“Diante da impossibilidade de poder seguir jogando e render no futuro nas condições pelas quais fui contratado, como consequência do desgaste de meu joelho, proponho um acordo de encerramento mútuo do contrato”.
Esta frase faz parte da carta assinada por Luis Alberto Suárez Diaz e endereçada ao presidente do Grêmio, Alberto Guerra, em 20 de junho de 2023. Neste mesmo dia, Zero Hora revelava que o uruguaio havia manifestado sua intenção de interromper a carreira. Com apenas seis meses vestindo a camisa Tricolor, o jogador já tinha alcançado status de ídolo no clube.
Carta assinada por Luis Suárez
Não é pela carta, porém, que a direção gremista fica sabendo da intenção do camisa 9 em deixar a Arena precocemente. A novela havia se iniciado bem antes, em 30 de maio. E se estende até 26 de julho. Com base em apuração realizada nos últimos meses, Zero Hora revela bastidores dos 57 dias de tensão, desde a queixa de dor no joelho direito, passando pela carta, por duros debates acerca do pedido de rescisão e terminando com a permanência do uruguaio até o final de 2023 — um ano antes do previsto em contrato.
Para entender os detalhes daqueles quase dois meses, é preciso voltar ao final do ano anterior. A intenção de trazer Suárez ao Grêmio fazia parte da campanha do então candidato Alberto Guerra. Quinto maior artilheiro em atividade no mundo na época, o uruguaio encabeçava a lista de reforços. Eleito em novembro de 2022, o dirigente intensifica a negociação com representantes do uruguaio, que havia jogado o último semestre pelo Nacional-URU. Após quase um mês de conversas, o acordo é selado, com contrato por dois anos (2023 e 2024).
Começo dos sonhos
O início da passagem de Suárez no Brasil traduz tudo o que a torcida gremista esperava. Três gols na estreia, vitórias, gol em Gre-Nal e o título gaúcho com pênalti sofrido e batido por ele. Tem desempenho sempre elogiado, correndo até o final das partidas, raramente sendo substituído.
Mas uma decisão em Miami, em maio, transforma o ambiente. E diz respeito a um grande parceiro de Suárez. Sem conseguir retornar ao Barcelona, Lionel Messi ruma para o futebol norte-americano para ser o rosto da Major League Soccer (liga dos EUA). Assume a camisa 10 do Inter Miami. Para aproveitar ao máximo a experiência, o craque argentino quer o melhor amigo ao lado. É a partir daí que o Grêmio entra no que Renato Portaluppi define como "novela mexicana".
“No puedo más”
No dia 30 de maio, véspera da partida contra o Cruzeiro, o jogador relata para a comissão técnica que "estava se sentindo desgastado fisicamente". É o primeiro capítulo da novela.
Em 4 de junho, o primeiro baque. Pessoas ouvidas por Zero Hora relatam que Suárez, no vestiário da Arena, após a vitória sobre o São Paulo, reclama de forma incisiva das dores e diz que vai “parar de jogar”.
Apesar do desconforto, pede para estar em campo contra o Flamengo, no Maracanã, no dia 11. É no Rio que ele se manifesta com veemência. Após atuar os 90 minutos na goleada sofrida (3 a 0), o jogador diz ao presidente Alberto Guerra, no túnel que leva ao vestiário.
— No puedo más.
A frase aumenta a preocupação na cúpula gremista. A partir desse episódio entra em cena outro protagonista. Ivan Zaldua, advogado do uruguaio, procura a direção em 19 de junho. Mesma data em que o então vice de futebol, Paulo Caleffi, informa ao presidente que o jogador pretende parar de jogar.
No contato feito pelo advogado, vem um aviso de que seu cliente não atuaria mais. Seriam apenas mais dois jogos com a camisa tricolor: América-MG, no dia 22, e Coritiba, dia 25, ambos em Porto Alegre.
O Grêmio também alinhavava uma estratégia para proteger um dos principais ativos da instituição. O que ocorria apenas em conversas é posto no papel, a pedido do clube. No dia 20, Guerra recebe a carta assinada por Suárez formalizando sua intenção de rescindir o contrato. Em 15 linhas, o uruguaio se repete alegando a necessidade de deixar o clube em função das dores no joelho direito. E diz autorizar o Grêmio a seguir explorando sua imagem até dezembro de 2024.
Reunião extraordinária de crise
No mesmo dia, outro contato realizado por Zaldua sugere pressa para um desfecho. O advogado manifesta o desejo de resolver o caso em até 24 horas.
Era naquele 20 de junho também que Zero Hora divulgava, com exclusividade, a intenção do jogador de parar de atuar. Nas conversas com a direção, Zaldua propõe “rescisão de acordo mútuo”. O clube contesta, já que a vontade era só do atleta. O representante do uruguaio insiste que saída do Grêmio se daria por um problema físico, o que levaria a um entendimento de desfecho consensual. E, diante do impasse, o advogado aponta dois caminhos:
- Suárez se afastaria dos gramados (recebendo salário);
- Ou sua saída se costuraria num "mútuo acordo", atrelado a uma compensação financeira (o que se passaria a ser discutido nos dias seguintes).
Reunião extraordinária
A novela e a forma da possível rescisão exigem uma reunião extraordinária em 25 de junho, na Arena, convocada pelo presidente gremista. Alberto Guerra, o CEO Márcio Pinto Ramos, o então vice de futebol, Paulo Caleffi, o diretor-executivo, Luis Vagner Vivian, e membros do Conselho de Administração permanecem por quatro horas reunidos. Por ordem de Guerra, é definido que o assunto sairia da supervisão de Caleffi e passaria a ser conduzido por um comitê. O CEO faria a interlocução com Zaldua, mas com o rumo da negociação debatido e decidido por um grupo formado por outros dirigentes: o vice-presidente do Conselho de Administração Luciano Feldens, o chefe de gabinete da presidência, Alexandre Rossato, e Luis Vagner Vivian.
Também nesse encontro é traçada a linha do tempo com os episódios que antecederam a carta de Suárez.
A troca de interlocutores
Três dias depois da reunião, Caleffi é demitido do posto de vice de futebol, herdado pelo então diretor, Antonio Brum. A mudança é justificada pelo fato de o ex-dirigente não ter atendido a determinação de Guerra de que o assunto seria tratado pelo grupo montado. E também pela estratégia anterior não ter o sucesso esperado. Com os novos interlocutores, o Grêmio fecha o consenso de não abrir mão de seu craque. Mesmo que o jogador acabasse cumprindo as ameaças veladas de não jogar mais, ficando no departamento médico.
Como representante do jogador, Zaldua conduz uma série de contatos com a direção na busca por um acordo que garantisse a liberação do camisa 9. A posição do lado do atleta muda diversas vezes. Quando confrontado com a validade do contrato, ele defende que Suárez cumpra o acordo. Em outros momentos, cita que seria melhor para o clube construir um acordo e deixar de pagar os salários de alguém que não teria como ajudar em campo.
O valor proposto por Suárez
Nesse vaivém, o Inter Miami segue aguardando um desfecho. O prazo para inscrevê-lo a tempo de jogar ainda em 2023 se encerra em 2 de agosto. Para viabilizar a saída "consensual", Zaldua anuncia uma oferta. Suárez pagaria US$ 7 milhões e devolveria tudo que tinha sido pago a ele entre janeiro e junho. O montante calculado ficou em US$ 9.550.079,06 (cerca de R$ 45 milhões na época).
Com a delegação em Salvador para dois jogos contra o Bahia, um novo episódio aumenta a tensão. No dia 2 de julho, o interesse do Inter Miami é oficializado. Na véspera, Suárez havia jogado a partida pelo Brasileirão. Mas, no duelo mais importante, o de ida das quartas de final da Copa do Brasil, no dia 4, ele fica fora. Interrompe o aquecimento no campo alegando dores. Na partida da volta contra os baianos, na Arena, no dia 12, o camisa 9 é substituído na reta final do jogo e fica de fora das cobranças de pênaltis, que classificam o Tricolor às semifinais. No vestiário, Suárez volta a pedir a Guerra para ser liberado. E ouve:
— Não vai sair. Não é uma questão de dinheiro — diz o presidente, segundo fontes ouvidas por ZH que presenciaram a conversa.
O longo debate por uma data
A insatisfação de Suárez não muda a posição do Grêmio, respaldado por contrato até dezembro de 2024. O clube coloca uma série de exigências. Além de não aceitar a ideia de mútuo acordo, exige a presença do centroavante em campo até o fim da participação gremista na Copa do Brasil. Depois disso, se ainda tivesse a intenção de romper o contrato, Suárez deveria incluir uma cláusula estipulando um prazo no qual não poderia jogar, uma vez que alegava grave problema de joelho.
Não vai sair. Não é uma questão de dinheiro
ALBERTO GUERRA
Sobre possível saída de Suárez do Grêmio
Zaldua argumenta que o atleta ficaria um tempo sem atuar, tratando da lesão, mas que, uma vez pagando quase US$ 10 milhões ao Grêmio, não se comprometeria com uma data de retorno aos gramados (provavelmente com a camisa do Inter Miami). Como parte da estratégia para segurá-lo, o clube exige que a data de um possível retorno aos campos seja 1° de novembro (data posterior ao fechamento da janela dos EUA), o que não é aceito pelo atleta.
Enfim, um acordo é selado
Como não avança no propósito original, Zaldua deixa de ser o representante do jogador na reta final da negociação. No dia 21 de julho, o advogado comunica que o novo responsável é Sebastián Verdes, que é casado com a irmã de Sofi Balbi, esposa de Suárez. O profissional ajuda na rotina da família e gerencia o projeto esportivo do atleta no Uruguai.
Com Verdes no comando das conversas, o último dominó cai. Na véspera da partida contra o Flamengo, o acordo que anteciparia o fim do vínculo para dezembro se desenha. Sem prazo para ir aos EUA, Suárez aceita seguir no Grêmio. Em 26 de julho, minutos antes da derrota por 2 a 0 para o Flamengo no jogo de ida da semifinal da Copa do Brasil, na Arena, Renato anuncia que a novela chegava ao final. Suárez e a direção acertam antecipar o fim contrato para dezembro de 2023, um ano antes do previsto. Esse, sim, um acordo mútuo, sem envolver dinheiro.
Segundo Luciano Feldens, a alteração na interlocução com o jogador assegurou a preservação dos interesses do Grêmio ao se chegar ao termo com Suárez. Algo que, na avaliação do vice-presidente, ficou evidente no esforço demonstrado pelo jogador até o final da temporada.
Procurado por Zero Hora para falar sobre a negociação, Caleffi afirmou que já tinha deixado o clube no momento do desfecho, que ficou sabendo de algumas coisas pelo jogador e seu estafe, mas sem ter participação nas conversas. O ex-vice de futebol reitera que sabia que a questão da aposentadoria não se confirmaria. Sobre sua saída do cargo, entende que o fato ajudou a "explodir" o ambiente do clube e a criar o clima para a permanência de Suárez. Até a publicação deste texto, Zaldua não havia respondido os contatos da reportagem.
“Obrigado por não ter me deixado sair”
Em campo, o sonho do hexa na Copa do Brasil não se realiza (time é eliminado pelo Flamengo), mas Suárez é peça decisiva na arrancada para o vice-campeonato brasileiro.
A partir do novo acordo, Suárez faz 22 jogos. Marca 13 gols e dá oito assistências. Rendimento semelhante ao período pré-crise, mas contra adversários muito mais fortes do que os encontrados no Gauchão. Antes, foram 14 gols e oito assistências em 26 partidas. Durante o período de incerteza, marca dois gols e dá uma assistência em seis jogos.
Suárez vai embora de Porto Alegre com a família após a temporada terminar, em 8 de dezembro. Deixa o Brasil com a Bola de Ouro, prêmio dado ao melhor jogador do Brasileirão, e como protagonista de um time que devolveu o Grêmio para a Libertadores e que superou as expectativas com o vice-campeonato brasileiro.
Uma passagem que, mesmo nos momentos mais difíceis, obedeceu a uma promessa feita por ele em sua primeira entrevista, em 5 de janeiro:
— Prometo entrega, companheirismo, atitude, garra e gols.
Antes de deixar o Brasil, após o jogo contra o Fluminense, no desfecho da Série A, no mesmo vestiário do Maracanã onde disse "no puedo más", Suárez e Guerra travam um diálogo em tom diferente do ocorrido em 11 de junho.
— Obrigado por não ter me deixado sair — agradece o jogador ao presidente gremista.
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