A tentativa de adiar o pagamento de dívidas com cidadãos brasileiros reconhecidas pela Justiça, chamadas de precatórios, para abrir espaço no orçamento para o Renda Cidadã abalou o mercado e fez economistas falarem em contabilidade criativa e, em menor número, até em pedalada fiscal.
Mas o clima não piorou apenas pela "última do Bolsonaro": nas últimas semanas, o nível de inquietação com a gestão das contas públicas se elevou substancialmente. O Renda Cidadã foi uma espécie de gota d´água que fez transbordar o copo da tolerância a manobras destinadas a disfarçar o desrespeito ao teto de gastos.
Semanas antes, o Banco Central (BC) e o Tesouro Nacional haviam efetuado uma transferência de R$ 325 bilhões baseada em lucro contábil do BC. Para o especialista em câmbio Sidnei Moura Nehme, foi uma "pedalada bem dada" porque poucas pessoas entenderam o mecanismo. Já era uma tentativa de facilitar a rolagem da dívida pública.
Pouco antes do anúncio do Renda Cidadã e suas polêmicas formas de financiamento, economistas de diferentes especializações reuniram-se em videoconferência para avaliar os rumos da economia brasileira e demostraram muita preocupação com a gestão das contas públicas.
– O problema urgente, agora, é como equacionar o problema fiscal e impedir a dívida pública de explodir. O encaminhamento político parece completamente maluco. O ministro da Economia fala em reescrever a Constituição, e só se ouve o presidente dizer não. Está trabalhando como esse problema não existisse. O ministro fala em DDD (expressão usada por Paulo Guedes para a proposta que desindexa, desvincula e desobriga as despesa públicas), em pacto federativo, e o presidente disse não ao primeiro D, não ao segundo e não ao terceiro. É ND, ND, ND – observou Armando Castelar, coordenador da Economia Aplicada do FGV Ibre.
Um dos sinais mais preocupantes é a remuneração negativa de títulos públicos conhecido como Letras Financeiras do Tesouro (LTFs). Na semana passada, os papéis desse tipo que vencem em janeiro de 2025 acumulavam 0,15% negativos (ou seja, perda). Essa situação, lembraram os economistas, não é uma situação usual. Só tem precedentes na crise de 2002, quando o dólar atingiu seu maior valor real na história (R$ 3,99 na época, hoje entre R$ 7 e R$ 11, dependendo do método de atualização). Na época, observou José Júlio Senna, chefe do Centro de Estudos Monetários do FGV Ibre, houve um "deságio brutal". Hoje, é "expressivo", na avaliação de Senna:
– O risco está aparecendo porque é real, o governo não conseguiu iludir analistas competentes. Isso mostra a baixa disposição dos investidores de adquirir títulos públicos nos leilões a juros modestos. Houve um brutal aumento de gastos, o déficit já chega a 12,5% do PIB, e isso agrava a percepção de risco. Só há uma solução: um ajuste fiscal firme e muito poderoso. Para quem está preocupado com a reeleição, seria um motivo para fazer o ajuste, fazer a coisa certa, não o contrário. Diante disso, tenho bastante preocupação de que o nível atual de juro básico não seja sustentável. É preciso fazer algo para quebrar a espinha dorsal de perspectivas adversas.