Depois de encerrada a campanha para a reitoria da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), o professor Carlos Bulhões preferiu, publicamente, o silêncio. Contatado repetidamente para se pronunciar sobre a polêmica envolvendo sua nomeação, definida pelo presidente Jair Bolsonaro mesmo com sua chapa recebendo o menor número de votos entre as três concorrentes dentro da consulta realizada na universidade, procurou se distanciar, afirmando que falaria depois que houvesse uma definição oficial, sendo ele o escolhido para comandar a UFRGS ou não.
Nesta terça-feira (22), um dia após sua posse como novo reitor da UFRGS, Bulhões cumpriu com o prometido. Em entrevista a GZH, falou sobre a campanha, as críticas envolvendo sua nomeação, os protestos organizados por estudantes e também sobre como será daqui para frente: o que prevê de mudanças para a UFRGS, o que deve continuar e o que não pode ser alterado.
Natural de Alagoas e radicado em Porto Alegre há mais de 30 anos, Bulhões é engenheiro civil com doutorado concluído na Inglaterra e pós-doutorado realizado na Universidade da Califórnia, nos Estados Unidos. Recorre com frequência a metáforas ligadas à engenharia e ao ambiente, suas áreas de especialidade, para descrever os próximos passos no comando da maior universidade do Rio Grande do Sul. Como ao afirmar que entrou em um carro andando e não pode olhar pelo retrovisor, pois há buracos à frente. Ou ao descrever a universidade como uma árvore que deve buscar sempre crescer e beneficiar a toda a sociedade.
Nesta entrevista, Bulhões afirma que se sentiu discriminado durante a campanha e até no momento de sua posse. Diz que está familiarizado com situações de conflito e vai buscar resolvê-las com diálogo. E reconhece os bons resultados da UFRGS nos últimos anos ao mesmo tempo em que prega que, diante de uma realidade orçamentária difícil, a universidade precisa passar por mudanças de gestão. Para o novo reitor, agora é hora de deixar a campanha de lado e começar a trabalhar pela união dentro da UFRGS.
Confira, a seguir, a entrevista.
Como foi o dia de ontem, com sua posse e a efetivação como reitor da UFRGS?
Apesar de ter um clima de muita polarização na sociedade, e aqui dentro da UFRGS um pouco também, eu estou com o coração muito tranquilo. E isso nos traz uma segurança muito grande, um senso de propósito. Ao chegar presencialmente aqui na UFRGS (para a posse), estava um clima pacífico. Em determinado horário, eu obviamente vi manifestações, e a gente convive muito bem com isso. Mas estou em uma agenda diplomática: interna, administrativa, e externa, porque a UFRGS tem muito compromisso com a sociedade.
Ao entrar aqui no gabinete, especificamente, foi uma cena de filme. Tudo vazio. Não tinha ninguém aqui. A primeira sensação foi isto: de que a gente chegou após a batalha.
Como o senhor vê os protestos recentes, inclusive exatamente durante sua posse, de estudantes e algumas organizações contra sua nomeação?
Eu respeito. Temos um enorme respeito a qualquer tipo de pensamento contrário. Eu não sou dono de verdade nenhuma. A verdade é sempre relativa, e pode ser, inclusive, que a outra parte esteja correta. O único sentimento é o seguinte: cuidado em manifestações e aglomerações porque ainda estamos na pandemia. Com relação às manifestações, é o direito que compete a cada um, de abrir a boca. Eu não tenho nenhum sentimento contrário a isso. Eu quero ter o direito, inclusive, de eu abrir a boca. Acho que estou tendo, em alguns momentos, a minha liberdade de abrir a boca (cerceada), já que o pensamento é plural e no regimento da universidade são vedadas manifestações político-partidárias e incentivo a discriminações de qualquer natureza. Quando a gente estabelece conceitos sem dar direito ao contraditório, me parece que é um preconceito. O que eu gostaria: através do diálogo – e eu sou um construtor, sou engenheiro, construo pontes, não as destruo –, escutar as partes, entendendo que política é a arte e a técnica de resolver problemas.
Da sua parte, então, não haveria restrições ao diálogo com os estudantes contrários à sua nomeação?
Da minha parte, não tem restrição nenhuma. Nesta semana e na outra, um recurso escasso é o tempo. Eu vou, quando eu puder.
O presidente Jair Bolsonaro falou com o senhor antes ou depois da nomeação? Chegou a lhe parabenizar?
Pessoalmente, eu não conheço o presidente Bolsonaro. Nunca tive qualquer proximidade com ele. Então, não. Não me cumprimentou. Acho que, se eu for a Brasília, a minha agenda é com o ministro da Educação, os presidentes da Capes (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior), do CNPq (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico), das agências de financiamento. Mas, se tiver a oportunidade, eu gostaria de agradecer ao presidente Jair Bolsonaro, e vou agradecer pessoalmente ao ministro Milton Ribeiro, pela confiança em mim depositada, escolhendo o meu nome. Eu quero, sim, agradecer pessoalmente, mas entendo que essa agenda não depende de mim.
A sua nomeação representa uma intervenção do governo federal na UFRGS, como apontam os manifestantes?
Olha, acho que primeiro é legal olhar o dicionário. A palavra "interventor" não tem bem esse significado. Eu não tenho filiação partidária com ninguém, tenho, sim, uma atuação reconhecida no meio acadêmico, nacional e internacionalmente, na minha área. Eu não fiz as regras para a consulta eleitoral para a composição da lista tríplice. Quem fez as regras foi a administração anterior, obedecendo a várias normas federais. Entendo que eu atendi a todas as normas. Todos os seis candidatos (a reitor e vice-reitor) assinaram, no ato de inscrição: "Declaro que, se meu nome estiver na lista tríplice, aceito ser nomeado reitor". Essa foi a condição exigida. Eu assinei, todos nós assinamos.
Se tiver a oportunidade, eu gostaria de agradecer ao presidente Jair Bolsonaro, e vou agradecer pessoalmente ao ministro Milton Ribeiro, pela confiança em mim depositada.
CARLOS BULHÕES
Reitor da UFRGS
O quanto o senhor acredita que essa polarização na universidade vai afetar a sua gestão?
Conviver com o contraditório é uma arte, uma técnica. Eu sempre convivi. A gente tem que conseguir contornar. Isso não quer dizer que se vai ser pautado por qualquer grupo. Independentemente da forma de pensamento – e eu entendo que a UFRGS tem que ter todos os pensamentos –, temos vários princípios em comum. Pode ser até que a gente tenha alguma discordância, mas todos temos princípios em comuns. Quem sabe a gente não começa a construir a sobreposição de pensamentos, e aqueles elementos discordantes a gente joga mais adiante? Eu fico muito satisfeito de enfrentar a situação conflituosa e (depois) ter o resultado. A nossa gestão será marcada pelo compromisso com resultados.
Em relação ao ensino, a UFRGS vem muito bem, sendo reconhecida constantemente como uma das melhores universidades do Brasil e da América Latina. É preciso mudar algo nesse aspecto?
Um problema é a inclusão. Não só na UFRGS, mas em todo o ensino brasileiro, e todos nós temos compromisso com isso. Nós temos índices vexatórios de repetência e de evasão escolar que podem ser agravados com a pandemia. É uma luta gigantesca que nos está sendo autoimposta, mas aí entra a fé e a confiança na UFRGS.
Nós temos índices vexatórios de repetência e de evasão escolar que podem ser agravados com a pandemia
CARLOS BULHÕES
Reitor da UFRGS
E quanto à gestão, o que é preciso mudar na UFRGS?
Em uma sociedade como a nossa, extremamente desigual, a desigualdade em educação no Ensino Fundamental e Médio se materializa com repetência e evasão escolar. Em alguns casos, os alunos entram em quase um sistema, eu diria, de seleção natural. Os mais aptos, cotistas ou não, com professores com apoio pedagógico ou não, vão adiante. Então entra o enorme compromisso de a gente lidar com mais carinho e cuidado dessas assimetrias, já que a gente tem obrigação legal, inclusive, de lidar com essas diferenças
Além da já realizada nomeação de pró-reitores, que outras mudanças na estrutura organizacional da UFRGS o senhor prevê?
Nós temos restrições de várias naturezas. A necessidade de uma reorganização da administração é para dar mais apoio às unidades acadêmicas. A ideia é diminuir o tamanho, fazer mais e melhor aqui por cima (a administração central) para relocar alguns dos funcionários nas unidades acadêmicas. Porque tem demandas. Eu sou o único diretor, eu acho, que transformou minha sala de diretor de unidade em uma sala multiuso, sala de reuniões e sala de aula. Anos atrás. Nos cursos, há exercício de autonomia: não cabe a mim dizer isso ou aquilo. Agora, é o seguinte: se tem cursos que custam 200 alunos e formam 10, me parece que aí nós temos algum problema e vamos ter que conversar.
Se tem cursos que custam 200 alunos e formam 10, me parece que aí nós temos algum problema e vamos ter que conversar
CARLOS BULHÕES
Reitor da UFRGS
O senhor avalia que o ERE (Ensino Remoto Emergencial, que garantiu o retorno das atividades acadêmicas de forma online no mês de agosto, após a suspensão em março) tem trazido bons resultados? Como a universidade deve lidar com o ensino remoto daqui em diante?
Eu sou professor antigo. Gosto do cuspe e do giz. Nada substitui olhar os alunos e tal. Por força das circunstâncias, a gente foi obrigado a mudar. Então a gente está avaliando isso. As agendas do primeiro semestre da UFRGS foram dominadas por uma agenda política, e tem uma pauta acadêmica represada. Esse é o leão que estou matando. A gente tem que ir com muito cuidado até o final do ano. É prematuro dizer se vai ser assim ou assado.
Como devem ser a retomada das aulas presenciais e o vestibular?
A segurança do retorno, só quando nós tivermos as medidas farmacológicas necessárias para o enfrentamento da covid. Por outro lado, tem algumas atividades que são impossíveis de serem virtualmente realizadas. Como práticas de laboratório, estágios. A gente tem que ter algo presencial restrito, sempre obedecendo às autoridades sanitárias, mas ao mesmo tempo me parece que a gente tenha que aumentar a frequência do uso do EAD. É algo híbrido que a gente está avaliando. As próximas semanas são de transição. Nossos pró-reitores estão muito imbuídos disso. Assim que possível, a gente estará liberando os calendários. Como "evaporou" um semestre, diferente de outras categorias quando fazem paralisações, a gente repõe as horas paradas. Então provavelmente em breve, com todos os diretores de unidades acadêmicas, iremos apresentar um calendário acadêmico tentativo, para fins de planejamento, porque provavelmente essa situação de paralisação só se regulariza lá por 2022.
O que significa modernizar a UFRGS, como sua chapa defendeu na campanha? E como fazê-lo?
A UFRGS é a sociedade gaúcha. Eu até usei o simbolismo do dia 21 de setembro, quando tomamos posse, que é o dia da árvore. A árvore, mesmo com forças puxando para baixo, sempre vai para cima, buscando luz. Então, quando eu falo em modernização, é um moderno antigo. Porque o moderno hoje são essas tecnologias, mas o antigo é a natureza humana, é a gente ser útil para a sociedade, esse tipo de coisa que a UFRGS sempre foi. Ao invés de incitar polarizações, divisões da sociedade, que a UFRGS jogue luz em todas as direções, para todo mundo.
Qual sua opinião sobre cotas, políticas de inclusão, ações afirmativas? Prevê alguma mudança nesse sistema?
Durante a campanha, e inclusive até ontem (segunda-feira), eu digo que me senti discriminado. Qualquer tipo de discriminação é odiosa. E vai ser enfrentada na forma da lei. Agora, discutir cotas ou ações afirmativas é contraproducente. Por algo muito simples: é uma conquista social expressa em lei. Lei, a gente não discute, mas cumpre. O problema não é discutir a lei: é tornar ela efetiva. Se eu tenho altas taxas de evasão escolar e repetência, me parece que não estou executando. Essas estatísticas, a gente tem que melhorar. Entrou na UFRGS, é aluno da UFRGS, vai sair gloriosamente pela frente.
Durante a campanha, e inclusive até ontem (dia da posse), eu digo que me senti discriminado
CARLOS BULHÕES
Reitor da UFRGS
A paridade nos votos para a escolha do reitor é uma discussão que o senhor entende que deve ser levada adiante na UFRGS?
É uma questão antiga. Há mais de 12 anos isso sempre vai e volta, se discute e é inconclusivo. Inclusive a gestão anterior prometeu, ainda na campanha de quatro anos atrás, que seria a última vez que se votaria sem a paridade. De qualquer forma, nós temos argumentos legais. Somos autônomos, mas não somos soberanos. Soberania quem tem é o Congresso Nacional, as Assembleias Legislativas e a Câmara de Vereadores. Entretanto, foi, sim, um compromisso. A gente vai entrar com um processo de revisão do nosso Ato Normativo Primário. Isso vai ser desenhado. É um processo longo, que tem que garantir a participação de toda a comunidade.
Ter uma proximidade maior com o governo federal poderá representar, de alguma forma, maior diálogo no sentido de evitar ou diminuir, na UFRGS, os frequentes cortes que o Ensino Superior tem sofrido nos últimos anos?
Eu não consigo lhe responder essa pergunta. Por uma razão muito simples: não conheço, nunca fui apresentado ao presidente da República; não conheço, nunca fui apresentado ao ministro (da Educação); não conheço, nunca fui apresentado ao presidente da Capes; não conheço, nunca fui apresentado ao presidente do CNPq. Pretendo ir lá em Brasília. Entendo que a UFRGS, no contexto nacional, é uma das grandes universidades e, se a mãe é a mesma, é uma briga entre irmãos. A grande luta não é aqui em Porto Alegre, é a luta intransigente por recursos públicos em Brasília. Eu espero ser exitoso. Eu entro e tento conseguir resultados, meu compromisso é esse. E aí eu desconheço se vou ter algum favorecimento ou não. Eu espero que a gente tenha êxito nessa jornada, porque quero ser favorecido e conseguir recursos para a UFRGS atravessar essa turbulência.