Três dias antes da troca do segundo ministro da Saúde em menos de um mês, um relatório do Gavekal Research, centros de estudos independente voltado a investimentos, já alertava: a casa do Brasil está em chamas. Destinado a investidores internacionais, descrevia o país como um edifício em chamas, do qual seria melhor manter distância a menos que o interessado fosse "especialista, louco ou sem outras opções". Mas também previa que uma recuperação global provocada por estímulos poderia tornar interessantes produtores nacionais de commodities (matérias-primas básicas). Assinado por Armando Castelar, coordenador da área de Economia Aplicada do FGV Ibre, o texto reverberou. Nesta entrevista, o autor detalha seu ponto de vista, lamenta a crise política alimentada por Jair Bolsonaro e afirma que a saída para o Brasil passa pela iniciativa da sociedade, já que o comportamento do presidente não mudará.
Nossa casa está mesmo em chamas?
É uma força de de expressão no sentido de que é um momento em que precisa muito cuidado para entrar aqui, especialmente as pessoas de fora. Há uma situação complicada na saúde pública que ainda não sabemos como vai se encerrar. Discute-se muito fazer ou não quarentena, e pouco como vamos sair. A Dinamarca retomou a escola, a Alemanha manteve a indústria operando, a Áustria abriu pequenas lojas. Aqui, não se discute o que esses países estão fazendo. Em vez disso, ficamos perdidos no debate se deveria ter começado a fechar ou não. Há combinação entre a falta de planejamento para lidar com o problema de saúde com uma crise política que se acirra, com a saída de Sergio Moro (do Ministério da Justiça), a investigação sobre interferência na Polícia Federal (PF). Com isso, há mudança no posicionamento do presidente no Congresso que pode, de fato, criar conflito com a equipe econômica, que se preocupa com a situação fiscal. Pela dimensão do problema de saúde, pela falta de estratégia consistente de combate, por estar fechando empresas formais, com mais da metade da população saindo (de casa) do mesmo jeito, com problema fiscal gigantesco e crise política, parece que a casa está pegando fogo, mesmo.
Doeu ler, imagino que deva ter doído escrever esse artigo, não?
Sim, doeu. Mas é preciso escrever o que dói. Lembrei de Tom Jobim, que dizia que o Brasil não é para principiantes. Agora, menos ainda.
Estamos nisso há dois meses. O presidente admite que mais gente poderia morrer. Há uma discussão de natureza ética, mas agora está claro que insistir nessa posição só vai alongar a quarentena e tornar a crise mais séria.
O presidente do país em chamas é bombeiro ou incendiário?
É incendiário, insiste na briga mesmo diante da constatação de que não vai resolver. Não será a insistência nos ataques que vai fazer os governadores mudarem de posição. Estamos nisso há dois meses. O presidente admite que mais gente poderia morrer. Há uma discussão de natureza ética, mas agora está claro que insistir nessa posição só vai alongar a quarentena e tornar a crise mais séria.
Como o Brasil é visto lá fora?
No mercado, é menos novidade. A situação política era algo que já vinha assustando. A aprovação da reforma da Previdência foi uma notícia boa, mas começou a sair dinheiro a partir de agosto passado. Foi resultado da combinação entre a queda do juro, a situação política que se complicou e a decepção com o crescimento antes da pandemia. Mas a casa está pegando fogo também nos Estados Unidos, tem briga com governadores. No artigo, uso a estimativa de 10% de queda do PIB no segundo trimestre e 5,5% no ano, mas existem previsões de quedas maiores, de até 7% ao ano.
Em certo sentido, ao condicionar a queda de 4,7% ao fim da quarentena em maio, na prática fica implícito que será maior. Eles mesmos dão a solução do enigma.
A equipe econômica previu queda de 4,7% no ano, mas condicionada à volta das atividades em junho. Isso não é pouco provável?
As pessoas da equipe são competentes, têm compreensão da situação bastante complicada. Por outro lado, trabalham com um presidente que tem visão bastante diferente. Ao projetar a perda com o isolamento, tiveram a preocupação de dizer que não eram contra a quarentena. Depois, todos esperam que a visão do governo seja mais otimista do que média dos analistas. Em certo sentido, ao condicionar a queda de 4,7% ao fim da quarentena em maio, na prática fica implícito que será maior. Eles mesmos dão a solução do enigma.
As medidas de compensação econômica anunciadas até agora são corretas e suficientes?
São corretas, mas a experiência está mostrando que o problema é maior do que se avaliou inicialmente. Há problemas de acesso a crédito nas pequenas empresas. O que se previa é que haveria um período de dois meses com economia parada e voltaria rapidamente. Era um problemas de liquidez. As empresas não teriam recursos, os bancos emprestariam, a economia voltaria e não haveria dificuldade de pagar. Vai ficando claro que o problema não é só de liquidez. Há perdas que vão durar muito tempo. As políticas têm de ser adaptadas para a realidade de que a crise vai durar mais tempo. O Ministério da Economia já acenou com a possibilidade de que vá além de junho. O cenário inicial era de negação do tamanho da crise.
O Brasil tem recursos para usar nesse novo esforço?
Há um consenso de que, agora, é preciso gastar o que for preciso. Os Estados Unidos já gastaram 15% do PIB, e se discute mais 7%, pelos republicanos, ou 15%, pelos democratas. Na Alemanha, o pacote tem dimensões parecidas com as do Brasil, ao redor de 5% do PIB, mas algumas medidas não implicam gasto primário, como uma linha de crédito que tem 25% do PIB em garantias para empréstimos a empresas. Se as empresas não pagarem, vai virar dívida e gasto públicos.
O fato de o Brasil ter reservas vai ajudar muito a lidar com essa situação. Com a desvalorização que já houve e boas reservas, apostar contra o real vai ser complicado.
Usar reservas cambiais é uma alternativa?
Usar para a questão fiscal é burrice. Não vai mudar nada se for usada para abater dívida. Mas o BC vem vendendo reservas para administrar a desvalorização do real. Vai continuar calibrando. Em 2021, vamos ver crises sérias de dividas em países emergentes com a alta do dólar. A dívida de todos vai crescer, a da Itália deve chegar a 200% do PIB. O fato de o Brasil ter reservas vai ajudar muito a lidar com essa situação. Com a desvalorização que já houve e boas reservas, apostar contra o real vai ser complicado.
E haverá condições de fazer investimento público, objetivo do Pró-Brasil?
Investimento público não é solução no momento. Entre sair da ideia e fazer acontecer, leva dois anos. É preciso ter projeto básico, de engenharia, licenciamento ambiental, contratar empresa para fazer a obra, aprovar tudo no TCU (Tribunal de Contas da União). E assusta pela questão fiscal. É um tema maior que vai vir quando passar a preocupação com saúde. Discutir o problema fiscal será muito complicado em uma sociedade que entrou pouco coesa na crise, com uns tentando culpar os outros. Pode se acirrar na hora de discutir como se paga a conta.
O investidor estrangeiro coloca muito peso no Paulo Guedes, mais do que os nacionais. Ele é um símbolo. Enfraquecê-lo no momento parece má estratégia.
Já se discute a necessidade de elevar imposto, isso faz sentido?
São todos a favor, desde que não seja no seu setor. Vai ser um momento difícil. É melhor não aumentar o problema comprometendo mais gastos. Se aumentar investimento público para ter resultado em dois anos, pode retrair o investimento privado, assustado com a questão fiscal. E ostensivamente enfraquece a equipe econômica. O investidor estrangeiro coloca muito peso no Paulo Guedes, mais do que os nacionais. Ele é um símbolo. Enfraquecê-lo no momento parece má estratégia.
Como atrair investimento estrangeiro neste momento?
O Brasil precisa de uma trava de arrumação. Se a crise política não desaparecer, o Brasil não vai atrair investimento elevado. Antes da pandemia, os estrangeiros já tiravam dinheiro do Brasil. O país precisa se organizar, se não, não voltam. A desvalorização do real pode deixar o país mais barato, a bolsa caiu 50% em dólar. A longo prazo, pode ser atrativo para investidor estrangeiro, Mas tem de entender de Brasil para voltar a olhar o preço das ações.
Bolsonaro não vai acordar e mudar, é a sociedade que tem de pressionar e criar alternativas. Essa eterna briga interessa a quem está brigando, não à população.
Como se faz a crise política desaparecer?
Essa é a grande questão. A sociedade vai ter de tomar a liderança nesse processo. A academia, as empresas e a imprensa têm papel importante, cada um com a sua contribuição. A academia pode construir propostas, ideias para ir para a frente. Pessoalmente, comecei a ler sobre a Revolução Francesa, e O Futuro do Capitalismo, de um professor de Cambridge, Paul Collier. O mundo vai passar por uma grande mudança. Vai trazer mais nacionalismo, mais demanda por igualdade. Já havia a noção de que era preciso dar uma chacoalhada, porque havia muita gente de fora. Há uma pressão global por uma nova visão, e a forma de ajudar é se engajar no debate. Bolsonaro não vai acordar e mudar, é a sociedade que tem de pressionar e criar alternativas. Essa eterna briga interessa a quem está brigando, não à população. Somos capazes, o importante é focar.