O Renda Cidadã coloca o governo Jair Bolsonaro em um impasse. Diante dos estragos causados pela pandemia, o Planalto busca uma forma de proteção a camadas desfavorecidas a partir do próximo ano, mas esbarra na penúria das contas públicas para bancar o novo projeto. Ao mesmo tempo, o mercado financeiro demonstra preocupação ao enxergar risco de descontrole no quadro fiscal.
Economistas reconhecem que a criação do Renda Cidadã carrega uma série de desafios. Contudo, acreditam que é possível, sim, encontrar uma saída no labirinto. Entre os caminhos apontados para ajudar no financiamento do projeto, estão a unificação de programas sociais já existentes, a revisão em benefícios fiscais e o corte de gastos por meio da reforma administrativa.
O calendário, por outro lado, joga contra. As medidas citadas não devem entrar em vigor do dia para a noite, e o país mergulha no quarto trimestre do ano sem uma solução engatilhada. Enfrentar a resistência de grupos afetados representaria obstáculo adicional.
— São várias frentes que podem ajudar. Uma seria a realização de uma reforma administrativa que, de fato, diminuísse despesas com pessoal, inclusive para os atuais servidores. A integração de programas sociais também tende a abrir espaço para despesas, assim como a redução nas isenções tributárias no Imposto de Renda, por exemplo — observa o economista Marcelo Neri, diretor do centro de estudos FGV Social.
A intenção de criar o Renda Cidadã foi anunciada pelo governo, sem maiores detalhes, nesta semana. A proposta substituiria o Bolsa Família, uma das marcas das gestões petistas. A ideia é assistir parcela que hoje depende do auxílio emergencial, incluindo trabalhadores informais. Em razão das dificuldades na área fiscal, o auxílio deve terminar neste ano, e o temor é de que, sem essa proteção, a pobreza e a desigualdade saltem no país.
Para financiar o Renda Cidadã, o governo desejava utilizar recursos do Fundeb, o fundo da educação básica, além de valores de precatórios — dívidas que têm de ser pagas após determinação judicial. O eventual uso de precatórios causou preocupação devido ao risco de alta no endividamento e críticas de "contabilidade criativa". Diante da repercussão negativa, o ministro da Economia, Paulo Guedes, rechaçou essa possibilidade.
Professor da Universidade Federal de Pelotas (UFPel), Felipe Garcia entende que a unificação de programas já existentes é o caminho adequado para o pós-pandemia. O economista acrescenta que o uso de deduções do Imposto de Renda (IR) também poderia auxiliar no financiamento.
Garcia cita estudo publicado pelo Ipea, em 2019, sobre o assunto. Conforme a pesquisa, os orçamentos do Bolsa Família, do abono salarial, do salário-família e da dedução por dependente para crianças no IR somavam R$ 52 bilhões.
— Temos uma colcha de retalhos na área social. A ideia de juntar programas atende a várias necessidades. Traz racionalidade — diz o professor, ex-secretário adjunto de Política Econômica do Ministério da Economia.
Pesquisador do FGV Ibre, Manoel Pires afirma que estender o Bolsa Família "parece a melhor saída" na área social. Ele também destaca a possibilidade de unir programas existentes, mas pondera que o calendário apertado dificulta o avanço das discussões neste ano.
— Sobre o financiamento, além de analisar como otimizar gastos, há um debate sobre Imposto de Renda, sobre renúncias fiscais. Isso tudo pode ajudar a fechar as contas, já que não temos tanto espaço fiscal — frisa Pires.
Além de citar a unificação de programas, o professor Sérgio Firpo, do Insper, menciona que a saída para o impasse passa pela contenção de despesas na máquina pública. Nesse sentido, é necessário avanço na reforma administrativa, até para preservar o teto de gastos, argumenta o especialista.
— Sem o auxílio emergencial, teríamos milhões de famílias sem recursos durante a pandemia. Um programa que enfrente as oscilações no emprego e na renda é fundamental — pontua.
Turbulência no mercado financeiro
O anúncio do Renda Cidadã espalhou ruídos no mercado financeiro nesta semana. Investidores ligaram o sinal de alerta devido à forma de financiamento do programa.
Inicialmente, o governo Jair Bolsonaro sinalizou aproveitar recursos de precatórios para bancar a iniciativa, o que aumentaria riscos na área fiscal. Após questionamentos, essa possibilidade foi derrubada na quarta-feira (30) pelo ministro da Economia, Paulo Guedes.
— Um programa de renda é bem-vindo. Ninguém se posiciona contra um projeto de assistência social. O que o mercado vê é um risco de indisciplina fiscal para financiar o programa — comenta Valter Bianchi Filho, sócio-diretor da Fundamenta Investimentos.
Nesta quinta-feira (1º), o dólar terminou o dia com alta de 0,68%, vendido a R$ 5,654. É o maior valor em cerca de quatro meses. Diante das incertezas fiscais, reforçadas pela proposta inicial do Renda Cidadã, a corretora Necton Investimentos elevou, na terça-feira (29), a projeção para o câmbio ao final do ano: de R$ 5,90 para R$ 6.
A bolsa de valores de São Paulo, a B3, teve novo alívio nesta quinta, após a preocupação no começo da semana. O índice Ibovespa fechou a sessão em alta de 0,93%, a 95.478 pontos. Nos próximos dias, os investidores devem seguir de olho nas tratativas relacionadas ao Renda Cidadã.
— É importante que se discuta a criação de um programa maior do que o Bolsa Família. Mas financiá-lo com dívida não faz sentido. Usar recursos do Fundeb também gera questionamentos. O governo precisa mostrar que o programa pode ser colocado em prática, encerrando o tema de uma vez — aponta Camila Abdelmalack, economista-chefe da Veedha Investimentos.
Entenda o assunto
O programa
O Renda Cidadã foi anunciado pelo governo Jair Bolsonaro nesta semana. O projeto serviria como forma de proteção a camadas vulneráveis a partir do próximo ano. A proposta atingiria parte dos beneficiários do auxílio emergencial, que deve terminar em 2020. Também substituiria o Bolsa Família, uma das marcas das gestões petistas.
O impasse
As dúvidas estão relacionadas ao financiamento do programa em meio ao período de penúria nas contas públicas. Sem trazer maiores detalhes, a proposta inicial do governo era de usar recursos do Fundeb, o fundo da educação básica, e valores destinados ao pagamento de precatórios – dívidas que precisam ser quitadas após determinação judicial.
A repercussão
A ideia resultou em uma onda de preocupação no mercado financeiro. O temor é de que o programa poderia resultar em indisciplina fiscal, com o financiamento via dívida de precatórios. Diante da repercussão negativa, o ministro da Economia, Paulo Guedes, descartou usar esses recursos. As discussões sobre o assunto continuam.
As possíveis saídas
Apesar das dificuldades fiscais, economistas avaliam que é possível ampliar o atendimento na área social. Veja algumas sugestões abaixo:
- Otimização de programas já existentes: a ideia seria revisar iniciativas como Bolsa Família, seguro-defeso e abono salarial para encontrar melhores formas de atingir o público-alvo e racionalizar os recursos. Assim, haveria possibilidade de unificar ações
- Benefícios fiscais: a intenção seria reavaliar renúncias e subsídios fiscais para abrir mais espaço no orçamento
- Corte de gastos: o governo precisaria reduzir despesas. A reforma administrativa poderia ajudar, mas os trâmites não ocorrem do dia para a noite
As dificuldades
Levar adiante essas ideias não é uma tarefa fácil, ponderam economistas. O governo teria de enfrentar resistência de grupos que seriam atingidos com medidas como a revisão de subsídios ou programas sociais.