O entulho e o lixo amontoados nos cantos somam-se à grama alta concentrada em trechos da lateral e da frente do prédio que abrigou, até julho de 2016, o Instituto de Educação General Flores da Cunha (IE). Com as obras interrompidas desde setembro de 2019 por falta de pagamento, julho deste ano promete ser o mês da retomada dos trabalhos. E a previsão de término dos reparos está apontada para dezembro de 2022, segundo a Secretaria Estadual da Educação (Seduc).
Atualmente, os trabalhos estão parados porque foi solicitado um pedido de aditivo no contrato por parte da empresa contratada, a Concrejato Serviços Técnicos de Engenharia S/A, informa a Seduc. De acordo com a pasta, atualmente, a “análise do pedido estava em fase de tramitação, entretanto, devido ao decreto de situação de calamidade pública no Rio Grande do Sul em função do coronavírus, no início de 2020, diversas atividades foram restringidas. Entre elas está a área da construção civil. Todos estes fatores contribuíram para que o cronograma da obra fosse alterado”.
No arranca e para das obras do prédio de 86 anos, o que restou pronto foi a construção de um sobretelhado “que possibilitará as obras no sistema de cobertura sem que as condições climáticas afetem os serviços. Também foram realizadas a restauração das esquadrias externas e o tamponamento, bem como a demolição, retirada de entulhos e consolidações”, detalha a Seduc. Isso corresponde a um total de 18,8% de todos os reparos previstos.
Faltam ainda os serviços de restauração, instalação de redes de infraestrutura, de elevador, de plataformas elevatórias, de rampas de acesso, de pavimentações externas e comunicação visual, entre outros. A pasta conta com um investimento proveniente do Fundo Nacional de Educação. Conforme a Seduc, o valor será de R$ 22,9 milhões, sendo que R$ 9,1 milhões são referentes ao total da mão de obra e R$ 13,7 milhões são relativos à compra dos materiais de construção.
Devido à reforma, os 1.287 alunos da instituição estão distribuídos em quatro escolas estaduais da mesma região: Felipe de Oliveira, Rio Branco, Professora Dinah Néri Pereira e Roque Callage.
TCE cobra celeridade do governo do Estado
A demora na conclusão dos reparos chamou atenção do Tribunal de Contas do Estado (TCE). O problema passou a fazer parte dos relatórios de auditorias realizadas na Seduc e na Secretaria de Obras, Saneamento e Habitação do Estado. De acordo com o órgão, as obras se prolongam desde 2012 (ano em que foi feito o empréstimo junto ao Banco Mundial para viabilizar os reparos), sem que haja um encaminhamento efetivo para a sua conclusão.
O TCE aponta que um dos motivos desse atraso é a “alocação insuficiente de recursos nas obras”. No orçamento de 2020, por exemplo, estava prevista a quantia de R$ 1,5 milhão para reforma do IE enquanto a obra, como um todo, havia sido contratada por R$ 22,9 milhões. Ou seja, foram alocados na obra R$ 125 mil mensais, o que corresponde a 9,81% do valor do custo mensal da reforma, sinaliza o conselheiro do TCE Cezar Miola:
— A questão central diz respeito à necessidade de se garantir verbas suficientes em um prazo razoável de tempo para a execução da reforma, e a iniciativa do projeto de lei orçamentária é do Poder Executivo. Houve, então, a análise dessa matéria nas contas do governador, o que levou o TCE a recomendar a adoção de medidas com o intuito de se ver concluído o projeto, com toda a sua riqueza do ponto de vista histórico e cultural, e também a retomada das atividades escolares, que constitui o objetivo central desse patrimônio do Rio Grande do Sul.
Após a recomendação, em março deste ano, o Piratini assegurou que a retomada das obras estaria prevista para 2021, com alocação de R$ 5 milhões no projeto neste primeiro ano. Ficou estabelecido ainda que, no prazo máximo de três meses, o Estado deve apresentar um cronograma para a conclusão das obras, que deverá ser acompanhado pela equipe técnica do TCE. Porém, o prazo para envio desse plano de ação não começou a correr ainda. A Seduc informou que aguarda os trâmites da análise do termo aditivo e entregará o cronograma dentro do prazo estabelecido.
Ali pulsava uma escola que contribuía para a formação das crianças e jovens do Rio Grande Sul. Agora, ela está deixada de lado, e isso é muito triste, porque a educação é a ponte que nos leva à mudança, a novas soluções. A escola de qualidade não pode ser privilégio de alguns
MARIA DA GRAÇA GHIGGI MORALES
Integrante da Comissão de Restauro e presidente do CPM do IE
Integrante da Comissão de Restauro e presidente do Conselho de Pais e Mestres (CPM) do IE, Maria da Graça Ghiggi Morales, afirma que vários protestos foram promovidos em frente ao colégio com o intuito de pressionar o Piratini para a retomada da reforma. Para ela, o IE está esquecido:
— Ali pulsava uma escola que contribuía para a formação das crianças e jovens do Rio Grande Sul. Agora, ela está deixada de lado, e isso é muito triste, porque a educação é a ponte que nos leva à mudança, a novas soluções. O desenvolvimento parte dali, e escolas boas, como o IE era, precisam estar disponíveis para os estudantes. A escola de qualidade não pode ser privilégio de alguns.
Vaivém na reforma
Ainda que o empréstimo tenha sido obtido em 2012, o colégio foi fechado para a reforma somente em julho de 2016, e as obras da Portonovo Empreendimentos e Construções Ltda. começaram no mês seguinte. A expectativa era de que tudo estivesse pronto entre julho e agosto de 2017. Porém, os problemas começaram a aparecer. Com atrasos na obra, o Estado optou por romper com a empresa por esse motivo.
O atraso implicou um segundo problema. Em fevereiro de 2018, a demora fez com que a Seduc perdesse a verba que possuía para a obra. O repasse do Banco Mundial foi interrompido, e a pasta passou a usar dinheiro do próprio Tesouro do Estado para efetuar os trabalhos.
Em abril de 2018, o governo do Estado elaborou uma nova licitação. Os serviços foram retomados em outubro de 2018, dessa vez, com a Concrejato.
Houve novos percalços. Por falta de pagamento, a construtora paralisou os trabalhos em setembro de 2019. Em novembro do mesmo ano, as secretarias de Governança e Gestão Estratégica, Educação, Fazenda, Obras e Cultura criaram um grupo de trabalho que tinha como missão estudar e analisar alternativas técnicas e financeiras para entregar a obra.
O recomeço dos trabalhos foi prometido para janeiro de 2020. Porém, conforme a Seduc, os planos foram atrapalhados pela pandemia. No decorrer de 2020, a Concrejato fez um pedido de aditivo no contrato. No mesmo ano, a análise do pedido começou a tramitar, e as conversas entre o governo do Estado a construtora seguem até hoje, apesar de a previsão de volta aos trabalhos estar estimada para julho.
IE surge em um contexto de vazio educacional no RS
O IE é a mais antiga instituição de ensino formadora de professores ainda em atividade no Brasil. A história da escola se concretizou, em 1935, no prédio da Avenida Osvaldo Aranha, no bairro Bom Fim, mas começou muitos anos antes.
Ex-aluna, ex-professora de História do IE e pesquisadora sobre a escola desde a década de 1980, Regina Schneider conta que a instituição surgiu no Rio Grande do Sul em uma época em que a educação era considerada irrelevante pela maioria da população:
— Nos anos 1800, se priorizava o uso dos filhos na mão de obra doméstica, para ajudar no sustento da casa. Naquele tempo, as aulas eram esparsas, mais voltadas aos meninos e com foco na aprendizagem de operações aritméticas básicas, leitura, escrita e doutrina cristã. A população era quase totalmente analfabeta. A mudança ocorreu quando o Duque de Caxias percorreu a, na época, província de São Pedro e constatou o grande atraso educacional que a região vivia.
Andanças até chegar ao Bom Fim
Em 5 de março de 1869, a escola foi criada tendo como foco a formação de novos professores para povoar colégios do interior do Rio Grande do Sul. A primeira casa do IE foi no prédio que, hoje, abriga a Biblioteca Pública do Estado. Em 1873, a nova sede passou para o prédio que faz esquina com as ruas Duque de Caxias e Mal. Floriano Peixoto, no Centro Histórico, local onde fica o Colégio Sévigné.
Houve uma nova mudança de endereço, em 1921, quando o IE foi deslocado para a Rua General Auto, bem próximo ao Palácio Piratini. O Instituto foi, novamente, transferido para onde fica o Sévigné nos dias atuais e completou a mudança para o bairro Bom Fim somente em 1937.
— O prédio foi inaugurado em 1935, mas ele não podia receber os alunos porque estava abrigando uma exposição comemorativa do centenário da Revolução Farroupilha. O prédio foi construído em um ano e para a reforma estamos demorando quase cinco. A edificação ainda hoje é muito bonita, imponente, mas na época fez um grande sucesso. O estilo neoclássico, com aquelas colunas inspiradas no Templo de Ártemis, na Turquia, e feitas com pó de mármore são de muito requinte — observa Regina.
O espanhol radicado em Porto Alegre Fernando Corona foi o arquiteto responsável pelo projeto de construção do IE.
Colégio de nomes ilustres
A cantora Elis Regina, a poeta e professora Luciana de Abreu, o primeiro ministro da Agricultura do Brasil no período da República Demétrio Ribeiro e o educador Inácio Montanha foram alguns dos nomes que passaram pelo IE. Mas, além de contar com esses estudantes ilustres, a escola ajudou a melhorar a educação no Rio Grande do Sul. Foi ali, por exemplo, que surgiram os primeiros livros didáticos elaborados no Estado.
Por esse histórico, o ex-aluno do IE e cineasta Frederico Restori, 22 anos, lamenta a situação pela qual o colégio passa:
— O Instituto de Educação parece que simboliza o abandono da educação no Estado. Esse foi o lugar que eu me encontrei como pessoa, como profissional, porque tive a oportunidade de conviver, não somente em sala de aula, mas também nos corredores, com professores incríveis que ampliavam nossas formas de mediação do conteúdo. Então, ver o prédio daquele jeito é desolador, porque passa a sensação de que o que foi construído lá e as pessoas que passaram pelo IE não têm importância.
Por ter estudado de 2012 até 2016 na escola, Restori viveu seu fechamento para a reforma. Ele conta que ajudou a descer cadeiras e mesas e deparou com o imenso vazio em que o prédio se transformou.
— Foi bem impactante porque o IE era amplo, tinha muito pátio. Quando fomos para o Roque Callage, tive uma sensação de sufocamento porque era uma escola praticamente sem pátio que a gente pudesse circular no intervalo, e tinha biblioteca reduzida — relata o jovem, que, dentro das limitações impostas pela pandemia, está em fase de captação de imagens e depoimentos sobre a escola para o documentário que ele codirige chamado IE 150 Anos de Educação.
Os planos para o IE
Regina entende que a reforma da parte física do prédio tombado pelo Patrimônio Histórico Estadual em 2006 é crucial, mas há mais a ser feito:
— Tem que ressurgir toda a parte pedagógica que se perdeu. O magistério é a base de todo o sistema de ensino do país, ele tem uma capacidade de transformação da sociedade gigantesca. Se retomarmos esse projeto com força, o Rio Grande pode voltar a ser a potência que era na educação, anos atrás.
Tem que ressurgir toda a parte pedagógica que se perdeu. O magistério é a base de todo o sistema de ensino do país, ele tem uma capacidade de transformação da sociedade gigantesca. Se retomarmos esse projeto com força, o Rio Grande pode voltar a ser a potência que era na educação, anos atrás
REGINA SCHNEIDER
Pesquisadora
É para um lugar de destaque que a secretária estadual de Educação, Raquel Teixeira, pretende catapultar a escola. Ela afirma que deseja transformar o IE em uma instituição inspiradora e “do amanhã”. A ideia ainda é recente, foi apresentada ao governador Eduardo Leite há menos de duas semanas, e, apesar de não conter detalhes, guarda o propósito de ser uma solução que dialogue com a lógica e o raciocínio.
— Precisamos de uma escola adaptada ao século 21. Por mais glorioso que tenha sido o passado do Instituto, a história não retroage. Pensei em uma escola do amanhã, que preze pela interação, pela robótica, pelo pensamento lógico e tecnológico. Esse viés seria aplicado tanto para alunos do curso tradicional, quanto do magistério, porque precisamos formar professores para esse novo momento de mundo. Temos que amadurecer a ideia, mas estou entusiasmada com o que está por vir — afirma Raquel, que ainda não conversou com a comunidade escolar sobre esse projeto, mas afirmou que marcará uma reunião com o CPM do IE “o mais breve possível".
Cronologia das obras no IE
2012
Empréstimo do Banco Mundial (Bird), no valor de R$ 22,5 milhões, viabiliza o restauro completo da escola. O valor foi solicitado no governo de Tarso Genro.
Janeiro de 2016
É assinada pelo Piratini a ordem de início dos trabalhos. A previsão era de que as obras durassem 18 meses. Alunos da Educação Infantil são transferidos para um anexo da Escola Estadual de Ensino Fundamental (EEEF) Felipe de Oliveira. O ginásio, que já estava interditado, é o primeiro local a ter obras.
Julho de 2016
O Instituto de Educação é fechado e os mais de 1,5 mil alunos são transferidos para outras duas escolas da Capital.
Agosto de 2016
A Portonovo Empreendimentos e Construções Ltda., empresa vencedora da licitação, inicia as obras. A previsão inicial era de que a obra fosse concluída entre julho e agosto de 2017.
Agosto de 2017
Governo rompe o contrato com a empresa por causa do atraso na reforma.
Fevereiro de 2018
Devido ao atraso na entrega das obras, a Secretaria Estadual de Educação perde os recursos do Bird. O contrato entre a instituição e o governo do Estado previa a utilização do empréstimo apenas em obras que terminassem até fevereiro de 2019. Depois dessa data, o documento perderia a validade. Como seriam necessários mais 18 meses para o término da execução, a partir do recomeço dos trabalhos, o tempo não seria suficiente para o uso do valor emprestado. Desde então, o governo passou a usar dinheiro do Tesouro do Estado.
Abril de 2018
Governo do Estado lança novo edital de licitação das obras do Instituto.
Outubro de 2018
Empresa Concrejato Serviços Técnicos de Engenharia S/A é selecionada e começa as obras. A promessa era de conclusão dos trabalhos até o início de 2020.
Setembro de 2019
A Concrejato paralisa os trabalhos por falta de pagamento, mas mantém os seguranças no local das obras.
Novembro de 2019
É criado um grupo de trabalho com técnicos das secretarias de Governança e Gestão Estratégica, Educação, Fazenda, Obras e Cultura. O objetivo é analisar alternativas técnicas e financeiras para entregar a obra.
Dezembro de 2019
Governo promete o recomeço das obras a partir de janeiro de 2020. A mesma empresa voltaria ao canteiro para finalizar em seis meses a parte proposta do projeto.
2020
A Concrejato solicita um pedido de aditivo no contrato, informa a Seduc. Em 2020, o pedido começou a ser analisado, porém, o decreto de situação de calamidade pública no Rio Grande do Sul, em função do coronavírus, restringiu atividades, incluindo a da construção civil.
2021
De acordo com a secretária estadual da Educação, Raquel Teixeira, seguem sendo negociados com a Concrejato os termos e valores aditivos ao contrato. A Seduc informou que a retomada dos trabalhos de reforma está prevista para julho deste ano e a conclusão da reforma ficou para dezembro de 2022.