Embora tenha terminado relativamente bem para o ministro da Economia, Paulo Guedes, o episódio que ele mesmo chamou de "debandada" – a saída de mais dois secretários especiais, Salim Mattar, da Desestatização, e Paulo Uebel, da Desburocratização, depois da perda de outros três auxiliares nos últimos meses – deixou algumas interrogações.
Para deixar mais claro melhor o tamanho da encrenca, a coluna preparou uma espécie de "dicionário guediano", explicando não só o que significam algumas das questões centrais do embate entre a agenda liberal do ministro e de sua equipe, mas também as resistências de outras alas do governo e as preocupações do próprio presidente Jair Bolsonaro.
TETO DE GASTOS
Foi a solução adotada para dar credibilidade à gestão da dívida pública brasileira pelo então ministro da Fazenda do governo Temer, Henrique Meirelles. Aprovado no final de 2016, estabelece que o governo só pode gastar o mesmo valor do ano anterior, corrigido pela inflação. No governo Dilma, as despesas dispararam. Como dinheiro não nasce em árvore, isso significou aumento da dívida pública. Quando isso ocorre, quem empresta aumenta o custo do financiamento. Isso faz com que a inflação e juro básico aumentem. Foi o que ocorreu em 2015: a inflação fechou o ano em 10,67% e a Selic subiu até 14,25% ao ano. Para comparar, a inflação acumulada em 12 meses até junho está em 2,31% e o juro básico caiu a 2% ao ano.
Qual o problema?
Durante a pandemia, o governo criou o auxílio emergencial, que beneficiou também quem recebe o Bolsa Família. Esse novo pagamento consome cerca de R$ 50 bilhões ao mês e foi permitido com a aprovação do chamado "orçamento de guerra", que permitiu gastos extraordinários para combater o impacto do coronavírus na saúde e na economia. Com isso, "sobraram" recursos do Bolsa Família. Um grupo de ministros, formado por Walter Braga Neto, chefe da Casa Civil, Tarcísio de Freitas, da Infraestrutura, e por Rogério Marinho, do Desenvolvimento Regional, fez consulta ao Tribunal de Contas da União (TCU) para saber de poderia usar esse dinheiro que "sobrou" para obras públicas. A resposta foi não, mas o movimento abriu a discussão sobre "pular a cerca". A iniciativa ganhou força quando o senador Flávio Bolsonaro (Republicanos-RJ), filho do presidente, disse que Guedes teria de "arrumar mais um dinheirinho" para a infraestrutura. Seria a pressão para "furar o teto".
A causa da reação
A dívida pública de países costuma ser avaliada pelo seu peso em relação ao PIB, que é o conjunto de riquezas produzida no país. No governo Dilma, saíram de pouco acima de 50% do PIB para mais de 70%. Com as despesas necessárias para enfrentar a pandemia, estima-se que chegue a 90% ou até 100% do PIB. Se mais despesas forem feitas sem controle, há risco de cruzar a fronteira de 100%, perigosa para um país como o Brasil, ainda visto com desconfiança no mercado global. Quado a dívida dispara, aumenta o risco de alta de inflação e, em decorrência, de aumento do juro.
PRIVATIZAÇÕES
Para conduzir um ambicioso plano de venda de estatais, Paulo Guedes convocou um empresário de inclinação liberal, Salim Mattar, dono da Localiza. Durante a campanha, Guedes chegou a dizer que arrecadaria R$ 1 trilhão com a venda de estatais. No entanto, ao chegar ao governo, só os planos desenhados ainda no governo Temer, como a concessão de aeroportos e a venda de subsidiárias conduzida por megaestatais como Petrobras e Eletrobras deslancharam. Mattar era cobrado por outra correntes liberais e atacado por quem resiste à venda de empresas públicas. Embora o Ministério da Economia tenha conseguido absorver o Programa de Parcerias em Investimentos (PPI), que comanda as privatizações na prática, pouco avançou.
Qual é o problema?
Neste caso, parte do problema se chama Jair Bolsonaro, que não quer ouvir falar em venda de Banco do Brasil, Caixa e Petrobras, como Mattar reforçou em entrevista à coluna, na qual também já reclamava da lentidão das decisões governamentais.
A causa da reação
Privatizar seria uma das formas de reduzir a dívida pública. Recursos obtidos com venda de estatais não podem ser gastos com despesas regulares, com pagamento de funcionalismo, mas podem abater a dívida. Sem essa opção, o tempo de normalização do endividamento poder ser maior e aumentar o risco de aumento de inflação e juro.
REFORMA ADMINISTRATIVA
Como tem dificuldade em aumentar a receita, com a economia outra vez em recessão e impossibilidade de elevar impostos, mudar as regras do serviço público seria uma forma de reduzir a despesa. A reforma administrativa, com previsão de fim da estabilidade, ao menos para os futuros contratados, é uma forma de obter esse efeito. Formulada ainda no governo Temer, a proposta foi reembalada sob a gestão de Paulo Uebel na Secretaria Especial de Gestão, Desburocratização e Governo Digital.
Qual o problema?
Neste caso, também responde por Jair Bolsonaro. Quando o projeto de reforma começou a ser exposto, como nesta entrevista do secretário de Gestão, Wagner Lenhart à coluna, gerou forte reação do funcionalismo, e o presidente mandou segurar.
A causa da reação
Durante a pandemia, o governo teve de aprovar regras emergenciais para flexibilizar contratos de trabalho na iniciativa privada para impedir a explosão do desemprego. Muitos trabalhadores tiveram contratos suspensos, redução de salário e de jornada de trabalho e até foram demitidos. Nada disso atingiu o funcionalismo, mesmo que seu empregador, a União, enfrentasse a disparada das despesas. Essa situação aumentou a cobrança por uma reforma que permite maior flexibilidade na gestão de pessoal do governo.
CPMF
Embora não esteja diretamente vinculada à debandada, a intenção de Paulo Guedes de criar um novo imposto já havia desgastado o ministro ante economistas liberais. Essa escola costuma se referir ao Estado (no sentido de poder público, não no de unidade da federação) como "leviatã", a partir do cientista político Thomas Hobbes, que descreveu o governo central como um monstro que concentraria todo o poder em torno de si. Um dos objetivos dos liberais é reduzir o tamanho do Estado, e veem tributos como espécie de "comida de monstro", que só o torna mais forte.
Qual é o problema?
Guedes sustenta que não se trata de uma nova versão CPMF, mas não apresenta detalhes da proposta, e até os raros empresários que apoiam dizem que é, sim. Também diz que não haverá aumento de impostos, porque o novo tributo substituiria aliviaria encargos sobre a folha de pagamento. Mas nem assim convence boa parte dos empresários.
A causa da reação
Embora haja consenso de que o Brasil precisa de uma reforma tributária, o fato de o debate ter se focado na recriação da CPMF, com risco de aumento da carga, desviou atenção e criou resistência ao projeto.
RENDA BRASIL
Também não chegou a ser citado explicitamente no episódio da debandada, mas é uma das preocupações quanto o respeito à regra do teto. Atento a ganhos de popularidade com o auxílio emergencial, o presidente Jair Bolsonaro pediu à equipe um plano de assistência social para substituir o Bolsa Família, que já tem nome: Renda Brasil.
Qual é o problema?
O primeiro desgaste da ideia ocorreu quando o governo tentou um "jeitinho" para tirar recursos do Fundeb para o programa.
A causa da reação
Como pretende um alcance maior do que o do Bolsa Família, é uma despesa social que não "caberia" no teto.
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