando R$ 28.559,70 ao ano. Ou seja, trabalhadores que recebem pouco menos de dois salários mínimos estão tendo de declarar e recolher o imposto.
- O que isso significa na sua vida: menos dinheiro para as pessoas gastarem no comércio, por exemplo, e fazer a economia girar; e mais dinheiro na conta do governo. Essa discussão no Congresso é importante porque pode trazer mudanças na vida financeira de milhares de brasileiros.
- Como está a tramitação: são pelo menos nove projetos tramitando no Senado para fazer a correção da tabela do IR. Essa eventual correção faria subir a faixa de corte para definir os que devem declarar e pagar. Ao elevar essa medida, mais trabalhadores devem ficar isentos do compromisso, inclusive o de recolher o imposto. Dos nove projetos, um é de autoria do governo federal, de 2021, e chegou a ser aprovado na Câmara, mas empacou no Senado devido a polêmicas em torno de outras medidas previstas, como tributação de lucros e dividendos. Outros oito projetos de senadores que buscam corrigir a tabela e rever o atual cenário também estão sem previsão de avanço. Será tarefa do próximo Congresso discutir o tema.
Cinco decisões da Assembleia Legislativa do RS que impactaram a sociedade
1 - Rejeição às câmeras nos uniformes policiais
Em dezembro de 2021, por 29 votos contrários a 16 favoráveis, a Assembleia rejeitou o projeto que transformava em política definitiva a instalação de câmeras nos uniformes de policiais e viaturas no RS. O debate sobre a política afeta a sociedade porque trata de medida de controle sobre o trabalho do policial, profissional que interage diariamente com a comunidade. Para os defensores da ideia, a adoção das câmeras ajuda a coibir e solucionar eventuais excessos cometidos pelos agentes de segurança. Também é apresentado o argumento de que os vídeos ajudarão a proteger os policiais em caso de denúncias falsas. De outro lado, há críticas de que a medida pode levantar desconfiança prévia e intimidar o agente quando for necessário agir. Esse debate deverá voltar à pauta de discussão da Assembleia no próximo ano. O governo estadual, enquanto isso, prepara o lançamento de uma licitação para adquirir câmeras, mas em uma decisão administrativa, sem força de lei e que pode ser abandonada a qualquer momento.
- Como foi a tramitação: a proposta era de autoria parlamentar e foi aprovada em duas comissões da Assembleia, mas acabou derrotada em plenário em dezembro de 2021. Autora do projeto, a deputada estadual Luciano Genro (PSOL) reapresentou o projeto, que está em análise na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ).
2 - Proibição do consumo de bebida alcoólica em estádio de futebol
Desde 2008, por consequência de uma lei de origem parlamentar do então deputado estadual Miki Breier (PSB), está proibida a venda e o consumo de bebida alcoólica nos estádios de futebol do RS.
- Essa medida é um bom exemplo da extensão dos poderes e funções dos deputados: eles podem decidir sobre questões financeiras, administrativas e tributárias, mas seus votos também podem afetar hábitos e culturas de lazer. Estão em jogo argumentos sobre o quanto a lei seca nos estádios ajuda a prevenir a violência, além de aspectos econômicos e de liberdades individuais.
- Como está a tramitação: a medida entrou em vigor logo após aprovada, em 2008, retirando a bebida alcoólica dos estádios. Mais recentemente, cresceram os movimentos pelo retorno do comércio e do consumo. No final de 2018, a Assembleia aprovou um projeto que liberava a bebida em parte dos jogos. Mas, no início de 2019, o ex-governador Eduardo Leite vetou a medida. O veto foi mantido depois pelos deputados. Atualmente, corre na Assembleia, na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ), o projeto de lei 466/2021. O texto prevê a liberação da cerveja. Esse projeto deverá ser votado pela próxima composição da Assembleia.
3 - Privatização da CEEE
Por decisão da Assembleia Legislativa, o ex-governo Eduardo Leite ficou desobrigado de realizar uma votação popular, o chamado plebiscito, para saber se a população gaúcha era contra ou a favor da venda da Companhia Estadual de Energia Elétrica (CEEE) à iniciativa privada. A decisão acelerou os planos do governo, que concluiu a negociação dos três braços da companhia: o de distribuição, o de transmissão e o de geração.
- Na vida da população, isso traz mudanças para o cotidiano: nos casos de queda ou ligação de energia e estragos em temporais, a população passou a ter de chamar uma empresa privada, a Equatorial, que comprou a CEEE-D, que passou a adotar novos procedimentos e prazos. Ou seja, mudaram as relações da prestação de um serviço essencial que, há décadas, envolvia o Estado e a população.
4 - Devolução de imposto
A Assembleia Legislativa aprovou, em dezembro de 2020, a proposta do governo para criar um programa de reembolso das famílias de baixa renda pelo pagamento do Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS), principal tributo estadual. Compras em mercados ou lojas, por exemplo, vem com o acréscimo do ICMS de forma igual para todos os consumidores. Por isso, em termos proporcionais à renda, o ICMS é mais pesado para os pobres.
- O que mudou para a população: a partir da autorização da Assembleia, foi criado pelo governo o programa estadual Devolve ICMS. Ele garante o pagamento fixo de R$ 400 ao ano, dividido em quatro parcelas, às famílias carentes. Os repasses começaram a ser feitos em dezembro de 2021. Atualmente, são 527 mil beneficiários no RS. A diferença é que isso coloca mais R$ 400 no bolso de pessoas humildes que estão no Cadastro Único (CadÚnico), porta de entrada para outros programas sociais.
5 - Precatórios
Em julho de 2022, a Assembleia Legislativa autorizou o Estado a pegar um empréstimo de US$ 500 milhões para pagar precatórios. Esses títulos são ordens de pagamento expedidas pelo Judiciário em função de ações movidas por pessoas ou empresas contra o Estado. Em geral, envolvem discussões salariais, desapropriações e cobranças indevidas de impostos. Em dados de julho, o RS devia cerca de R$ 17,2 bilhões em precatórios para mais de 67 mil credores. O empréstimo, que será feito junto ao Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), alcança cerca de R$ 2,6 bilhões, considerando a cotação do dólar de 31 de agosto. O valor será utilizado para pagar os precatórios no chamado regime de conciliação, em que o credor aceita dar um desconto de até 40% no seu título e, assim, recebe preferência na fila. Considerando o desconto, estima-se que será possível diminuir a dívida de precatórios em cerca de R$ 4,5 bilhões.
- Como isso reflete na vida das pessoas: garante o pagamento, ainda que com desconto, a milhares de pessoas que estavam na fila, algumas delas há anos, aguardando por um dinheiro que é seu por direito. Parte dos credores é idoso e tem pressa no recebimento. Ao Estado, ajuda a reduzir a fila de espera, que terá de ser zerada até o fim de 2029. Além de ter autorizado o empréstimo, a Assembleia acumula largo histórico de discussões e audiências públicas em favor do pagamento dos precatórios aos seus portadores.