Agravada pela pandemia e pela guerra na Ucrânia, a falta de materiais semicondutores utilizados em larga escala em componentes eletrônicos, desde celulares até automóveis, já afeta 70% das empresas gaúchas que usam esses itens, provoca aumento de custos, atrasos na entrega de encomendas e reduz a oferta de produtos ao consumidor.
A expectativa de normalização desse cenário, que afeta países do mundo inteiro, foi adiada deste ano para 2023 e não há perspectiva de curto prazo para que o Estado, em particular, ou o Brasil como um todo deixem de depender do mercado externo. A boa notícia é que o esforço global para reduzir o peso da Ásia no fornecimento dessa tecnologia abre espaço para o crescimento de novas empresas voltadas ao desenvolvimento de chips em um período mais longo — e os gaúchos ocupam posição de destaque nessa área no cenário nacional. Mas, para essa meta se concretizar, é preciso investir em políticas públicas e formação de profissionais especializados.
Semicondutores são um tipo de elemento químico, com destaque para o silício, adequado para a produção de circuitos como microprocessadores, "cérebros" que controlam todo tipo de dispositivo eletrônico, ou a memória utilizada em equipamentos como computadores, entre outros fins. Geralmente conhecidas como chips, as peças minúsculas são desenvolvidas principalmente na Ásia e, com a eclosão da pandemia e do conflito na Ucrânia, passou a haver uma escassez mundial desses artigos.
Esperava-se o restabelecimento das cadeias de produção neste ano, mas as sucessivas ondas de coronavírus, a alta na demanda global e a invasão promovida pelo Kremlin fizeram o cenário se agravar em vez de melhorar — Rússia e Ucrânia são exportadores de matérias-primas usadas na produção dos circuitos, como o gás xenônio e o paládio.
— Desapareceram os chips de média e grande complexidade. Produtos que eram comprados por US$ 14 agora saem por até US$ 150 (de cerca de R$ 65 para mais de R$ 700), quando se encontra. É um problema sério, cujas perspectivas de solução estão nebulosas — afirma o diretor da empresa gaúcha BCM Automação, José Bozzetto, que fornece equipamentos para sistemas de automação industrial, elétrica, predial, entre outras finalidades.
Um recorte regional da pesquisa feita em todo o país pela Associação Brasileira da Indústria Elétrica e Eletrônica (Abinee) aponta que sete em cada 10 companhias gaúchas do setor estão enfrentando dificuldades para adquirir semicondutores, ligeiramente acima da média nacional, de 68%.
Desapareceram os chips de média e grande complexidade. Produtos que eram comprados por US$ 14 agora saem por até US$ 150, quando se encontra. É um problema sério, cujas perspectivas de solução estão nebulosas
JOSÉ BOZZETTO
Diretor da BCM Automação
— Chips que eram entregues em 15 semanas agora demoram 40, 45 semanas para chegar. Começamos a pagar até 10 vezes mais. Por isso, estamos reprojetando equipamentos para poder usar chips alternativos, de outros fabricantes. Nos últimos meses, 80% do nosso tempo é investido para reprojetar, em vez de criar novos produtos — complementa o empresário Aderbal Fernandes Lima, sócio e presidente do conselho da Novus, de Canoas, que exporta equipamentos para mais de 60 países.
O Estado importou R$ 172 milhões em circuitos e dispositivos semicondutores no ano passado. O fornecedor de maior peso é a Coreia do Sul, com 62% das remessas de circuitos e conjuntos eletrônicos — rubrica que respondeu por R$ 131,3 milhões das compras feitas pelos gaúchos. Em seguida aparecem Singapura, Taiwan, China e Tailândia, conforme dados da Secretaria de Comércio Exterior do Ministério da Economia.
Para o consumidor comum, o impacto dessa desorganização global pode ser percebido, na prática, por meio da falta e do encarecimento de produtos que utilizam essas tecnologias. A redução na oferta de celulares pode chegar a 10% neste ano, por exemplo, e a produção de veículos caiu 7,8% no país no mês passado, em comparação com o mesmo período do ano anterior. Ao mesmo tempo, conforme o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), nos últimos 12 meses, a inflação dos produtos eletroeletrônicos ficou em 14,3% pelo Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA) — acima da média geral de 11,3%.
— Estamos com dificuldade muito grande de aquisição, e também para substituir fornecedores, porque às vezes não entregam com a mesma qualidade ou com o mesmo prazo. O mundo inteiro se deu conta de que era muito dependente da Ásia, e agora pensa em iniciar investimentos nessa área. Mas, no curto prazo, tem muito pouco que se possa fazer — sustenta o economista-chefe da Federação das Indústrias do Estado do Rio Grande do Sul (Fiergs), André Nunes de Nunes.
O levantamento da Abinee revela que 45% do empresariado brasileiro acredita em uma normalização do setor eletrônico em meados ou no final do ano que vem, mas outros 19% nem mesmo têm previsão de quando chegará ao fim a atual crise.
Saídas exigem investimento e formação de mão de obra
A falta dos dispositivos semicondutores tão necessários a todo tipo de produto eletrônico levou a uma corrida internacional entre países determinados a reduzir a dependência dos fornecedores asiáticos. O Brasil também pode aproveitar essa oportunidade para ampliar sua indústria doméstica vinculada à produção de semicondutores, mas, na visão de especialistas, para isso precisa reforçar políticas públicas em três áreas: benefícios fiscais, linhas de financiamento e capacitação de mão de obra.
A cadeia de produção de um chip é dividida em três partes: desenho do circuito, fabricação das "bolachas" (ou "wafers") — placas que podem conter até milhares de chips — e o encapsulamento, que é a separação e a colocação de cada unidade de semicondutor em um invólucro de proteção (que a deixa pronta para ser instalada em um computador ou outro aparelho). As duas últimas etapas, mas principalmente a fase final, estão muito concentradas em países asiáticos.
Uma das dificuldades para mudar essa situação é a necessidade de investimentos pesados. A União Europeia anunciou que pretende aplicar US$ 48 bilhões (quase R$ 227 bilhões) para dobrar sua participação nesse mercado até 2030, e os Estados Unidos vão injetar US$ 52 bilhões (cerca de R$ 245 bilhões) com a mesma intenção de ganhar terreno frente a nações como Taiwan e Coreia do Sul. A etapa mais cara é a de produção dos "wafers".
— Uma fábrica dessas placas não sai por menos de US$ 1 bilhão (quase R$ 5 bilhões). Uma fábrica com tecnologia no estado da arte pode chegar a US$ 20 bilhões (R$ 95 bilhões). É uma indústria de investimento muito intensivo. Cerca de 60% do custo de um chip se refere ao capital, por conta da complexidade de produção e dos custos das fábricas — afirma o coordenador do Instituto de Semicondutores da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos), Celso Peter.
O que é jornalismo de soluções?
É uma prática jornalística que abre espaço para o debate de saídas para problemas relevantes, com diferentes visões e aprofundamento dos temas. A ideia é, mais do que apresentar o assunto, focar na resolução das questões, visando ao desenvolvimento da sociedade.
Peter observa que, por conta disso, os países que estão correndo para implantar suas cadeias produtivas oferecem pesados incentivos fiscais, com isenção de impostos e linhas de financiamento. Mas o Brasil também precisaria ampliar a formação de profissionais especializados.
— Hoje, já temos falta de mão de obra, de engenheiros, físicos, pessoal de design, entre muitos outros — afirma Peter.
Não vejo caminho para o Brasil criar fábricas (de "wafers"). Teríamos de fazer um investimento de algo como R$ 50 bilhões para construir uma. Essa corrida já perdemos. Mas temos talento, gente treinada para fazer design, a arquitetura dos chips, terceirizando a produção
ADERBAL FERNANDES LIMA
Empresário do setor de eletrônica e coordenador do Conselho de Comércio Exterior da Fiergs
O país conta hoje com algumas empresas vinculadas a essa cadeia — com destaque para o Rio Grande do Sul, que poderia se beneficiar de mais investimentos nesse setor pela experiência e qualidade de sua mão de obra. No Brasil todo, há um punhado de firmas de design de chips (duas no Tecnopuc, na Capital) e algumas outras de encapsulamento (uma no campus da Unisinos, em São Leopoldo). A Ceitec, empresa vinculada ao Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovações (MCTI) e localizada em Porto Alegre, era a única que produzia placas, mas entrou em processo de extinção por decisão do governo federal.
Empresário do setor de eletrônica e coordenador do Conselho de Comércio Exterior da Fiergs, Aderbal Fernandes Lima acredita que o melhor caminho para o país em termos de estratégia econômica seria apostar nas etapas menos custosas do processo de elaboração dos semicondutores — nem por isso menos vantajosas.
— Não vejo caminho para o Brasil criar fábricas (de "wafers"). Teríamos de fazer um investimento de algo como R$ 50 bilhões para construir uma. Essa corrida já perdemos. Mas temos talento, gente treinada para fazer design, a arquitetura dos chips, terceirizando a produção. É nessa etapa que reside a propriedade intelectual, que garante os maiores retornos, e não na fabricação — avalia Lima.
Lima acrescenta que é o que empresas como a Apple fazem: desenham os chips que vão abastecer seus aparelhos e mandam fabricá-los — por enquanto — em países com menor custo de produção na Ásia. Mas há quem acredite que os brasileiros poderiam criar uma cadeia inteira de produção dos semicondutores em razão de alguns fatores favoráveis.
— A Secretaria de Empreendedorismo do MCTI está estudando condições para colocar o Brasil como um player para design e fabricação de chips. Isso demanda investimentos bilionários, mas o país, por estar em uma região de onde poderia distribuir para a Europa e o resto da América, sem grandes problemas de clima ou de guerras, poderia se colocar como opção — observa o diretor regional da Abinee no Estado, Régis Hauber.
Dificilmente se veriam resultados significativos, porém, em um prazo inferior a cinco ou seis anos. Consultado por GZH sobre os planos para o setor de microeletrônica no país, o MCTI não se manifestou até o fechamento desta reportagem.