Na Vila Maria da Conceição, zona leste da Capital, um grupo de crianças perdeu mais do que aulas na pandemia. Longe da escola, os estudantes ficaram sem comida. Foram para a rua, em uma área onde a violência impera. Ao identificar o que ocorria na região próxima daquela onde nasceu, criou-se e vive com a família, a professora Angélica Puliesi, 45 anos, levou os alunos para sua casa, no bairro Partenon. Em lições de reforço escolar, recupera parte do que eles deixaram de aprender e ainda oferece lanches a quem não consegue se concentrar devido à fome.
— Eu consegui tirar eles da rua, que não é lugar de criança. E aqui tem uma regra: não pode pensar nem falar de coisas ruins — explica, sobre os temas recorrentes na rua, proibidos porta adentro.
A pedagoga reformou o quarto de uma das filhas, que casou e foi morar com o marido. A peça tem duas janelas, o que ajuda na circulação de ar, medida que minimiza os riscos de contaminação pelo coronavírus — nenhum aluno foi contaminado desde o ano passado, garante.
A casa de madeira, com paredes verdes, é simples e acolhedora, ainda que com problemas estruturais: buracos no piso são tapados por uma tábua de compensado. Quando chove, as goteiras se destacam.
Para acomodar as turmas, Angélica adaptou a mesa de jantar, criando uma classe com quatro lugares — uma cadeira em cada extremidade. Na parede, um quadro negro foi pendurado, ao lado da estante que suporta lápis de cor e livros infantis. Tudo doado.
— Eu fui comprar as cadeiras, custavam R$ 80 cada. Ficava caro pra mim, e o dono da loja disse pra eu voltar no outro dia, que ele ia tentar ajudar. Voltei e ele doou as poltronas, porque gostou do meu projeto. São anjos que me ajudam — relembra.
Nascia o projeto Reforço do Amanhã, com aulas às segundas, quartas e sextas-feiras, no turno da tarde. A iniciativa começou com 11 alunos, em março de 2020. Atualmente, 30 crianças frequentam a classe. As idades variam entre seis e 12 anos, e é levado em conta o nível alcançado por cada um, na formação dos grupos.
Nada é cobrado, e o pagamento, define, é a transformação da comunidade:
— Que eles saibam obedecer, respeitar, fazer coisas boas e serem bons seres humanos.
Desemprego e faxina
A educadora entrou na leva de demissões na escola que atuava e começou a fazer bicos para sustentar a casa e o voluntariado. Diz não sentir qualquer constrangimento pelo que passou durante o período: fez faxinas e bateu em mercadinhos do bairro pedindo por doações.
— Assim como limpo minha casa, fiz faxina para manter meu projeto, para manter em pé, para não parar. Mas tinha dias que eu chorava porque não tinha o que dar pra eles comerem — admite.
Em 2021, voltou a lecionar, em outra escola, no bairro Santo Antônio. Para não deixar de atender seus acolhidos, negou a oferta de emprego em turno integral. Reforço particular, a quem possui recursos, complementam a renda — do próprio dinheiro, mandou imprimir uniformes e uma caneca para cada criança, com objetivo de não haver compartilhamento dos itens.
— Eles precisam de nós. A maioria não tem internet, não tem telefone nem computador. Vem aqui até pra pedir pra fazer cópia das matérias. Até currículo para pai e mãe já pediram — conta.
Com a confiança de que sua escolinha vai crescer ainda mais, Angélica e o esposo, motorista de ônibus, começaram uma obra em frente à residência atual. De alvenaria, a planta prevê dois pavimentos, com o andar superior destinado ao colégio. Orgulhosa, acompanhada do vira-lata Scooby — atração da gurizada —, revela que o dinheiro é curto para finalizar a construção.
— O que mais preciso é material de construção. A mão de obra conseguimos na vila, pois tem muita gente que trabalha com construção — pede.
No próximo sábado (22), um drive-thru solidário irá acontecer na frente de casa, na Rua Nossa Senhora do Brasil, 64. Contatos com a professora podem ser feitos pelo WhatsApp (51) 98580-4274, que também é chave Pix para doações, ou no Instagram @projetoreforcodoamanha.