Na terça-feira (5), Ignácio Ibañez, chefe da delegação da União Europeia no Brasil – cargo equivalente ao de embaixador –, vai se encontrar com um velho conhecido, o secretário-executivo do Ministério da Saúde, general Eduardo Pazuello. Eles se conheceram quando Pazuello coordenou a Operação Acolhida, que recebeu refugiados venezuelanos. Ibañez vai oferecer ajuda do bloco europeu ao Brasil, a princípio com experiência, mas também com recursos. Em algum momento no futuro, pode evoluir para equipamentos, que começam a ser menos essenciais na Europa, que está entrando nesta segunda-feira (4) em "desconfinamento". Em conversa por vídeo com a coluna, Ibañez assegura que o acordo UE-Mercosul avança, apesar de um atraso no cronograma, e pode facilitar a saída da crise para os dois blocos.
A Europa está começando a fase que foi chamada de desconfinamento de forma coordenada?
É bom lembrar que a primeira reação da União Europeia foi baseada em solidariedade. Quando o coronavírus surgiu, na China, mandamos 56 toneladas de material sanitário e médico para o país. Quando o contágio começou na Europa, a reação foi um pouco de surpresa, de bloqueio, houve reconhecimento de a resposta foi deficiente (Ursula von der Leyen, a presidente da Comissão Europeia, cargo equivalente ao de um primeiro-ministro, pediu desculpas pela falta de ação imediata). Depois melhorou, ficamos todos focados no problema. Agora adotamos um plano abrangente, baseado em três critérios: na ciência e na epidemiologia, com base na experiência de países que passaram antes pelo surto antes, na capacidade dos sistemas de saúde, atual e futura, e no monitoramento. É um bom exemplo para o Brasil. Não podemos voltar à normalidade, mas estamos adotando processos progressivos.
Esse plano foi coordenado pela UE ou é definido em cada país?
A União Europeia deu mandato para a Comissão, para definir um roteiro conjunto. É claro que cada país tem seus potenciais e seus problemas, então cada membro tem de adaptar. Definimos que vamos sair disso juntos. Tenho uma reunião amanhã (terça-feira) com o secretário-executivo do Ministério da Saúde, Eduardo Pazuello. Se pudermos compartilhar experiências, estamos a disposição.
A ideia é focar em esforços contra a pandemia. No Brasil, podem ter relação com gestão da água, violência doméstica. Temos uma experiência com centros penitenciário que podemos compartilhar.
Essa ajuda pode evoluir para outras formas, como alguma facilitação de acesso a EPIs, agora que a situação está menos grave na Europa?
Tivemos muitos aprendizados nessa crise, e um deles é que é preciso agir com solidariedade, não só porque é bom, mas porque é mais inteligente a fazer. Estamos no final do nosso período orçamentário, e recebemos a orientação de reavaliar todas as cooperações, que somam valor total de 15 bilhões de euros no mundo. A ideia é focar em esforços contra a pandemia. No Brasil, podem ter relação com gestão da água, violência doméstica. Temos uma experiência com centros penitenciário que podemos compartilhar. A desinformação é um tema importante, há muita informação boa circulando, mas o contrário também é verdade. Vamos discutir em conjunto. De nossa parte, há vontade de responder. Também podemos ajudar em compras públicas. Se todos os entes que buscam material concentrarem as compras, podem se transformar em cliente importante.
Foi traumático o inédito fechamento das fronteiras durante a pandemia?
Havia previsão de um mecanismo que permitia essa situação, como em jogos de futebol, por motivos de segurança. Agora, essas regras foram aplicadas de forma mais drástica. Fechamento radicais podem ser úteis, mas é preciso fazer de forma inteligente. A Comissão comunicou aos países membros que deveriam ser flexíveis e permitir, por exemplo, a volta para casa. Temos gratidão ao Brasil por não ter fechado de forma radical. Continuou a permitir voos para que pessoas que estavam aqui pudessem voltar. Na Europa, adotamos os chamados greenways, caminhos abertos para garantir o abastecimento essencial.
O Brasil passa por um processo de transformação políticas, não temos hoje preocupação maior do que tínhamos antes. O caminho é buscar saídas mais sustentáveis.
Há preocupação na UE em relação à crise política no Brasil?
Temos de compreender que o surgimento de uma crise nova não interrompe as que já existem. Na UE também é assim, tínhamos grandes desafios antes da covid-19, que agora essa crise pode reforçar. O Brasil passa por um processo de transformação políticas, não temos hoje preocupação maior do que tínhamos antes. O caminho é buscar saídas mais sustentáveis. Na UE, estávamos focados na transformação verde e na reforma para uma economia mais digital. Parou tudo, mas vamos retomar. Gostei das últimas mensagens do ministro Guedes, de que as reformas no Brasil pararam agora mas vão continuar. E temos uma oportunidade com o acordo entre a UE e os países do Mercosul. Temos convicção de que um bom acordo pode contribuir para a saída da crise. Abre alternativas e obriga a se transformar, o que é bom.
Para a UE, foi um alívio a Argentina ter oficializado a permanência no acordo, mesmo sem avançar em novos no Mercosul?
Os contatos de Bruxelas e Buenos Aires já eram positivos, estávamos confiantes de que o acordo seria mantido. Não estamos de acordo quando o governo argentino sinaliza que a abertura econômica não é boa saída. Alguns países da UE tentou esse caminho de fechamento de fronteiras, mas continuamos a acreditar que o melhor é o livre comércio. Mas sim, recebemos com alívio o comunicado oficial, porque é uma garantia.
Saídas isoladas não vão funcionar. Precisamos de soluções multilaterais, com a ONU no centro do processo.
Há chances reais de o acordo avançar nesse momento?
Não estamos viajando nem fazendo reuniões presenciais, mas temos trabalhado muito. Ainda há alguns temas abertos, não conseguimos fechar tudo em abril, como era o plano, mas devemos completar até maio. Queremos fechar os textos traduzidos para todas as línguas da UE para que no segundo semestre possa haver a apresentação nos parlamentos (o acordo precisa ser aprovados em cada um dos 30 países envolvidos para entrar em vigor).
Com a crise, não haverá aumento do protecionismo?
Não acredito, a ideia da UE é de que o multilateralismo vai sair reforçado. Estamos vendo uma pandemia que começou na China, foi para a Europa, as Américas, todo o mundo. Achar que vai se sair dessa crise com solução isoladas é um equívoco. Temos de compartilhar informações e soluções. Precisamos ter coordenação global. Hoje tivemos um evento virtual na UE que foi lançamento de uma conferência internacional, para obter 7,5 bilhões de euros em doações para vacinas, diagnóstico e tratamentos. Temos França e Alemanha, mas também Canadá e Arábia Saudita. O Brasil, como parte do G20, também participa. Saídas isoladas não vão funcionar. Precisamos de soluções multilaterais, com a ONU no centro do processo. Não será fácil, mas sou otimista.
A nova ofensiva dos Estados Unidos contra a China não vai em sentido contrário?
Temos de aprender lições, nessa crise, do que fizemos bem e do que não fizemos bem. Tivemos erros na UE. O país onde tudo começou também tem de dar respostas a perguntas que temos obrigação de fazer. O modelo político da UE está mais próximo dos EUA do que do da China. Temos compromisso com democracia, liberdades coletivas e individuais. Temos o compromisso de proteger a liberdade de imprensa para fiscalizar o trabalho dos governos. É uma das diferenças em relação ao modelo da China. Precisamos avaliar como melhorar nossos sistemas democráticos. Acompanhei, no final da semana, os ataques contra a imprensa no Brasil. Mas é preciso aperfeiçoar a democracia brasileira, não o contrário. Na Europa, as medidas adotadas antes, durante e depois da crise também terão de ser avaliadas. Todos terão de prestar contas.