Externada durante a campanha eleitoral, a promessa do ministro da Economia, Paulo Guedes, de “privatizar tudo” ficou pelo caminho. Passados um ano e oito meses de gestão, o governo Jair Bolsonaro se desfez de uma série de bens, mas não vendeu nenhuma das 46 estatais de controle direto da União. Nesta reportagem, GaúchaZH detalha o cenário, dá voz a especialistas e discute os principais entraves às privatizações no Brasil, tema envolto em controvérsia.
Segundo dados da Secretaria Especial de Desestatização, Desinvestimento e Mercados, o governo federal tem 614 ativos. Nesse bolo, estão desde companhias dependentes do Tesouro Nacional até participações acionárias (veja os gráficos abaixo).
De janeiro de 2019 a fevereiro deste ano, o órgão aponta 84 ativos alienados (redução de 12% frente ao total de 698, até então), somando R$ 134,9 bilhões. A título de comparação, Guedes chegou a projetar ganhos totais de R$ 1,2 trilhão.
Na prática, a estratégia da equipe econômica acabou priorizando o que os analistas chamam de desinvestimento, isto é, a saída do Estado de certos empreendimentos e ramos de atividade. As operações realizadas — que não exigem aval do Congresso — restringiram-se à venda de ações e de empresas subsidiárias ou coligadas (cujo dinheiro fica no caixa das estatais às quais são vinculadas). Entre elas, estão braços da Petrobras e da Eletrobras.
— Não houve privatização de fato, no sentido de vender empresas controladas pelo Tesouro. O governo vendeu subsidiárias e participações acionárias, mas isso não reduz a presença do Estado na economia. Você pode vender todas as participações da Petrobras e ela continuará sendo uma estatal. Isso não é reformar o Estado — afirma a economista e advogada Elena Landau, que preside o conselho acadêmico do movimento Livres.
Diretora de Desestatização do BNDES no governo de Fernando Henrique Cardoso, Elena comandou a maior experiência de privatização do país, que contemplou desde a rede ferroviária até os setores petroquímico, siderúrgico e de fertilizantes, entre outros. Hoje, na avaliação da economista, o principal gargalo é a “falta de liderança”.
— Resistência às privatizações sempre houve e sempre haverá, porque você mexe com muitos interesses, mas, se não tiver alguém que arbitre os conflitos, não funciona. Guedes e Bolsonaro não têm feito esse papel — opina Elena.
Coordenador do Observatório de Estatais da Fundação Getulio Vargas (FGV), Márcio Holland identifica outro obstáculo a ser superado: a ideologização extrema do assunto. Para o economista, que foi secretário de Política Econômica no governo Dilma Rousseff, nem toda estatal é ruim, desde que atenda a funções sociais e seja blindada de interferências político-partidárias.
Ao mesmo tempo, Holland adverte para o fato de que o Brasil tem empresas públicas demais e está atrasado nas desestatizações, se comparado a outros países. A maioria iniciou o processo nos anos de 1980, com o Reino Unido à frente.
— A privatização em si não deveria ser tratada como assunto ideológico, mas como discussão da melhor estratégia de participação do Estado na economia brasileira, sem essa paixão toda. Aí o debate acaba — avalia o professor.
Apesar dos resultados considerados tímidos, Guedes e a equipe rebatem as críticas, apontam avanços com as vendas já realizadas, prometem ampliar o escopo em 2021 e sustentam que, em 2020, a meta traçada (de alienar 300 ativos) só não será atingida devido à crise do coronavírus.
Ainda assim, na última quinta-feira (6), o ministro afirmou, em videoconferência, que o governo irá propor a privatização de “três ou quatro grandes companhias” em até 60 dias. Não revelou quais são as escolhidas, mas se especula que Eletrobras e Correios estejam na lista.
— Acho que o Congresso estará ao nosso lado. O presidente estará nos ajudando com a coordenação política — declarou Guedes.
Mesmo que isso se concretize, Rafael Cagnin, economista-chefe do Instituto de Estudos para o Desenvolvimento Industrial (Iedi), teme que a situação econômica interna e externa dificulte o intento. Na avaliação dele, o governo precisa estudar o melhor momento de agir.
— Será difícil encontrar condições favoráveis neste ambiente de risco. O melhor seria esperar uma recuperação mais consistente da economia — pondera Cagnin.
Pontos-chave
Com a ajuda de especialistas, GaúchaZH pontua três itens fundamentais ao êxito de qualquer privatização, que, se não forem observados, podem representar entraves e resultar em problemas.
1) Planejamento estratégico
Qualquer programa de desestatização precisa ser bem planejado, o que nem sempre acontece. Isso inclui cronograma claro e estudos aprofundados para garantir bons resultados aos cofres públicos e à população, com a melhoria dos serviços prestados.
— Não basta dizer que vai privatizar tudo e que todas as estatais são uma porcaria. Essa postura inclusive atrapalha, porque não é técnica. É importante planejar bem e eleger prioridades — sintetiza Sérgio Lazzarini, professor de Organização e Estratégia do Insper.
Uma boa alternativa, segundo Claudio Frischtak, sócio-fundador da Inter.B Consultoria, seria dar ao BNDES a missão de liderar o processo, como fez nos anos de 1990, na gestão de FHC — hoje, cabe à Secretaria de Desestatizações conduzir os planos, ainda que a instituição bancária seja responsável pela estruturação das propostas. O banco tem expertise, recursos e quadro profissional qualificado.
— Infelizmente, no início do atual governo, houve certa ambiguidade em relação ao BNDES (com a polêmica da suposta caixa preta), mas ele poderia ser protagonista e ajudar muito mais — sugere Frischtak.
Outra recomendação é pensar no longo prazo, e não apenas no intervalo de um mandato.
— Um projeto ambicioso como o que Guedes sinaliza precisa de uma década, no mínimo, inclusive para o convencimento da sociedade e das instituições — diz Frischtak.
2) Coordenação política
Para obter apoio à venda de estatais, ressalta o economista Rafael Cagnin, é fundamental ter capacidade de coordenação e de articulação política. Sem isso, por se tratar de um tema polêmico, dificilmente o Executivo terá o aval do Legislativo.
— Esse é um déficit que o atual governo tem apresentado desde o início e que precisa ser superado se o objetivo é levar essa agenda adiante — ressalta Cagnin.
Em movimento recente, o presidente Jair Bolsonaro se aproximou de deputados do centrão e ofereceu cargos aos aliados, mas há dúvidas se a manobra será suficiente, por exemplo, para assegurar a aprovação do projeto que autoriza a privatização da Eletrobras. O texto está parado no Congresso desde 2019, o que pode minar as pretensões de Guedes.
Outra necessidade, na avaliação de Claudio Frischtak, é adotar um discurso unificado:
— Não pode haver ruídos. Quando você tem uma ala no governo que fala muito, faz pouco e é muito ideológica, atrapalha. Cabe ao presidente dirimir os conflitos.
Países que se destacaram nas privatizações tiveram figuras fortes na liderança. Foi o caso de Margaret Thatcher, no Reino Unido da década de 1980, que coordenou ambicioso programa de desestatizações.
3) Regulação de serviços
Criadas nos anos de 1990 para fiscalizar a qualidade de serviços públicos concedidos ou privatizados, as agências reguladoras são um ponto-chave para assegurar longevidade às desestatizações e reverter desconfianças. Entre elas, estão órgãos como as agências nacionais de Telecomunicações (Anatel), de Aviação Civil (Anac) e de Energia Elétrica (Aneel).
Com o passar dos anos, a maioria sofreu forte influência política e perdeu força. Em 2019, com a aprovação do novo marco legal do setor, foram atualizadas as regras de gestão, organização, processo decisório e controle social das agências. Isso trouxe melhorias, mas ainda há desafios.
— A legislação aprovada é boa, o problema é botar para funcionar — resume Claudio Frischtak.
O economista lembra que países bem-sucedidos em desestatizações são célebres pela qualidade da regulação. Entre eles, está a Nova Zelândia.
— Lá, as agências têm autonomia decisória, financeira e administrativa. Criou-se um ambiente de respeito às decisões tomadas. Não quero dizer com isso que temos de fazer igual, mas podemos nos inspirar nesse exemplo, mesmo que seja um país pequeno — diz Frischtak.
Para entender
- Empresa de controle direto: é aquela cujo principal acionista é a União, por deter mais de 50% das ações com direito a voto, tendo, assim, o poder de eleger a maioria dos diretores da empresa e tomar decisões
- Subsidiária: espécie de subdivisão de uma empresa que se encarrega de tarefas específicas. A Eletrobras é uma das estatais com mais subsidiárias
- Coligada: empresa sobre a qual as estatais ou suas subsidiárias exercem influência significativa, mesmo sem ter o controle. A lei não estabelece um percentual mínimo, mas presume que toda participação acima de 20% é significativa o suficiente para ser considerada automaticamente uma coligada
- Participação simples: empresa sobre a qual as estatais ou suas subsidiárias detêm mera participação, sem influência significativa
Principais alienações recentes
- Subsidiárias da Petrobras, entre elas Transportadora Associada de Gás (TAG), BR Distribuidora, Liquigás, distribuidoras no Paraguai e Pasadena
- Participações da Eletrobras em Sociedades de Propósito Específico (SPEs)
- Participações da Petrobras em campos de petróleo
- Participações do BNDES em empresas como Petrobras, Fibria, Marfrig, Vale e Light
- Ações em diferentes companhias, entre elas Instituto de Resseguros do Brasil (IRB), Banco do Brasil (ações excedentes) e Neoenergia